Ciência
e religião: um diálogo possível
Nos
últimos 50 anos, um movimento de "reconciliação"
entre ciência e religião vem crescendo na sociedade,
partindo, em boa parte, da própria comunidade científica.
A ponto de a própria Associação Americana para
o Progresso da Ciência (AAAS) ter lançado projetos
para promover tal aproximação e realizar, nos seus
encontros anuais, seminários sobre a relação
religião-ciência. Outras instituições
ao redor do mundo promovem discussões semelhantes, como a
Sociedade Européia para o Estudo da Ciência e da Teologia,
sediada na Universidade de Leiden, na Holanda, cujas conferências
realizam-se desde 1986.
Trata-se
de duas áreas que tem metodologias muito diferentes. Na opinião
do teólogo Eduardo Rodrigues da Cruz, da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a diferença
de métodos não implica em uma incompatibilidade entre
as duas áreas. Na verdade, Cruz prefere falar em uma relação
entre ciência e teologia ao invés de entre ciência
e religião, pois a teologia é um estudo racional baseado
em fontes empíricas. O psicólogo Geraldo José
de Paiva, do Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo (USP), também rejeita a comparação direta
da epistemologia da ciência com a da própria religião.
"Não é uma questão objetiva", avalia, "é
como comparar ciência e responsabilidade social ou mesmo ciência
e arte". Apesar de, em outras épocas, sob outras perspectivas,
essas questões terem podido ser mais concretas. Esse tipo
de consideração levou, em 1989, a Sociedade Européia
para o Estudo da Ciência e da Religião, uma das mais
importantes organizações internacionais sobre o assunto,
a mudar o próprio nome, substituindo "Religião" por
"Teologia".
Desfazendo
estereótipos
Segundo Cruz, as duas áreas passam a parecer mais compatíveis
quando se leva em conta que a associação da ciência
com empirismo puro e da teologia apenas com Revelação
divina são apenas estereótipos. Segundo ele, a teologia
possui um empirismo e uma racionalidade que vão muito além
da mera dedução a partir de dogmas revelados. Suas
fontes empíricas são a experiência religiosa
pessoal dos crentes e os dados fornecidos pelos exegetas, que analisam
os livros sagrados que contêm as revelações.
"A teologia trabalha muito mais com a experiência religiosa
do que efetivamente a partir de dogmas", diz. Além disso,
"esses dogmas também são frutos de um longo processo
religioso, às vezes com milhares de anos, e essas escrituras
que são associadas à revelação divina
não caíram prontas, são resultado de séculos
de escrita".
Há
uma terceira fonte de dados empíricos da teologia: a própria
ciência. Nos últimos séculos, os teólogos
têm dialogado muito, para recolher material empírico,
com as ciências sociais e da natureza. Cruz conta que, para
interpretar adequadamente e melhor estabelecer a doutrina da criação,
os teólogos vão conversar com teóricos da evolução,
cosmólogos, arqueólogos e antropólogos. Desta
forma, entre ciência e teologia já existe um diálogo.
O estereótipo
também aparece com relação à objetividade
da ciência. Diversos filósofos, como Thomas Kuhn, Karl
Popper e Imre Lakatos, têm mostrado que as teorias científicas
possuem uma certa margem de independência dos fatos -- os
fatos empíricos não determinam totalmente as teorias
-- e que, na prática, as pesquisas científicas não
se pautam exclusivamente pelo método científico "tradicional",
havendo diversos fenômenos sociais envolvidos na produção
científica.
Desta
forma, Cruz avalia que o grau de racionalidade comum entre a teologia
e a ciência é grande, "ao se relativizar os estereótipos
e procurar ver o que está por detrás deles." Além
disso, segundo o pesquisador, a grande maioria dos teólogos
abomina a postura fundamentalista de interpretar ao pé da
letra as escrituras sagradas -- atitude que poderia levar, por exemplo,
a admitir que o mundo tem apenas 6 mil anos de idade, para não
falar em inúmeras violências físicas e culturais.
Fundamentalismo
religioso
Tais interpretações levam a noções incompatíveis
com o conhecimento científico, mas trata-se de uma postura
minoritária. Geraldo José de Paiva explica que "a
Bíblia foi escrita em uma determinada época, com uma
determinada cultura, com uma determinada linguagem e segundo certos
gêneros literários. Os gêneros literários
têm que ser reconhecidos para se saber o que o autor quer
dizer". Paiva exemplifica com o Cântico dos Cânticos,
da Bíblia cristã, que está recheado de metáforas.
No versículo 15 do capítulo 5, diz: "as suas pernas
são como colunas de mármore, colocadas sobre bases
de ouro refinado." O sentido não é que as pernas sejam
como colunas de mármore, mas que são "lindas e belas
e majestosas", interpreta.
Paiva
classifica algumas dessas interpretações como idolatrias
-- por exemplo, quando alguém acha que ocorreu um terremoto
no Marrocos porque os muçulmanos comeram carne de porco.
E as idolatrias são rejeitadas fortemente pelas religiões.
Assim, ao combater tais interpretações ao pé
da letra, Paiva diz que a ciência realiza uma função
importante para as próprias religiões. "É muito
bom quando o cientista estabelece certas coisas que contradizem
uma imagem ou um conceito falso de Deus", diz. "Quando os cientistas
dizem que cientificamente não se pode estabelecer uma correlação
entre o terremoto e comer carne de porco, eles estão, na
verdade, purificando o conceito".
Correntes
alternativas
Cruz vai mais além, defendendo uma aliança entre religião
e ciência contra abordagens alternativas que ele caracteriza
como híbridas -- referindo-se a correntes contemporâneas
ligadas, por exemplo, a certos movimentos milenaristas e às
correntes holistas contemporâneas, como o movimento transdisciplinar
e o paradigma da complexidade. Entre os representantes mais populares
de tais correntes estão o físico austríaco
Fritjof Capra e o médico indiano Deepak Chopra. Ao contrário
das interações da ciência com a religião,
as relações com essas correntes não são
amistosas. Estas últimas, na opinião de Cruz, misturam
tradições milenares, como as filosofias orientais,
alquimia e astrologia, com conceitos da ciência e da religião
ocidentais e, ao fazê-lo, "não fazem jus nem a uma
nem a outra". Assim, a incompatibilidade não é apenas
com a ciência: Cruz reconhece essas correntes como uma ameaça
contra as próprias religiões monoteístas (que
aceitam um só deus -- cristianismo, islamismo e judaísmo).
"Porque dilui as barreiras entre o sagrado e o profano, entre a
autonomia da divindade e a autonomia do mundo criado, e postula
princípios que seriam até maiores do que a própria
divindade".
Ao
contrário do que acontece com a teologia, Cruz não
vê possibilidade de convergência entre essas correntes
e a ciência. A razão é que elas "não
têm algo que é essencial tanto na teologia quanto nas
ciências modernas, que é a autocrítica: a possibilidade
de detectar problemas de cunho empírico ou lógico
e reformular as teorias."
Mesmo
conceitos científicos mal interpretados podem influenciar
beneficamente os rumos da sociedade. Paiva reconhece, por exemplo,
que o princípio da indeterminação, ou da incerteza,
de Heisenberg, da mecânica quântica, "mesmo que seja
mal compreendido por muitos, abriu uma porta para a subjetividade",
influenciando a epistemologia de outras áreas da ciência.
Paiva exemplifica com sua própria área, a psicologia.
"Eu mesmo peguei uma época em que a psicologia acreditava
numa objetividade pura do que estava acontecendo." Agora, "se percebe
que isso não é real". O princípio da indeterminação,
conseqüência dos postulados da mecânica quântica,
diz que há um limite mínimo na incerteza para qualquer
medida física, intrínseco à Natureza, o que
parece relacionar o observador com o fenômeno observado de
uma forma até então inédita na física.
Mudança
afetiva
Isso não quer dizer que essa mudança na psicologia
seja uma conseqüência direta do princípio da indeterminação;
trata-se de um movimento muito mais amplo. Tanto esse exemplo como
a mudança nas relações entre ciência
e religião nos últimos 50 anos estão ligados,
segundo Paiva, às mudanças culturais na década
de 1960. "Não foi só a cabeça, foi a disposição
das pessoas." Por exemplo, o igual direito de todas as culturas
se expressarem e terem voz "modificou completamente as bases da
epistemologia. Hoje se está respeitando muito mais o conhecimento
como um produto do sentido produzido por agrupamentos humanos em
relação ao ambiente que os cerca e em relação
à sua própria posição nesse ambiente."
Além
disso, Paiva identifica uma relação com uma fragmentação
cultural na sociedade ocidental, em diversos níveis. A reação
a essa fragmentação, uma busca de unidade, teria levado
à relativização das posições
epistemológicas das ciências e a uma nova relação
da ciência com outros campos, notadamente a religião.
Paiva adverte, entretanto, que junto com isso vieram tentativas
de estabelecer um "concordismo apressado" entre ciência e
religião e outras áreas, como o misticismo.
Essa
fragmentação cultural seria conseqüência
das correntes intelectuais derivadas do método experimental
da ciência e da superespecialização, por muitos
identificada com o conceito de pós-modernismo (Paiva prefere
chamar de "modernidade avançada"). O pesquisador, na verdade,
se questiona até que ponto essas correntes levaram a tal
fragmentação e, também, até que ponto
existe, contra essa fragmentação, um movimento compensatório
que leve a novas posturas. Mesmo assim, ele enfatiza que tal movimento
seria não somente racional e lógico, mas também
afetivo, "no sentido de se recompor uma certa unidade perdida."
E esse desejo de uma unidade humana também atinge epistemologicamente
a própria ciência, como ele exemplificou na psicologia.
A ênfase
no afetivo também aparece na religiosidade dos próprios
cientistas, de acordo com uma pesquisa feita por Paiva, em 1995.
Analisando entrevistas feitas por ele com cientistas da USP já
experientes nas áreas de física, zoologia e história,
a conclusão foi de que nenhum deles optou pelo repúdio
ou pela aceitação da religião por motivos relacionados
à sua ciência. Fizeram suas escolhas por "uma espécie
de posicionamento geral da vida do cientista como um ser humano."
Mesmo
que alguns cientistas afirmem o contrário, "são afirmações
colocadas dentro de um certo contexto específico", diz Paiva.
"Quando você sai daquele contexto, essas mesmas pessoas têm
um comportamento muito diferente em relação a essa
ligação entre ciência e religião." No
caso de se ensinar ou não religião para os filhos,
o raciocínio não é científico, mas de
inserção social, de dar um certo sentido de moralidade
para eles ou de possibilitar uma certa experiência que mais
tarde eles poderão acolher ou rejeitar, ao invés de
não possibilitá-la. Pesquisas na Europa, em lugares
como a universidade de Nijmegen, apresentam resultados semelhantes.
"O que mostra que o cientista, felizmente, antes de tudo é
um ser humano", conclui Paiva.
Essa
preponderância do afetivo sobre o racional na relação
pessoal dos cientistas com a religião é corroborada
pela evolução da proporção de cientistas
religiosos e ateus ao longo do século XX. Desde as primeiras
pesquisas, publicadas em 1916 pelo suíço James Leuba
(um dos primeiros psicólogos da religião), até
as últimas, como as publicadas em 1997 por Edward Larson
e Larry Witham na revista britânica Nature, não se
registrou mudança apreciável nessa proporção.
Segundo a pesquisa de Larson e Witham, cerca de 39% dos cientistas
pesquisados crêem em um deus, 45% não crêem e
15% têm dúvida ou são agnósticos (não
assumem nem a crença nem a descrença).
A descrença,
entretanto, é maior entre os cientistas mais "eminentes".
De acordo com uma nova pesquisa realizada pelos mesmos autores em
1998, restringindo-se a esses cientistas mais eminentes, apenas
7% deles crêem num deus, 72% não crêem e 21%
têm dúvida ou são agnósticos.
(RB)
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