Entusiasmo
brasileiro com DNA é criticado
Entre
as novas tecnologias relacionadas ao DNA aquela que mais se popularizou,
em todas as classes sociais, foi o exame para investigação
da paternidade. Os laboratórios proliferam, a mídia
exalta sua confiabilidade, já é possível contratar
o exame até pela internet e a justiça brasileira,
em diferentes estados, incluiu o teste entre os exames pagos pelo
Estado. Mesmo sem ter acesso à nova tecnologia pessoas de
diferentes classes incorporaram a possibilidade do teste de DNA
em seu modo de ver laços e responsabilidades familiares.
Na contramão dos anúncios otimistas feitos com relação
aos avanços dessas tecnologias, pesquisadores contestam a
substituição dos antigos exames de investigação
da paternidade pelo teste de DNA, questionam a necessidade de seu
uso e os reais benefícios para as famílias.
A
poderosa imagem do DNA construída pela mídia
Ao
sair dos laboratórios e circular pelos jornais, programas
de auditório, hospitais, salas de aula, cortes e os lares
brasileiros, o DNA configura não apenas como uma entidade
biológica/bioquímica, mas também como uma entidade
cultural que detém outros significados que não os
biológicos. Esta é a avaliação da pesquisadora
Daniela Ripoll, da Faculdade de Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que utiliza referenciais dos
Estudos Culturais para analisar modos de construção
e os usos que se fazem de uma entidade como o DNA na mídia.
Para
a pesquisadora, a mídia não reproduz e nem reflete
os conhecimentos produzidos no âmbito das ciências,
é antes uma instância cultural produtora e veiculadora
de saberes sobre a genética, a biotecnologia, o DNA, o genoma.
O uso, por exemplo, da imagem do DNA em xampus e gasolina, embora
não contenham em suas fórmulas esta molécula,
denota a utilização de uma imagem "poderosa"
como a do DNA para conferir um caráter de legitimidade, cientificidade
e inovação para os produtos.
Ripoll
conta que duas pesquisadoras norte-americanas da área dos
Estudos Culturais de Ciência, Dorothy Nelkin e M. Susan Lindee,
afirmam que o DNA tem sido construído, na mídia contemporânea
de seu país, como um "poderoso texto imortal",
no qual tanto o futuro quanto "a pré-história
humana está escrita". O DNA seria a própria "linguagem
com que Deus criou a vida". Para Ripoll "não se
trata de dizer se isso é bom ou ruim, mas de dicutir como
essa genética, centrada nos poderes dos genes e, mais especificamente,
nos poderes do DNA, vem se colocando como um modo determinante de
constituição de sujeitos e de identidades na contemporaneidade".
"A
construção cultural do DNA como uma entidade que parece
ser capaz de fazer muitas coisas - possuidora de muitos poderes
e que conteria, em si, a chave para a resolução de
todos os problemas humanos - é algo que precisa ser, continuamente,
problematizada", avalia Ripoll. Em especial, porque a mídia
possui um certo status frente a outros aparatos sociais - como por
exemplo a igreja, a família, os governos - e tem se configurado
como mais um espaço de legitimação das novas
tecnologias do DNA junto à população.
No
caso do exame de DNA, a mídia tem enaltecido sua capacidade
de apontar a veracidade dos laços entre filhos, mães
e pais. Recentemente, estourou na mídia o caso "Pedrinho",
em que o teste de DNA apareceu como a prova irrefutável do
sequestro do garoto e da irmã pela mãe de criação.
O programa de auditório do Ratinho já há muitos
anos é um dos grandes promotores do exame, usando-o para
incendiar as platéias. Várias vezes, diante dos questionamentos
de pais e mães quanto ao resultado do exame, o apresentador
apostou todo seu salário, durante os anos trabalhados na
emissora, alegando que o laboratório e a ciência eram
inquestionáveis.
O
Brasil abusa do exame de DNA para exclusão da paternidade
Seja
por pressão da mídia, seja por crença no teste
de DNA como prova irrefutável, ou ainda pela simples existência
dessa nova tecnologia, o fato é que o número de solicitações
de exames de DNA para afirmar ou refutar a apternidade tem aumentado
consideravelmente.
"O
Brasil é um dos poucos países que utiliza um exame
tão complexo, e de forma tão irresponsável,
para investigação de vínculo genético.
Nos países mais desenvolvidos, em que o DNA tem importância
capital no conhecimento humano, raramente se utiliza nos tribunais
com esta finalidade. Aqui o maior incremento deve-se, muito provavelmente,
por interesses econômicos de quem pede e de quem realiza o
exame", avalia Ivo Antonio Vieira, professor e pesquisador
de medicina legal na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).
No
artigo "Uso
e abuso do exame do DNA sob o ponto de vista médico-legal"
Ivo Vieira e Rodrigo Pinheiro Vieira, buscam despertar os juristas
e médicos interessados no tema para uma reflexão sobre
a utilização desse exame. Os pesquisadores apontam
que o surgimento do exame de DNA está provocando a retirada
de mercado de testes mais simples, mais baratos e que também
apresentam alta confiabilidade.
Ivo
Vieira argumenta que se um exame mais simples e barato como o ABO,
ligado ao grupo sanguíneo, pode afastar um sem número
de possibilidades de paternidade duvidosas, ou manter a possibilidade,
ele deveria ser um dos exames iniciais a ser praticado nos serviços
de justiça gratuita nas Varas de Família, combinado
a um sem número de evidências milenares desenvolvidas
pela medicina legal, que hoje foram inexplicavelmente esquecidas.
Grande
parte das pessoas que solicitam hoje os exames de DNA não
têm condições de pagar seus custos, que ficam
em torno de R$900,00. Geralmente, essas pessoas se utilizam da justiça
gratuita ou são atendidas pela Defensoria Pública
e entram em filas de espera de 3 a 4 anos para serem atendidas.
Porém,
o Poder Judiciário não dispõe de verbas suficientes
para arcar com as despesas elevadas dos exames de DNA e atender
a crescente demanda. Para Ivo Vieira "num país pobre
como o nosso, onde os depauperados são as maiores vítimas
sociais, com severas limitações do acesso à
justiça, e geralmente de segunda qualidade, acatar como verdadeiro
apenas o exame de DNA é no mínimo tirano".
Além
do ABO, há um exame menos popular, mas com uma confiabilidade
e relevância na investigação do vinculo genético
reconhecida todo o mundo: o HLA (Human Leucocyte Antigen)
ligado aos leucócitos humanos. Para Ivo Vieira e Rodrigo
Vieira "não há porque acreditar que o exame de
HLA deva ser substituído pelo de DNA".
Os
pesquisadores explicam que as diferenças entre o HLA e o
DNA residem na aplicabilidade das técnicas. Ao afirmar-se
que o pai "A" não é o pai biológico
do filho "B", o exame de HLA possui um poder de exclusão
muito próximo ao do DNA. Já na situação
de não exclusão, a probabilidade de paternidade com
erros periciais com o exame de HLA pode chegar a 0,1 % e, nesse
caso, o exame de DNA poderia resolver a dúvida e estabelecer
uma certeza estatisticamente maior, com erro de aproximadamente
0,001 %.
Segundo
Ivo Vieira o artigo foi bem recebido no meio acadêmico, "uma
vez que alunos das faculdades de Direito têm se manifestado
e cobrado dos juízes uma postura mais realista e de maior
valorização dos demais meios de exclusão de
paternidade". Mas o pesquisador ressalta que alguns juízes
e promotores ainda acreditam que é mais fácil continuar
a pedir o exame, mesmo levando em consideração os
argumentos apresentados. O pesquisador relata ainda que a maior
repercussão ocorreu entre os peritos assistentes. "Eles
se sentiram ofendidos pois ficou escancarada a situação.
Geralmente eles somente emitem pareceres depois dos laudos prontos,
não se envolvem nos meandros dos exames e não tomam
conhecimento das falcatruas praticadas, além da falta de
critério quando da indicação dos exames".
Aumento
do teste de DNA: sintoma da falta de participação
paterna na família
O
artigo "A
vingança de Capitu: DNA, escolha e destino na família
brasileira contemporãnea" da antropóloga
Claudia Fonseca, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs),
aborda como os testes de DNA para a investigação de
laços de paternidade passaram do mundo da fantasia ao dos
fatos, trazendo consigo o potencial de uma nova mudança em
nossa conceituação de família, relações
de gênero e parentesco.
No
romance de Machado de Assis, Dom Casmurro, a dúvida
sobre a fidelidade de sua esposa, Capitu, arruína Dom Casmurro
e o relacionamento, que termina de forma trágica. Se Machado
de Assis fosse escrever hoje a mesma história Casmurro poderia
por fim às suas dúvidas por meio de um teste de DNA.
Fonseca acredita que "os testes de DNA estão trazendo
uma enxurrada de Dom Casmurros para fora do armário. Maridos
que, em épocas passadas, teriam aguentado suas dúvidas
em silêncio, agora estão procurando conhecer 'a verdade'".
Será
que a verificação da paternidade "verdadeira"
da criança teria sido recomendável? Quais as conseqüências
potenciais deste tipo de tecnologia para as relações
de gênero no âmbito do casal? Será que as mulheres,
como Capitu, ganharam ou perderam algo na barganha? Será
que os homens se submeteram a essa tecnologia com a intenção
de aumentar a sua responsabilidade paterna e o compromisso com o
casal, ou, pelo contrário, de cortar os laços sociais
negando supostas relações consangüíneas?
Essas são questões que mobilizam a pesquisa etnográfica
realizada por Fonseca em favelas brasileiras.
Na
avaliação da pesquisadora, a investigação
genética da paternidade, ao permitir acesso público
àquilo que até então havia sido um segredo
da mulher, e conferir a "certeza" da paternidade, modifica
as relações de poder no casal contemporâneo.
A pesquisadora lembra que a incerteza a respeito da paternidade
de um homem era parte intrínseca do pacto conjugal. O reconhecimento
da paternidade dos filhos, tradicionalmente, era prova implícita
da afeição e confiança que um homem investia
em sua esposa. A mulher, como única guardiã do "segredo"
da paternidade biológica de sua criança, mantinha
uma espécie de trunfo, isto é, podia decidir se ia
ou não honrar a confiança que seu marido depositava
nela.
Mas
a pesquisadora vai mais além. O aumento de testes de DNA
também mostra uma crise ao colocar a definição
biogenética como tão importante: a falta da participação
paterna na vida da família. Mas a avaliação
da pesquisadora é que é altamente improvável
que a ênfase "bio-social" possa reverter o atual
conflito. "Envolvendo ou não os testes de DNA, nada
garante que o homem declarado pela corte como o pai de certa criança,
e portanto responsável por seu bem estar, se responsabilize
por seus compromissos".
Ao
que parece, nos últimos tempos, a investigação
legal de paternidade tem contribuído pouco para melhorar
a condição de mulheres e crianças pobres. A
antropóloga compara, a partir de estudos já realizados,
as políticas sociais de diversos países europeus e
aponta as políticas francesas, que investem na autonomia
de mães de família - tais como creches em tempo integral,
subsídios familiares, ajudas especiais para mães solteiras
etc - como mais bem sucedidas do que as da Inglaterra, por exemplo,
que investem na identificação do genitor, como se
isso fosse necessariamente promover o bem-estar da família.
Certamente
não é possível virar as costas aos avanços
da "tecnologia científica moderna" mas, para os
pesquisadores, parece ser difícil conceber a investigação
de paternidade como medida para o combate à pobreza e à
exclusão social. Fonseca acha aconselhável "maneirar
nosso entusiasmo pelos testes DNA levando em consideração
a gama de diferentes e poderosos fatores em jogo que criam novas
estruturas familiares".
(SD)
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