Reportagens






 
Os avanços da arqueologia histórica no Brasil, um balanço

Pedro Paulo A. Funari

O que é a arqueologia histórica? Tradicionalmente, a arqueologia histórica era entendida como o estudo arqueológico do período posterior à chegada dos europeus no continente americano, mas, hoje, essa definição tem sido posta à prova. Em parte, as mudanças têm sido o resultado das reflexões e propostas de arqueólogos brasileiros. Como foi isso possível? Convém nos voltarmos para a trajetória da arqueologia histórica, desde seus inícios.

A arqueologia, surgida no século XIX, na Europa, esteve preocupada com os vestígios materiais das sociedades que estavam nos fundamentos dos modernos estados nacionais, em particular, a Grécia Antiga e o mundo romano, seguido pelas civilizações médio-orientais (Egito, Mesopotâmia). A arqueologia, na Europa, era e continua sendo de caráter histórico, ligado à História, como estudo das raízes dos próprios europeus. O interesse pela pré-história mais recuada tardaria, para desenvolver-se apenas quando passou a ser importante conhecer o ser humano em geral, mesmo que não diretamente ancestral. Nos Estados Unidos a arqueologia seguiu caminho diverso. Ali, a arqueologia desenvolveu-se como parte da antropologia, como o estudo da cultura material do outro, dos povos ameríndios, em fins do século XIX. Foi apenas na década de 1960 que se surgiu a arqueologia histórica, com esse nome, nos Estados Unidos, para designar o estudo da cultura material dos europeus no Novo Mundo.

De início, a arqueologia histórica americana centrou-se no estudo dos WASPs (anglo-saxões brancos e protestantes), considerados como os fundadores da pátria americana. Pouco a pouco, essa postura estreita e elitista foi sendo superada, com a inclusão, no campo de preocupações e atenção, dos espanhóis e franceses que colonizaram grandes partes do que viria a ser os Estados Unidos e, em seguida, também passou a estudar-se os afro-americanos e os indígenas em contato com a sociedade anglo-americana. Esse alargamento de horizontes foi importante para ultrapassar uma postura contemplativa e que estava preocupada, em grande parte, com a 'beleza' dos costumes burgueses. Passou-se a dar mais atenção às questões sociais, aos conflitos e à diversidade étnica e cultural dos Estados Unidos. No entanto, manteve-se a divisão entre arqueologia Pré-histórica, até 1492, e arqueologia histórica, posterior à chegada de Colombo.

No Brasil, a arqueologia histórica foi importada dos Estados Unidos, ainda durante a ditadura militar, e seguiu, nos seus primeiros passos, os caminhos trilhados na origem, com sua preocupação com os vestígios dos grandes monumentos dos colonizadores, como, em nosso caso, as fortificações. O restabelecimento das liberdades civis, com o fim da ditadura em 1985, e as ampliações de preocupações dos americanos, favoreceram um significativo desenvolvimento da arqueologia histórica no Brasil. Nesses 18 anos, multiplicaram-se os estudos, os centros de pesquisa e a diversidade de abordagens. A importação de modelos interpretativos americanos continua, mas tem havido crescente interesse pelo estudo das particularidades da realidade brasileira. Os modelos americanos partem do pressuposto, talvez válido para os Estados Unidos, de que as relações sociais foram marcadas pelo domínio do capital. No nosso contexto, em que predominam sociabilidades às vezes muito distantes desse ideal burguês, muito mais próxima do patriarcado, os modelos importados nem sempre dão conta, de forma abrangente, da diversidade social brasileira.

Houve, com a volta da liberdade de pesquisa e de abordagens, crescente busca das nossas especificidades. Nessa direção, já na década de 1980, desenvolveu-se a arqueologia histórica das missões jesuíticas, preocupada com os vestígios arqueológicos da interação entre indígenas e europeus. Nos anos 1990, a pesquisa arqueológica expandiu-se para o estudo dos grupos subalternos, das culturas populares e da resistência. O estudo dos quilombos destacou-se, em parte por sua originalidade, já que nos Estados Unidos predominam os estudos de escravos em suas cabines, nas plantations. O estudo arqueológico de refúgios de escravos tem-se desenvolvido em outros países latino-americanos, com destaque para Cuba, preocupados com a recuperação das trocas culturais entre negros, indígenas e europeus que fugiam da opressão e formavam novas comunidades livres. No Brasil, quilombos em Minas Gerais, Goiás e no Nordeste têm sido estudados, com suas diferentes características. O Quilombo dos Palmares, o mais famoso, foi pesquisado e os estudos arqueológicos puderam indicar a originalidade da cultura material do quilombo, habitado por pessoas de diferentes origens étnicas e culturais. Os quilombos mineiros, por outro lado, mostram a simbiose entre as cidades mineradoras e os fugitivos. A arqueologia histórica também tem estudado outros vestígios da resistência, como no caso do estudo dos sertanejos em Canudos, cujos casebres e objetos quotidianos têm sido revelados pela arqueologia. O estudo de cemitérios de 'desaparecidos' do regime militar, assim como em outros países, tem também sido importante para recuperar a memória daqueles que se opuseram ao poder discricionário. O estudo arqueológico da primeira sinagoga das Américas também se insere nessa valorização da diversidade.

A disciplina, surgida nos Estados Unidos, tem passado por grandes mudanças. No contexto mundial, a definição americana, baseada na chegada de Colombo às Américas parece artificial. Na Europa, é mais produtivo considerar a continuidade histórica da antigüidade à atualidade, dando o devido peso aos períodos históricos romano, medieval, moderno, industrial. No Oriente ocorre algo parecido, enquanto na África e na América Latina, as continuidades das populações locais e as tradições européias e orientais (antigas e medievais) também têm sido valorizadas. Como resultado, e com decisiva participação brasileira, organizam-se sessões em congressos internacionais, livros, revistas, enciclopédias a partir de uma definição menos estreita da arqueologia histórica, como o estudo da cultura material das sociedades com escrita, como no livro organizado Historical archaeology, Back from the edge (Londres e Nova Iorque, Routledge, 1999, edited by Pedro Paulo Funari, Martin Hall e Siân Jones) e na revista International journal of historical archaeology (Nova Iorque, Kluwer). A arqueologia histórica brasileira tem crescido muito, em especial naquilo que pode oferecer de mais original, no estudo tanto das particularidades da cultura material brasileira, como ao agenciar pontos de vista também próprios. Ao estarmos na encruzilhada de influências, podemos, muitas vezes, propor interpretações originais e inovadoras. O número de estudiosos interessados na arqueologia histórica tem aumentado, os cursos de pós-graduação têm acolhido cada vez mais pesquisas nessa área, livros têm sido publicados. As perspectivas para seu desenvolvimento são, portanto, as melhores e as novas gerações de estudiosos estão a demonstrar a sua vitalidade. A diversidade de abordagens e sua inserção na ciência mundial atestam seu amadurecimento.

Pedro Paulo A. Funari é professor do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp) e do Programa de pós-graduação em arqueologia da USP.

 
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Atualizado em 10/09/2003
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