Metodologia depende do objeto de estudo
Descobrindo e estudando sítios arqueológicos no Brasil,
os arqueólogos encontram pistas para desvendar a vida das
pessoas que habitaram, ou que já passaram, pelo que chamamos
hoje de território brasileiro. Para tanto, eles lançam
mão de metodologias e técnicas indispensáveis
para transformar as descobertas arqueológicas em conhecimento
sobre o passado.
O centro-sul
do Mato Grosso do Sul é uma das regiões brasileiras
onde o trabalho dos arqueólogos tem sido fundamental para
desvendar um pouco do patrimônio arqueológico nacional.
Jorge Eremites, arqueólogo e pesquisador da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Dourados, conta que o diagnóstico
arqueológico da região onde seria construído
o ramal do gasoduto Campo Grande-Dourados e a termelétrica
de Dourados viabilizou descobertas antropológicas importantes.
"No Brasil existe uma legislação de proteção
ao patrimônio arqueológico que diz que antes da construção
de determinadas obras é preciso fazer um diagnóstico
arqueológico da região", diz Eremites.
"Sem
estudos prévios é possível que a construção
de uma dutovia e de uma termelétrica causem danos irreversíveis
ao patrimônio arqueológico sul-mato-grossense"
conta o pesquisador, um dos responsáveis pelo trabalho. Segundo
ele, este diagnóstico é uma oportunidade também
para se desenvolver metodologias de avaliação da região.
"Juntamente com este diagnóstico estamos elaborando
uma metodologia que conjuga avaliação ambiental, econômica
e sociocultural para a definição de políticas
públicas que visem a implementação de projetos
de desenvolvimento regional, com menos impactos negativos sobre
o meio ambiente e também sobre os seres humanos".
Logo
em uma das primeiras etapas da metodologia aplicada para o diagnóstico
arqueológico, que consistiu na coleta de informações
orais da população local, a equipe de Eremites já
encontrou resultados interessantes. A equipe contou com um informante
Kaiowá, que nasceu na região na década de 20.
Com as informações passadas por este índio,
eles conseguiram localizar 4 cemitérios e 41 antigos locais
de moradia dos índios Kaiowá, por eles chamados de
tekohás. Eremites explica que a população
presente é muito importante para a localização
de sítios, tanto que, depois do levantamento bibliográfico
sobre a arqueologia e história da região a ser estudada,
os arqueólogos buscam informações com os moradores
locais.
Ele
diz que os moradores do interior geralmente têm um conhecimento
apurado sobre certos tipos de sítios arqueológicos,
mesmo distantes há muitas gerações das populações
que habitaram a região no passado. "A população
costuma dar nomes diferentes aos artefatos arqueológicos.
Por exemplo, desenhos feitos em rochas são chamados de letreiros.
Lâminas de machado produzidas a partir de rochas, são
chamadas de pedras de raio. Às vezes, panelas de barro podem
ser chamadas de panelas de bugre". Nomes dos rios, morros,
córregos, também chamam a atenção dos
arqueólogos, pois podem ser indícios de sítios.
Mas, apesar de fundamentais, os relatos orais não são
suficientes para a descoberta dos sítios arqueológicos,
que consiste em um processo muito mais complexo.
Importância
das paisagens na localização de sítios
Depois do levantamento bibliográfico e das informações
orais, Eremites conta que também são utilizadas fotografias
aéreas e imagens de satélite para o reconhecimento
de áreas onde há maior probabilidade da ocorrência
de sítios arqueológicos. São também
realizadas sondagens para verificar se há sítios arqueológicos
não visíveis na superfície dos terrenos.
"Usamos
a tecnologia para 'ler' as paisagens" afirma Eremites. Ele
diz que a concentração de palmeiras ou de árvores
frutíferas na paisagem é um dos indícios da
existência de sítios arqueológicos ligados a
povos indígenas antigos. No caso da Amazônia, as terras
pretas são um indício arqueológico, pois elas
correspondem a antigas aldeias indígenas. "Quando os
índios abandonavam as aldeias, o teto das malocas se decompunha
contribuindo para a formação de uma mancha mais escura
no solo, captada pelas imagens feitas das paisagens" explica
o pesquisador. Outro exemplo são as grandes elevações
na região do Pantanal, conhecidas como cordilheiras
ou capões-de-mato "São elevações
um pouco mais altas em relação ao nível do
terreno adjacente e todas as que conhecemos em determinadas regiões
são sítios arqueológicos" complementa.
Segundo
Eremites, muitas das paisagens que vemos hoje - e pensamos ser intocadas
pelo homem - já sofreram intervenção humana.
"Hoje, podemos afirmar que parte da Amazônia, Pantanal
e Cerrados são resultado da ação de índios
antigos desde há mais ou menos cerca de 10 mil anos. A ação
antrópica é muito maior do que podemos imaginar, e
as paisagens não são tão naturais como pensam
algumas pessoas".
Atenção
nos detalhes
Para Klaus Hilbert, arqueólogo e professor da Pontifícia
Universidade Católica - RS, ao se realizar uma escavação,
os arqueólogos estão, na realidade, escavando pessoas
e não coisas. "Na tentativa de reconstrução
do comportamento humano, ou dos antigos sistemas culturais, tem
que se considerar o contexto". Ele conta que os vestígios
arqueológicos podem ser influenciados pelo comportamento
original das pessoas que usaram ou produziram o artefato, ou por
eventos posteriores.
Escavação no sítio missioneiro
de São Pedro.
crédito: Klaus Hilbert
O estudo
de um sítio arqueológico é minucioso e, em
muitos casos, pode ser bem demorado. Segundo Hilbert, os sítios
localizados e identificados são abordados segundo a importância
e as estratégias necessárias para documentá-lo,
mapeá-lo, e, principalmente, preservar as evidências
materiais.
Uma
das técnicas utilizadas é o quadriculamento dos sítios
localizados, ou seja, dividir o terreno em vários quadrados
de mesma área. "No interior de cada quadrado são
recolhidas evidências (objetos) como fragmentos de cerâmica,
material lítico, ósseo, entre outros", conta
Hilbert. "A localização de cada material observado
é registrada. Os objetos coletados são identificados
e acondicionados de forma específica, antes de serem levados
aos laboratórios para as análises, que são
feitas de acordo com a localização exata do objeto
dentro do sítio", complementa.
Escavação pelo método de "decapagem"
no sítio da Barra Falsa, Charqueada
crédito: Klaus Hilbert
As
condições de conservação do sítio
também determinam como será o estudo do mesmo mas,
ao contrário do que se costuma pensar, sítios bem
conservados dão mais trabalho para os arqueólogos
- pelo menos para a localização dos objetos e evidências
encontradas, que deve ser feita com maior detalhamento, uma vez
que se pressupõe que estes tenham sido pouco alterados em
suas condições originais.
Durante
o levantamento de sítios, os arqueólogos usam muitos
apetrechos, que vão desde objetos para a documentação
fotográfica ou gráfica, aparelhos de localização
por satélite (GPS), e, no mínimo, dois diários
de campo - um individual e um por equipe, onde são feitas
as anotações das descobertas. Tudo isso para documentar
com a melhor precisão possível o sítio e, finalmente,
classificá-lo segundo o sistema estabelecido pelo Iphan (Instituto
Patrimônio Histórico Nacional).
Além
da descrição detalhada do sítio, o cuidado
com os objetos encontrados também demandam a atenção,
o cuidado e o tempo dos arqueólogos. Dependendo da peça,
as técnicas empregadas para a coleta e análise são
diferentes. "O processo de limpeza e remoção
das peças arqueológicas é realizado de forma
cuidadosa, conforme o tipo de material e condições
de conservação. As peças mais frágeis
e importantes têm fichas individuais de recolhimento, objetos
em estado de degradação mais avançado recebem
preparo segundo sua natureza e nível de decomposição",
conta Hilbert.
Fragmentos
de cerâmica com pintura, por exemplo, são guardados
sujos e envoltos em folha de papel. "Cerâmica úmida
deve ser seca à sombra antes de ser guardada em sacos de
papel", lembra Hilbert. Já objetos em decomposição
recebem tratamento químico antes de serem encaminhados ao
laboratório. As ossadas, dependendo do caso, devem ser revestidas
com gase parafinada ou pulverizadas com goma arábica ou cola
solúvel em água. No caso de objetos de madeira, couro,
têxteis ou cestaria, a pulverização é
feita com goma laca. E por aí vão os cuidados dos
arqueólogos com suas descobertas, antes mesmos delas serem
encaminhadas ao laboratório, para, finalmente, serem acondicionadas
em caixas de papelão com a ficha de catálogo.
Com
tanta diversidade de materiais e objetos guardados nos sítios
arqueológicos, dá para entender porque os arqueólogos
precisam conhecer tantas técnicas e metodologias diferentes
"O ideal é que os arqueólogos dominem várias
metodologias para aplicar nos diferentes sítios", conta
Eremites. Ele salienta que existem diferenças entre as metodologias
aplicadas em sítios históricos, que são aqueles
que guardam resquícios das missões jesuítas
no século XVII, por exemplo, e dos sítios indígenas
como os sambaquis, localizados no litoral brasileiro.
Equipe
de Hilbert fazendo levantamento sistemático
em sítio entre dunas no Farol de Santa Marta.
crédito:Klaus Hilbert
Desde
o século XVIII, época provável em que os bandeirantes
descobriram o primeiro sítio arqueológico brasileiro,
as metodologias de estudos de sítios tornaram-se mais modernas,
e têm ajudado os arqueólogos a encontrar muitas coisas.
Em 1990, arqueólogos encontraram, em um único dia,
mais de 100 aterros em uma região do Pantanal onde se acreditava
não existirem muitos sítios. No Rio Grande do Sul,
a escavação de um abrigo-sob-rocha que havia sido
ocupado por índios caçadores-coletores desde cerca
de 8 mil anos atrás, encontrou um pingente de ouro usado
por negros escravos do século XVIII ou XIX, o que significa
que o mesmo abrigo que havia sido usado durante milênios por
índios, foi também usado como moradia por escravos
muito tempo depois.
Hoje,
programas de microcomputadores, uso de satélites e eletromagnetismo,
entre outras inovações tecnológicas, são
ferramentas importantes para os arqueólogos desvendarem os
mais de 9 mil sítios já cadastrados pelo Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, e muitos outros que
ainda não foram descobertos. Mas, mesmo com tanta novidade,
Eremites lembra que "nenhuma das tecnologias modernas substituem
a mente humana, sobretudo a de um arqueólogo com grande experiência
de campo e boa formação teórico-metodológica".
(JS)
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