Pílula
muda papel social da mulher
Os
avanços da ciência têm sido responsáveis
por várias tecnologias que alteraram os rumos da história.
Parte delas para o bem, como as vacinas, os jatos, os computadores,
mas há também as bombas e toda a tecnologia de guerra.
Uma das descobertas dos anos 50 que talvez tenha sido a principal
responsável pela mudança na vida e no papel social
da mulher foi a pílula anticoncepcional, que propiciou uma
maior inserção da mulher no mercado de trabalho e
também uma liberdade sexual que ela ainda não conhecia.
A pílula
anticoncepcional é um contraceptivo hormonal que surgiu na
década de 50. Apesar de já existirem outros contraceptivos
que permitiam que as decisões sobre a maternidade estivessem
sob o controle da mulher, como a capa cervical (1838), o diafragma
(1882), o método Ogino e Knaus ou "tabelinha"
(início do século XX) e o DIU (década de 20),
foi a pílula que carregou consigo o emblema de "libertadora".
"Se
antes as decisões contraceptivas - com exceção
do aborto - estavam sob o controle dos homens, os novos métodos
mudaram as relações e a possibilidade masculina anterior
de separar prazer de reprodução passou a ser também
uma possibilidade das mulheres", afirma a professora Joana
Maria Pedro, da Universidade Federal de Santa Catarina, para explicar
que o surgimento desses métodos desequilibrou as relações
de gênero (entre os sexos).
Quando
surgiu no mercado, o novo contraceptivo foi aceito quase que prontamente
- com exceção da Igreja Católica que até
hoje não aceita os métodos anticoncepcionais -, isso
porque eliminava a dependência da destreza do homem (como
no coito interrompido ou no uso do preservativo); do controle (como
o Ogino e Knaus); ou de interferência médica
(no caso do DIU ou da laqueadura). Além disso, diferente
dos outros métodos, podia ser usado sem o conhecimento dos
pais, do marido, do amante etc.
"Todas
as mulheres queriam usar o contraceptivo hormonal", afirma
a ginecologista e sexóloga Ondina Pregnolatto. Apenas aquelas
muito religiosas, com receio de castigos divinos por usar um método
não natural, não aprovaram o medicamento. Houve também
uma rejeição das mulheres muito submissas aos maridos
que diziam que suas mulheres não tomariam essas "porcarias".
Outra
explicação para a aceitação desses medicamentos
está associada a uma proposta libertária da época
que dissociou o sexo da maternidade. Essa proposta apresentou também
uma necessidade de inserção no mercado de trabalho,
mas "de um mercado masculinizado, que não previa a maternidade",
segundo Daniela Manica, doutoranda de Ciências Sociais do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.
Manica
destaca que a comercialização e o uso da pílula
não respondem apenas a um desejo feminino, mas o que se tem
por trás é uma rede de interesses de diferentes atores,
entre eles os ginecologistas, a indústria farmacêutica
e os organismos internacionais interessados em controlar a natalidade,
principalmente nos países menos desenvolvidos.
Endometriose
é uma doença que consiste na presença
de endométrio em locais fora do útero. Endométrio
é a camada interna do útero que é
renovada mensalmente pela menstruação. |
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Em
sua tese de mestrado sobre o uso de contraceptivos
hormonais para a supressão da menstruação,
Manica analisou, entre outras coisas, a campanha dos laboratórios
farmacêuticos, que se utilizam de instrumentos de marketing
para convencer as mulheres de que a interrupção da
menstruação que eles propõem lhes traria apenas
vantagens. Para conseguir esse convencimento eles se utilizam de
uma imagem de mulher que é a profissional bem sucedida, independente,
responsável por decisões importantes em seu trabalho,
que precisa viajar constantemente, e para quem a possibilidade de
determinar a época ideal para engravidar é essencial.
Além dessa decisão, eles pregam, ainda, que as doenças
decorrentes da menstruação, tais como a tensão
pré-menstrual, as cólicas, a endometriose, a anemia,
entre outras, incômodas e indesejáveis, são
evitadas com a supressão da menstruação.
Apesar
de feita para esses novos contraceptivos, essa análise é
válida também para os anticoncepcionais mais antigos
e que certamente têm um impacto bastante eficaz para ampliar
a aceitação de tais medicamentos, até mesmo
em detrimento de outros já citados e que podem ter efeitos
menos nocivos ao organismo feminino.
Joana
lembra que as pílulas atuais têm uma dosagem hormonal
bem menor do que a da primeira pílula que surgiu em meados
dos anos 50. "Esta, que foi aprovada em 1960 pelo FDA dos Estados
Unidos, chamava-se Enovid, era fabricada pelo laboratório
Searle e possuía uma quantidade de hormônios muito
grande".
Uma
pesquisa realizada sob a coordenação de Joana Maria
Pedro com usuárias dos primeiros tipos de contraceptivos
hormonais, mostrou que elas se queixavam de náuseas, corpo
inchado, dores nas pernas, dores de cabeça, entre outros.
Hoje, porém, as pílulas mais modernas possuem 1 centésimo
da dose hormonal da primeira pílula. Exigem, entretanto,
que seja tomada no horário certo, e que não seja esquecida,
para ser eficaz.
Outros
métodos têm sido divulgados, como o anel vaginal, por
exemplo, que vai liberando, lentamente hormônios e o preservativo
feminino, mas a professora destaca que certamente todos estes avanços
estão voltados para a classe média da população
e que para a classe pobre, a questão continua sendo a divulgação
e a distribuição de métodos que não
exijam "lembrar todo dia" e que sejam muito, muito eficazes.
Não é por acaso que crescem de forma impressionante
os casos de laqueadura no país.
A professora
da UFSC lembra também da atuação dos organismos
internacionais preocupados com o controle da natalidade, principalmente
na África e na Ásia, na apologia ao uso de contraceptivos.
Ela conta que no início dos anos 50, quando a pílula
foi desenvolvida, uma das questões mais discutidas era o
temor da explosão populacional. "Acreditava-se que no
ano 2.000 haveria 8 bilhões de habitantes no mundo, e que
esta explosão levaria ao desequilíbrio entre as possibilidades
de alimentação e a população da Terra.
E mais, que destes 8 bilhões, 70% seriam afro-asiáticos".
Ela completa dizendo que na tentativa de evitar essa explosão,
desde meados do século XIX, alguns grupos estavam empenhados
em divulgar e distribuir, entre camadas pobres da população,
métodos contraceptivos para reduzir aquilo que consideravam
um desastre: a grande quantidade de filhos que os pobres costumavam
ter. E essa divulgação recebia apoio financeiro de
inúmeras fundações".
Neste
caso a pílula que, aliás, contou também com
financiamentos desses grupos quando surgiu, constituiu-se num método
considerado eficiente. Mas era apenas mais um.
O uso
arbitrário de métodos anticoncepcionais visando a
redução da população pobre foi também
alvo do inconformismo do movimento feminista no Brasil e na América
Latina nos anos 60. Segundo Joana, em vista disso, e por causa da
ditadura militar, o movimento feminista não considerou a
entrada da pílula como uma conquista. "Ao se falar em
contracepção, o lado de dominação de
países ricos sobre os pobres, a intervenção
no corpo feminino, enfim, a questão do imperialismo receberam
maior destaque", afirma.
Mas
os primeiros discursos feministas, dizendo que esses contraceptivos
hormonais permitiram a liberação das mulheres, foi
um dos argumentos usados, por exemplo, pelo feminismo francês
que até l967 lutava pela queda da lei de 1920. Esta lei proibia
a divulgação de qualquer método contraceptivo
(a França tinha uma política natalista, que vinha
sendo implementada pelo Estado, desde o final da primeira guerra
mundial).
As
francesas, através de uma associação, fizeram
um grande trabalho de resistência. Para elas, não havia
dúvidas de que as pílulas permitiam que as mulheres
controlassem a procriação; assim, conseguiram expandir
suas possibilidades de atuação em diversos campos.
Permitiram, também, uma maior liberdade em relação
ao prazer sexual.
Para
Ondina Pregnolatto, os contraceptivos hormonais trouxeram realmente
uma liberdade maior para a mulher. Ela diz que recomenda os medicamentos
para as suas pacientes, principalmente para aquelas que apresentam
osteoporose, no que é chamado de tratamento de reposição
hormonal. Mas Ondina diz também que os médicos sofrem
um assédio dos laboratórios farmacêuticos, na
tentativa de convencê-los a recomendar um os seus produtos:
"afinal, são os médicos que prescrevem esses
anticoncepcionais".
Para
Joana, a dinâmica da vida urbana, os espaços reduzidos,
as dificuldades para criar uma família e o modelo de vida
atual, centrado no individualismo, levam as pessoas a reduzir seu
desejo de filhos. "Isso faz com que a opção pelo
uso de algum método anticoncepcional se torne quase uma obrigação.
Assim, somente a escolha por um tipo de método é que
se pode considerar como individual", diz ela.
Mas
mesmo assim, ela lembra que para uma menina pobre, por exemplo,
por mais informações que tenha adquirido na escola,
em panfletos, leituras, amigas, mídia etc., dependendo das
relações familiares, não terá formas
de comprar o produto ou de comparecer ao "posto" de distribuição.
A família, os vizinhos, os amigos, certamente estarão
prontos a denunciar a menina para os pais. E o castigo será
certo.
Para
ela é interessante observar como nossa sociedade instituiu
o sexo como "prazer", mais do que como forma de reprodução,
mas, ao mesmo tempo, mantém um grande tabu em torno deste
"prazer". "E, ainda há quem se espanta diante
da gravidez das adolescentes", finaliza Joana.
(SP)
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