Arqueologia
e Gestão do Patrimônio
Paulo
J.C. Mello
Quando
se pensa em arqueologia geralmente vem à mente as pirâmides
do Egito, a cidade de Machu Pichu ou as aventuras de Indiana Jones.
Ninguém pensa em pequenos fragmentos de panelas cerâmicas,
instrumentos de pedra lascada (quase sempre confundidos pelos não
arqueólogos com simples seixos fragmentados) ou as ruínas
de uma velha casa abandonada.
Apesar
de algumas vezes o trabalho do arqueólogo ter um sabor de
aventura, a maior parte das atividades são desenvolvidas
em estafantes trabalhos de campo ou em trabalhos de laboratório
que, geralmente, chegam a ser tediosos (como passar horas analisando
um instrumento de pedra para tentar ver como ele foi confeccionado).
Mas
o que é arqueologia? A origem da palavra vem do grego (arkhaios,
antigo, e logos, ciência) significando o estudo das
antiguidades. No entanto, em uma definição mais ampla,
pode-se dizer que a arqueologia trata do estudo das sociedades,
através da cultura material fabricada e utilizada por elas,
ou seja, através da arqueologia podemos estudar não
só as sociedades antigas mas também as atuais.
Arqueologia,
portanto, pode ser dividida em histórica (quando tem-se documentos
escritos que ajudam a estudar a sociedade em questão) ou
pré-histórica. Os estudos pré-históricos
e o pré-historiador operam somente naquelas áreas
e períodos em que não há documentos escritos.
Assim,
conforme pode ser visto em Prous (1999:20), "a arqueologia
é essencial para o pré-historiador, que dela não
pode prescindir, e pode, também, ser utilizada por outros
pesquisadores da área das chamadas ciências humanas:
o historiador e o antropólogo têm, através dela,
acesso a informações não mencionadas - ou que
aparecem deturpadas nos textos".
Não
vamos discutir aqui os métodos e técnicas utilizados
pelos arqueólogos, tanto em campo, para localizar os sítios
e recolher o material, como em laboratório, para analisar
o material coletado.
Trataremos
da preservação desse patrimônio, patrimônio
que é pouco valorizado aqui no Brasil, em função,
principalmente, de sua pouca monumentalidade (com exceção
de sítios com arte rupestre ou quando se encontram enterramentos
humanos, os sítios arqueológicos passam completamente
desapercebidos. Quem liga para uns caquinhos de cerâmica?)
e da não identidade cultural da população atual
com a pré-histórica (a arqueologia pré-histórica
no Brasil é marcada pela falta de identificação
étnica e cultural com o passado indígena, diferentemente
do que ocorre em alguns países vizinhos, como Peru e Bolívia,
por exemplo).
Um
outro problema é que esse patrimônio é extremamente
frágil: uma vez que os sítios arqueológicos
encontram-se no sub-solo ou na superfície e qualquer atividade
que impacte o solo irá, necessariamente, causar algum dano
ao patrimônio.
Existem
dois principais agentes destrutivos, ambos humanos. Um são
as grandes obras de engenharia, como a construção
de estradas, usinas hidrelétricas etc, onde as ameaças
ao patrimônio são facilmente perceptíveis. O
outro, a intensificação agrícola que causa
uma destruição mais lenta, mas atinge um âmbito
muito maior, pois cada vez há mais porções
de terras que se abrem à agricultura mecanizada.
Há
outra atividade humana destrutiva que não devemos esquecer:
a exploração econômica do sítio (no caso
dos sambaquis, por exemplo, ou das cavernas de calcário).
Sendo
definido e protegido pela Constituição Federal de
1988 (Artigos 20, 23 e 216), o patrimônio cultural, onde se
inclui o patrimônio arqueológico, conta ainda em seu
favor com dois conjuntos de leis:
- Um
mais antigo, que trata especificamente do patrimônio cultural
(Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que organiza
a proteção do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional e a Lei nº 3.924, de 26 de julho
de 1961, que dispõe sobre os monumentos arqueológicos
e históricos);
- e
outro mais recente, tratando da proteção ambiental,
mas que apresenta várias referências ao patrimônio
arqueológico (podemos citar, entre outras, a Lei nº
6.766, de 19 de dezembro de 1979, que dispõe sobre o parcelamento
do solo urbano; Lei 7.347 de 24 de julho de 1985, que disciplina
a ação civil pública de responsabilidade
por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos
de valor artístico, estético, histórico e
turístico; Decreto nº 95.733, de 12 de fevereiro de
1988, que dispõe sobre a inclusão no orçamento
de projetos e obras federais de recursos destinados a prevenir
ou corrigir prejuízos de natureza ambiental, cultural e
social decorrente da execução desses projetos e
obras, Decreto nº 99.540, de 21 de setembro de 1990, que
institui a Comissão Coordenadora do Zoneamento Ecológico-Econômico
do Território Nacional)
Tanto
a legislação ambiental como aquela sobre o patrimônio
"refletem o contexto histórico em que foram elaboradas.
A legislação sobre patrimônio cultural (de 1937
e de 1961) não estava preocupada com a possibilidade de ações
lesivas ao patrimônio como as que se impuseram após
as décadas de 1960 e 70 com os grandes projetos desenvolvimentistas,
tanto no que se refere a sua envergadura quanto a sua quantidade"
(Santos, 2001:38).
É
a partir dessa época (década de 1970), primeiramente
nos EUA, que a arqueologia começa a experimentar um desenvolvimento
sem precedentes, com o surgimento da chamada Gestão de Recursos
Culturais, quando começou-se a perceber que, assim como alguns
recursos naturais, os restos arqueológicos são frágeis,
estão expostos ao perigo e, diferentemente de outros recursos
culturais, representam aspectos únicos, finitos e não
renováveis da herança cultural. Esses recursos, portanto,
devem ser tratados e gerenciados para assegurar sua sobrevivência
(Kerber, 1994).
Esse
fato causou uma mudança na profissão de arqueólogo,
que passa de estritamente acadêmica para uma ocupação
do 'mundo real', na qual a legislação e a política
pública são um dos componentes principais.
Assim
é que a Gestão de Recursos Culturais se torna responsável
pelo emprego da vasta maioria dos arqueólogos, e serve como
principal fonte de financiamento para muitas das pesquisas conduzidas
no país.
Aqui
no Brasil isso ocorreu a partir da assinatura da resolução
do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama nº 001/86), em
23/06/1986, onde foram estabelecidas as definições,
as responsabilidades, os critérios básicos e as diretrizes
gerais para o uso da Avaliação de Impacto Ambiental.
Ou seja, dependendo da magnitude da obra de engenharia a ser realizada,
seria necessário que se fizesse um diagnóstico da
área a ser impactada pelo empreendimento, bem como se propusesse
medidas para a proteção do patrimônio a ser
afetado.
Um
ponto central é que a proteção não significa
necessariamente preservação, pois, na prática,
nem todos sítios arqueológicos podem ser preservados,
não podem nem mesmo ser estudados com um grande nível
de intensidade, uma vez que é impossível escavar todos
os sítios de uma área, ou escavá-los totalmente.
Não
existindo uma alternativa para o empreendimento, como mudar o traçado
de uma rodovia, ou a localização de uma barragem (o
que não impediria, necessariamente, que se atingisse outros
sítios - a solução, radical, seria a não
execução da obra) a proteção pode, como
costuma, ser a mitigação dos efeitos adversos através
da escavação do sítio ou, na realidade, de
uma porção dele antes de sua destruição
ou perturbação. Assim, o sítio e a maior parte
do seu conteúdo é perturbado ou destruído pelo
projeto de impacto enquanto uma amostra (idealmente representativa)
é coletada e analisada, conservando-se, assim, as informações
contidas no sítio.
O gerenciamento
gira, portanto, em torno de decisões relacionadas a qual
sítio preservar (deixar intacto), qual conservar (escavar
e interpretar), e qual permitir a destruição.
Apesar
de perante a Lei todos os sítios serem protegidos, nem todos
têm igualmente o mesmo potencial. A chave, aqui, está
no que chamamos de 'significância' , ou seja, o valor que
é dado pela sociedade, ou grupos dentro dela, e que é
estabelecido somente dentro de contextos particulares, contextos
estes proporcionados pela economia, padrões estéticos,
conhecimentos comuns ou tradicionais da sociedade.
Uma vez que somente os recursos `significantes` tendem a ser protegidos
(a determinação de que um sítio não
seja significante constitui uma licença para impactá-lo),
o tópico de determinar-se a significância do sítio
arqueológico tem sido amplamente debatido.
Como
pode ser visto, o papel do arqueólogo não se restringe
mais ao entendimento da pré-história (ou da história,
dependendo do caso) mas está também intimamente ligado
à preservação do patrimônio.
Paulo
J.C. Mello é professor do Instituto Goiano de Pré-História
e Antropologia, da Universidade Católica de Goiás.
Referências bibliográficas:
_ KERBER,
J.E. (1994) 'Introduction' In: J.E. KERBER (ed) Cultural resource
management. Archaeological research, preservation plkanning, and
public education in the northeastern United States. Westport, Bergin
& Carvey. p.1-14
_ PROUS, A.(1999) 'Arqueologia, pré-história e história.'
In: M. C. Tenório (org) Pré-história da Terra
Brasilis. Rio de Janeiro, Editora UFRJ. p. 19-32. (Leia
resenha)
_ SANTOS, M.C.M. (2001) Problemática do levantamento arqueológico
na avaliação do impacto ambiental. Dissertação
de Mestrado. USP.
Sites
de interesse:
_ www.Iphan.gov.br
_ www.saa.org
_ www.itaucultural.org.br/arqueologia/
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