Reportagens






 
Imaginando uma paleontologia da cultura científica

Yurij Castelfranchi


Malucos e geniais, lucidamente racionais porém instintivamente distraídos, heróicos ou às vezes perigosos: o cinema, as histórias em quadrinhos e as novelas pintam uma imagem dos cientistas (e das cientistas) complexa e cheia de contradições. A mídia, a literatura e a arte contam a ciência como uma aventura humana carregada de ternura mas também inquietante, rica de promessas e também de perigos; fonte de um conhecimento que é objetivo e democrático mas, ao mesmo tempo, esotérico e aparentemente inalcançável para a maioria das pessoas.

O jeito tradicional de resolver essa contradição, especialmente no norte da Europa e nos Estados Unidos, foi interpretá-la simplesmente como fruto de uma escassa cultura científica: as pessoas não conhecem a ciência e o método científico; é natural sentir medo do desconhecido; conseqüentemente, as pessoas têm medo da ciência e das aplicações tecnológicas, têm reverência e pavor do cientista, que imaginam parecido com um bruxo.

Esse silogismo é, para alguns, tranqüilizante. Todavia contém só uma parte da verdade, tanto nas premissas como nas conclusões: os Estados Unidos estão entre os países com pior nível de alfabetização científica, e é também um dos lugares onde as pessoas têm maior confiança em relação à ciência e suas aplicações. Na Europa, foi mostrado que os melhores níveis de conhecimento científico se tornam às vezes sinônimo de um maior nível de atenção crítica e preocupação em relação a alguns setores da ciência contemporânea.

Um dos problemas é que a cultura científica foi estudada mais pelos buracos do que pelos conteúdos. E mais pelos fatos, dados, noções, do que pelos aspectos culturais mais profundos como os símbolos, as metáforas, os medos, o imaginário. Em inúmeras entrevistas e questionários sobre a chamada Public Understanding of Science (compreensão pública da ciência), foi estudado muito mais o que as pessoas não sabem, o que não entendem, o que não conseguem aceitar, do que o contrário. A cultura científica foi deduzida principalmente a partir de interrogações de tipo escolar sobre conceitos, fatos, números. Esses dados são muito importantes, mas nos contam só uma metade da história: permitem uma análise substantiva (e pessimista) só em termos de quanta informação é perdida no caminho entre a ciência e o público. Não consideram a parte aditiva: o contexto, as metáforas, as percepções, os mitos e símbolos que todos nós, antes e além da informação que recebemos pela mídia ou na escola, anexamos para construir nossa própria imagem da ciência e do cientista.

Esse imaginário científico é difícil de estudar porque, como toda a cultura, é formado de sedimentos que apareceram em épocas diferentes, se estratificaram com o tempo e sobrevivem juntos, reelaborados, ainda hoje. Contém alguns mitos profundos, mais antigos do que a própria ciência. Para analisar a cultura científica de um país, temos então que perguntar o que é uma molécula, ou se os homens apareceram na Terra antes dos dinossauros. Mas precisamos também de uma paleontologia da percepção científica. Nesse sentido, pelo menos três grandes elementos antigos dão uma contribuição importante a nosso imaginário sobre conhecimento em geral e, pelo menos cinco sedimentos modernos compõem nossa imagem sobre o que é a atividade científica.

Na pré-história do imaginário, o conhecimento foi associado, em quase todas as culturas, a três grandes dilemas, todos caraterizados por um pólo positivo (de entusiasmo, euforia, paixão pela novidade) e um pólo negativo (de medo, desconfiança ou hostilidade em relação às conseqüências do próprio conhecimento):

  • o dilema do conhecimento em si mesmo;
  • o dilema do controle do conhecimento e suas aplicações;
  • o dilema da manipulação e transformação da natureza e da superação da fronteira entre o inanimado e o animado.

O primeiro dilema, que podemos chamar "do fruto proibido", nos lembra que tentar conhecer o universo é um impulso que homens e mulheres sempre querem perseguir, mas que ao mesmo tempo pode representar uma violação da ordem natural ou divina. O conhecimento é indispensável, e é também terrível. Na Bíblia ele assume a forma do fruto proibido, na Odisséia (e na Divina Comédia) é a teimosia corajosa (e desastrosa) de Ulisses, que quer ultrapassar as Colunas de Hércules: "não nascemos para viver como brutos" - ele declara no poema de Dante - "mas para perseguir virtude e conhecimento". Na cosmologia grega, o roubo do fogo do conhecimento é o heróico feito de Prometeu em favor dos homens, porém sofrendo para a eternidade uma duríssima punição.

O segundo dilema, que chamamos "do aprendiz de feiticeiro" enfatiza que o conhecimento é poder e que o poder tem que ser controlado com sabedoria. O mito do aprendiz de feiticeiro, de origem egípcia, foi transformado em literatura no segundo século antes de Cristo pelo escritor sírio Luciano de Samosata. Foi reelaborado em forma de poesia romântica por Johann Wolfgang Goethe, em forma de música pelo francês Paul Dukas e, enfim, transformado em desenho animado por Walt Disney. Em um trecho célebre de "Fantasia", Mickey Mouse aproveita a ausência do feiticeiro - que se chama Yen Sid (ler ao contrário e descobrir quem é) para experimentar o chapéu mágico, com resultados cômicos, mas quase catastróficos.

O terceiro grande símbolo, positivo e negativo, é ligado ao desejo antigo de transformar os seres vivos ou até dar vida a corpos inanimados. Podemos chamá-lo de "dilema do Golem": o nome, que já aparece na Bíblia, se torna na Idade Média a lenda de um rabino que consegue dar vida a uma estátua de barro por meio do poder da cabala. Escrevendo na testa do gigantesco monstro a palavra "emet" (vida, em hebraico), ele vive. Depois de provocar muito medo, ele terá que ser destruído retirando a primeira letra da escrita mágica, para formar a palavra "met" (morte).

Não é difícil perceber o quanto estes três elementos penetraram profundamente no nosso imaginário: dúzias de contos (como Frankenstein, ou Dr. Jekyll & Mr. Hyde) e centenas de filmes (2001: uma Odisséia no espaço, O Exterminador do Futuro, Jurassic Park, Matrix...) nos mostram a maravilha e o medo, as vantagens e os perigos de conhecer, controlar o conhecimento, utilizá-lo para transformar os vivos ou dar vida, inteligência e consciência aos inanimados.

Mas esses elementos profundos, "pré-históricos", não são os únicos. Eles fundamentam nosso imaginário científico que se forma a partir de símbolos que nasceram na época moderna e que descrevem a ciência como:

  • novidade e progresso
  • método e instrumento de domínio sobre a natureza
  • saber democrático que permite a libertação dos povos
  • saber "superior", separado do conhecimento comum por linguagem e conceitos que poucos podem entender
  • enfim, tecnociência, saber tão poderoso que pode se transformar em inúmeras tecnologias e transformar radicalmente nossas vidas, tanto para o bem como para o mal.

O primeiro elemento aparece pela primeira vez no Renascimento. Entre os séculos XV e XVII novos mundos geográficos, biológicos, astronômicos, tecnológicos e epistemológicos são descobertos com uma velocidade jamais vista na história. A palavra latina novum (novo, novidade) aparece no título de dúzias de livros. Nascem as wunderkammern (salas das curiosidades, embriões de museu científico). Nasce a idéia fundadora da modernidade: o mito do progresso. Pais e filhos vivem em mundos diferentes. Os antigos não são os mais sábios. Nós somos anões que, "sentados nos ombros dos gigantes" do passado, podemos enxergar mais longe que eles. A modernidade (e a imagem do progresso científico) é caraterizada por essa euforia que também é fonte de insegurança e medo.

Durante a Revolução Industrial nasce a ciência moderna propriamente dita. Tem um método baseado em hipótese e experimento - descrito por Galileu - e uma filosofia, codificada entre outros por Francis Bacon, que também declara: a meta da ciência não é somente conhecer e explorar o novo, mas também dominar e controlar a natureza "para alcançar todos os objetivos". Novamente, uma promessa que um dia iria também soar como ameaça. O século das Luzes e o Positivismo somam essas imagens para destilar um imaginário que tende a exaltar a ciência como a única fonte de conhecimento verdadeiro e objetivo, transformando-a quase numa religião. Mas, ao mesmo tempo, a profissionalização da ciência (a palavra "cientista" aparece somente depois em 1830), a especialização das disciplinas científicas, junto com a formalização da linguagem separam definitivamente a ciência do público leigo, levando a uma visão do cientista como de um ser mais e mais alheio e "diferente de nós".

No século XX, enfim, as guerras mundiais concretizam e cristalizam com imagens definitivas, e não míticas, o antigo entusiasmo bipolar sobre conhecimento e ciência. Com os aviões os homens alcançam o sonho de voar e também acabam com centenas de anos de estratégia militar: conseguem pular montanhas, rios e exércitos para aparecer acima das cidades e jogar bombas na população civil. Pior, comandando na linha de frente, o grande químico Fritz Haber (que ganhará o prêmio Nobel em 1918) faz uso de gases tóxicos em Ypres e transforma o primeiro conflito mundial na chamada "guerra dos químicos", mostrando que a mesma ciência (e o mesmo cientista) capaz de inventar o adubo químico, produz, para usar as palavras do próprio Haber, "um meio superior de matar". Durante a Segunda Guerra Mundial (a chamada "guerra dos físicos") a ciência se apresenta - até nas formas mais teóricas e abstratas (a teoria da relatividade, o eletromagnetismo, a física quântica) - como meio estratégico crucial para a supremacia militar, econômica, política. E dá o exemplo final do seu potencial destrutivo planetário.

Hoje, para o cidadão, ciência é um pouco de tudo isso. É basicamente positiva: na maioria das revistas de divulgação é novidade e progresso, é sala das maravilhas e sinônimo de verdade, é instrumento de transformação da natureza e de libertação da superstição, é mãe generosa de novas terapias, máquinas, bem-estar. Mas também, no cinema e nos quadrinhos, a ciência é fonte do poder do "cientista maluco", que cria instrumentos com conseqüências ecológicas (ou morais) inquietantes e imprevistas e que podem ser utilizados para fins destrutivos.

Há muita ciência na mente de cada um de nós. Podemos não saber definir um gene ou não ter uma idéia exata do que é uma molécula ou a lei da gravidade, mas todos estamos incorporando muita parte da moderna genética, da química, da física. Olhando as estrelas hoje, um camponês e um poeta imaginam um objeto que é muito mais parecido com o objeto descrito por um astrofísico do que com as estrelas imaginadas por Aristóteles. Mas essas imagens científicas nas nossas cabeças não são somente na forma de conceitos mais ou menos aproximativos, de dados, leis, fatos. São também na forma ambígua, contraditória e interessantíssima de metáforas, símbolos, sonhos e medos estratificados. São, em uma palavra, cultura. E a cultura transita não somente pelos canais visíveis da divulgação e da educação escolar, mas também, antes e mais, ao longo dos caminhos subterrâneos, enrolados, longínquos, da difusão cultural de mitos e símbolos. Antes de aprender a palavra e o conceito, uma criança pode intuir o que é o frio tomando um sorvete. Antes de ler um livro de texto ou uma revista, um cidadão constrói uma imagem da ciência e do cientista por meio das novelas, do cinema, da arte, da música. Estudar a cultura científica adentrando por esses caminhos e contradições, analisando o imaginário que o público agrega à informação científica além de suas falhas no conhecimento, é mais difícil. E também mais fascinante.

Yurij Castelfranchi é jornalista científico, mestre em Comunicação da Ciência e professor de Teoria e Técnicas de Comunicação Científica na Escola Internacional Superior de Estudos Avançados (SISSA) em Trieste, Itália.

 
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Atualizado em 10/07/2003
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