A
conservação de sítios de arte rupestre e a
necessidade de profissionais especializados - Um exemplo de formação
de especialistas
Maria
Conceição Soares Meneses Lage
Jóina Freitas Borges
No
período de junho de 2002 a julho de 2003 o Núcleo
de Antropologia Pré-Histórica (NAP) da Universidade
Federal do Piauí (UFPI) ofereceu o I Curso de Especialização
Profissionalizante (lato sensu) em Conservação
de Arte Rupestre.
Foi
a primeira vez no Brasil que se ofereceu um curso nesta área,
estando habilitados a se inscrever para as 45 vagas oferecidas qualquer
portador de diploma de curso de graduação (Plena).
Com o objetivo de atender a uma demanda externa ao Piauí
o curso foi ministrado de forma modular em 360 horas, distribuídas
em dois módulos de 180 (cento e oitenta) horas cada, e de
modo intensivo das 8 às 12 horas e de 14 às 18 horas
de 2a a 6a feira, e de 8 às 12 horas no sábado.
As
aulas teóricas foram ministradas em Teresina, no campus universitário
da UFPI e a parte prática no município de Castelo
e no Parque Nacional Serra da Capivara (PI), no auditório
do centro de visitantes da Toca do Boqueirão do Sítio
da Pedra Furada
Aula prática no Sítio Pedra do Castelo
(PI)
O curso
foi financiado por taxas individuais (inscrição, matrícula
e mensalidades) pagas pelos alunos, mas o Iphan, o Ibama, a Prefeitura
Municipal de Castelo e a Fumdham colaboraram no sentido de viabilizar
as aulas práticas de campo com liberação de
taxas, alojamentos e alimentação.
Os
sítios rupestres e os problemas de conservação
A arte rupestre faz parte de um tempo longínquo do qual não
temos outras informações senão aquelas fornecidas
pela arqueologia. Os sítios de arte rupestre, então,
fazem parte do patrimônio cultural da humanidade[1]
por representarem um pouco desse passado do homem.
Deve-se
reconhecer, em primeiro lugar que, como patrimônios da humanidade,
os sítios de pinturas e gravuras rupestres são monumentos
de valor incontestável e que, enquanto obras de natureza
singular, resultantes da atividade humana e, portanto, da experiência,
do cotidiano, da sensibilidade e das crenças dos homens,
esses sítios são verdadeiras obras de arte e como
tais devem ser tratados, pois eles possuem não só
valor histórico, mas também valor estético.
Diante do reconhecimento da singularidade dos registros rupestres,
nem a instância estética pode ser restaurada, nem a
histórica, sob pena de perda de autenticidade. Este é
um dos principais fundamentos da conservação de sítios
de registros rupestres.
O trabalho de conservação deve se pautar diante desse
reconhecimento, e cada caso deve ser tratado como único,
pois cada sítio é único. Somente o especialista
pode fazer o diagnóstico, propor e efetuar a intervenção,
mediante a natureza complexa que envolve o trabalho de conservação.
Entomologia, microbiologia, geologia, geomorfologia dentre outras
especialidades e especialistas, fazem parte da análise de
um sítio, e quanto mais completa esta análise, melhor
sucedida será a intervenção e melhor preservados
serão os registros.
Por
que um curso de conservação de arte rupestre
A riqueza arqueológica do Piauí passou a ser conhecida
desde os anos 70, quando uma equipe interdisciplinar dirigida pela
professora Niède Guidon iniciou pesquisas na área
do Parque Nacional da Serra da Capivara - sudeste do estado, e evidenciou
uma grande quantidade de sítios, além de datações
muito recuadas para uma ocupação humana na América
(50.000 anos antes do presente).
O Piauí é detentor de importante concentração
e variedade de sítios de arte rupestre de norte a sul do
estado. Hoje, conhece-se mais de mil sítios distribuídos
em mais de 60 municípios. A arte presente no território
piauiense é multicolor e rica em detalhes. Existem casos
em que é possível identificar cenas da vida diária
dos grupos humanos que a executaram como caça, dança,
parto, acrobacia, sexo, luta e execução. No entanto,
o avançado estado de destruição em que se encontravam
alguns desses sítios de arte rupestre levou-nos a idealizar
trabalhos visando sua preservação
Sítio
Pedra do Castelo, com presença de térmitas
Face
a esse acelerado processo degradativo, realizaram-se investigações
visando o conhecimento dos agentes implicados nesse processo, para
restituir o seu equilíbrio e a sua proteção
através de ações interventórias ou de
prevenção, a fim de evitar o rápido desaparecimento
dessa rica fonte de dados sobre as culturas que habitaram a região
no passado. No entanto, foram efetuados trabalhos pontuais, limitados
apenas a sítios do Parque Nacional da Serra da Capivara e
do Parque Nacional de Sete Cidades, em razão do reduzido
número de especialistas nesta área existentes no país.
Este curso permitiria, portanto, formar uma primeira turma de especialistas
brasileiros para trabalharem com a preservação do
patrimônio arqueológico rupestre .
Objetivos
do curso
O objetivo principal foi especializar profissionais portadores de
graduação (licenciatura e/ou bacharelado), visando
dotá-los de conhecimentos básicos (teóricos
e práticos) em Conservação de Sítios
de Arte Rupestre para atuarem na preservação do patrimônio
arqueológico rupestre do país.
Plano
curricular
O I Curso de Especialização em Conservação
de Sítios de Arte Rupestre teve como fundamentos legais a
Resolução No 01/01 CFE, que fixa condições
de validade dos certificados de cursos de pós-graduação
lato sensu; a Resolução No 113/01 Cepex/UFPI e a Resolução
no 04 de 13/08/97 do CNE.
As disciplinas da grade curricular tiveram caráter obrigatório
e foram ministradas em dois módulos intensivos:
O Módulo
I, foi integrado por 7 (sete) Disciplinas Teórico-Práticas
(Análises e Estudos Prévios em Conservação
de Arte Rupestre, Tópicos em Microbiologia, Tópicos
em Entomologia, Ecossistemas, Geoquímica e Conservação,
Teoria da Restauração e Legislação Ambiental/Cultural),
e desenvolvido em quatro semanas dos meses de junho e julho de 2002.
O Módulo
II, integrado por seis disciplinas teórico-práticas
(Iniciação à Conservação e Primeiros
Auxílios de Bens Culturais Móveis, Técnicas
de Estudo de Conservação Estrutural de Sítios
Arqueológicos, Educação Ambiental, Tópicos
de Arte Rupestre e Conservação, Tópicos de
Geologia e Geomorfologia e Seminários), foi desenvolvido
nos meses de novembro e dezembro de 2002.
As
disciplinas foram ministradas por sete professores doutores e seis
mestres, dentre os quais os professores Jean Vouvé da Universidade
de Bordeaux, França, e Jacques Brunet do Laboratoire de
Recherche des Monuments Historiques do Ministério da
Cultura, também da França.
Turma no Campus da UFPI
Considerações
finais
O resultado obtido na oferta deste curso foi muito positivo, sobretudo
pela participação de alunos de outros estados e da
Argentina.
Do
ponto de vista do rendimento, pode-se afirmar que os alunos que
já trabalhavam em arqueologia ou em conservação
ambiental levarão para suas instituições, contribuições
importantes que os auxiliarão no desenvolvimento de suas
futuras atividades.
Não
é esquecida, porém, a problemática que envolve
o mercado de trabalho para esses profissionais. Existe o grande
paradoxo de sítios necessitando urgentemente de trabalhos
de conservação, porém quem se encarregará
de contratar os especialistas? O Iphan? O Ibama no caso de parques
nacionais? As universidades? Ou a iniciativa privada como forma
de compensação ambiental cultural em obras de grande
impacto ?
É
preciso provocar discussões nesse sentido. Os sítios
de arte rupestre nos fornecem uma infinidade de informações
dos grupos humanos que os executaram, nós temos o dever e
a obrigação de bem preservá-los, portanto,
não seria essencial que cada arqueólogo inserisse
em seus projetos de pesquisa um item dedicado a estudos com a preservação
dos sítios?
Um
trabalho exemplar neste sentido vem sendo realizado no Parque Nacional
Serra da Capivara pela Fumdham há pelo menos 12 anos. Segundo
as Cartas Internacionais que orientam os trabalhos de conservação,
as atividades desenvolvidas no Parque Nacional da Serra da Capivara
também estão associadas a uma finalidade social, envolvendo
intensamente a comunidade local nos programas de conservação.
Os trabalhos técnicos de manutenção dos sítios,
por exemplo, são realizados por uma equipe de jovens provenientes
dos municípios vizinhos, com formação técnica
empreendida pela própria Fumdham e dirigidos por uma das
autoras do presente documento1.
Mais
ações como essas só trariam benefícios
à arqueologia, pois quão melhor preservados os sítios,
melhores condições de pesquisas e mais avanço
para a ciência. O I Curso de Especialização
Profissionalizante em Conservação de Arte Rupestre
formou a primeira turma de especialistas, agora aos órgãos
e instituições responsáveis resta a ação
no sentido de promover programas de preservação.
Maria
Conceição Soares Meneses Lage é Professora
adjunta da Universidade Federal do Piauí, Pesquisadora Fumdham/CNPq
conceicao@ufpi.br
Jóina Freitas Borges Aluna de especialização
em Conservação de Arte Rupestre - NAP/UFPI
Notas:
1. Nem todos os sítios são
tombados como tal, mas nas Cartas Internacionais, que orientam as
ações sobre os bens culturais, os testemunhos da pré-história
são considerados como bens da humanidade. [voltar]
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