A
colonização da América do Sul
Renato
Kipnis
A questão
da temporalidade da ocupação humana no Brasil é
um dos problemas mais antigos da arqueologia brasileira. Desde os
trabalhos pioneiros de Peter W. Lund, há mais de 150 anos
atrás, questões como a cronologia das primeiras ocupações
humanas, a contemporaneidade dessas ocupações com
uma megafauna hoje extinta, e as origens biológicas das primeiras
populações têm sido investigadas e debatidas
nos meios acadêmicos. Ainda hoje, não há um
consenso quanto a estas questões. Asserções
quanto a uma ocupação datada de pelo menos 35.000
anos foram feitas para o sítio arqueológico Pedra
Furada localizado na região de caatinga do nordeste brasileiro,
no estado do Piauí. Controvérsias quanto à
natureza humana de possíveis artefatos líticos, quanto
à natureza das amostras de carvão datadas e a associação
destas amostras com o material lítico, e quanto a problemas
estratigráficos e tafonômicos (i.e., formação
do sítio arqueológico) são questões
ainda não resolvidas. Existe na realidade um problema intrínseco
com o material arqueológico e o contexto em que este foi
encontrado em Pedra Furada, de tal maneira que mesmo que fossem
encontradas, no futuro, evidências indiscutíveis de
uma ocupação humana na América há mais
de 35.000 anos, ainda assim elas não iriam validar os achados
de Pedra Furada.
Evidências
bem documentadas da ocupação humana no Brasil datam
do final do Pleistoceno, com as datações radiocarbônicas
mais antigas atingindo ca. 11.000 AP. Apesar de que mesmo essas
datações necessitam de um melhor refinamento cronológico,
elas têm tido uma maior aceitação nos últimos
anos por parte da comunidade acadêmica internacional. Os principais
sítios datados do Pleistoceno Terminal com ótimas
evidências arqueológicas (e.g., cultura material indiscutível,
associações estratigráficas bem claras, restos
humanos etc), que têm sido objeto de estudos nas duas últimas
décadas, estão localizados na Amazônia (sítio
Caverna da Pedra Pintada), no Mato Grosso (sítio Santa Elina),
em Goiás (vários sítios na região de
Serranópolis), em Minas Gerais (sítios Lapa do Boquete,
Lapa dos Bichos, Santana do Riacho, Lapa Vermelha), em Pernambuco
(sítios Brejo de Madre de Deus-Abrigo 3 e Chão do
Cabloco), e no Piauí (níveis superiores dos sítios
Boqueirão da Pedra Furada e Sítio do Meio).
Apesar
da importância e do apelo popular sobre a antiguidade da ocupação
pré-histórica do Brasil, esta discussão tem
que se dar dentro de um contexto paleoantropológico mais
abrangente, no qual questões sobre evolução
humana, tanto nos seus aspectos biológicos quanto culturais,
sejam estudadas dentro da perspectiva evolutiva e histórica
das grandes mudanças que ocorreram durante o período
pós-glacial no mundo.
Durante
o intervalo de tempo compreendido entre o final da última
glaciação (ca. 18.000 BP [Before present=antes
do presente]) e o começo do pós-glacial (i.e., antes
do ótimo climático do Holoceno, ca. 5.000) populações
humanas colonizaram as Américas, a última região
do planeta a ser ocupada pelo Homo sapiens (exceto a Antártica)
e estavam habitando uma vasta variedade de sistemas ecológicos
ao redor do mundo. Mais notadamente, durante o período entre
13.000 e 8.000 anos atrás, a história da humanidade
presenciou mudanças econômicas extraordinárias,
de uma economia forrageira universal em direção ao
desenvolvimento e à difusão de estratégias
de produção alimentar (i.e., domesticação
de plantas e animais).
Considerando
a história evolutiva humana como sendo o tempo entre o último
momento que nós compartilhamos um ancestral comum com os
chipanzés, nossos parentes mais próximos da ordem
dos primatas, e hoje; e se utilizamos este período de 6 milhões
de anos como uma medida, o advento da produção alimentar
é extremamente rápido. Se tornarmos 6 milhões
de anos equivalentes a uma hora, o período de 5 mil anos
(13.000-8.000 anos), quando as populações humanas
começaram a domesticar plantas e animais, representa somente
3.0 segundos. Três segundos durante os quais grandes mudanças
ocorreram na dieta humana, na tecnologia, no padrão de assentamento
e na organização social. Estas mudanças, mais
conhecidas como broad spectrum revolution, têm sido registradas
em todos os continentes, e em diferentes contextos ecológicos.
Após
o final do último Máximo Glacial ca. 18.000 anos atrás,
grandes áreas do planeta foram colonizadas por populações
humanas pela primeira vez, o número de assentamentos humanos
aumentou, a mobilidade das sociedades de caçadores-coletores
reduziu, o processo inicial da domesticação de plantas
e de animais teve início, mudanças significativas
no modo de processar e armazenar alimentos ocorreram, e organizações
políticas e sociais ficaram mais complexas. Apesar de algumas
destas mudanças terem sido generalizadas, elas tiveram uma
temporalidade diferente e variações locais. Por exemplo,
tem sido sugerido que no Oriente Médio e na Mesoamérica
recursos alimentares provindos de plantas e de animais silvestres
que apesar de estarem disponíveis anteriormente na natureza
não eram muito exploradas, tornaram-se repentinamente importantes,
se não dominantes, elementos da dieta local no final do Pleistoceno
e no começo do Holoceno. Na Austrália e nas terras
baixas da América do Sul as mudanças nas estratégias
de subsistência em conjunto com o aparecimento de novas tecnologias
e mudanças no padrão de assentamento ocorreram mais
tardiamente, próximo ao Holoceno Médio, bem depois
das primeiras evidências de mudanças similares em outras
regiões, e não associadas às grandes mudanças
climáticas do Pleistoceno Terminal.
É
interessante notar que apesar da diversidade de sistemas adaptativos
durante esse período, o modelo até recentemente mais
aceito para a colonização das Américas era
um modelo monolítico (ibig-game hunters), baseado principalmente
no registro arqueológico da América do Norte. Esta
hipótese advogava que por volta de 12 mil anos atrás
grupos de caçadores-coletores com uma economia de subsistência
voltada para a caça de grandes animais (e.g., mamute, bisão
etc) atravessaram o estreito de Bering, da Sibéria para o
Alaska, e começaram a colononizar o continente americano.
Estes grupos tinham uma tecnologia voltada para a produção
de artefatos bifaciais que na América do Norte desenvolveu-se,
entre outras, nas famosas pontas de lanças caneladas (e.g.,
pontas Clovis, Folsom e Dalton). Este modelo sugeria que deveríamos
achar evidências parecidas no restante do continente, na América
Central e na América do Sul. Ou seja, a medida que as primeiras
populações humanas colonizaram o continente, de norte
para sul levaram consigo seus hábitos culturais (i.e., caça
especializada em grandes animais e produção de pontas
caneladas).
Nos
últimos 10 anos esse modelo tem sido refutado em vários
aspectos. Datações contemporâneas às
primeiras ocupações da América do Norte têm
sido geradas para vários sítios da América
do Sul e até datações mais antigas, como é
o caso de Monte Verde (ca. 12.500), no sul do Chile. Isto sugere
que a colonização da América do Norte deu-se
antes de 12.500 AP. Uma outra explicação, muito menos
plausível e sem nenhuma evidência empírica,
é que a colonização da América do Sul
foi feita através do Pacífico.
Pesquisas
recentes na América do Norte têm demonstrado que o
modelo de caçadores especializados em megafauna não
explica a variabilidade do registro arqueológico associado
com as primeiras ocupações, e que uma economia de
subsistência generalizada seria mais plausível. Na
América Central e América do Sul são relativamente
raras as evidências de caça de megafauna. À
indústria bifacial presente em várias regiões
da América Central e América do Sul não parecem
estar associadas as pontas caneladas da América do Norte,
como deveriam estar segundo o modelo big-game hunters.
No
Brasil não há nenhuma evidência de que a megafauna
foi explorada pelos grupos que aqui chegaram no final do Pleistoceno.
O problema aqui pode residir em uma questão temporal. Ainda
não sabemos ao certo se houve uma contemporaneidade entre
megafauna extinta e populações humanas Apesar do crescente
número de estudos paleontológicos entre nós,
não temos a mínima idéia sobre a cronologia
do aparecimento e da extinção de nenhuma das espécies
de mamíferos do Brasil. No Brasil Central, onde os estudos
de paleontologia brasileira se iniciaram há mais de 150 anos,
até este ano só tínhamos uma datação,
e esta indireta, para espécies extintas. Carvões associados
a níveis estratigráficos, nos quais ossos e coprólitos
de uma preguiça terrícola (Catonyx cuvieri) foram
escavados, no sítio arqueológico de Lapa Vermelha
IV na região de Lagoa Santa foram datados em 9.580±200
AP. Recentemente pesquisadores do Laboratório de Estudos
Evolutivos Humanos da Universidade de São Paulo (LEEH/USP)
obtiveram uma datação de 9.990±40 AP para os
ossos de uma preguiça gigante da mesma espécie da
de Lapa Vermelha IV encontrada no sítio paleontológioco
Cuvieri, também na região de Lagoa Santa. A ocupação
humana mais antiga para a região é de ca. 10 mil anos
atrás1. Portanto é possível
que em Lagoa Santa as primeiras populações tenham
chegado na região logo após a extinção
da megafauna. Essas datações precisam ser confirmadas
com uma série bem mais representativa do material paleontológico
e arqueológico, assim como um estudo aprofundado quanto a
questão de possíveis contaminações do
material datado, pricipalmente ossos que são mais suscetíveis
à contaminação.
Por
outro lado, os vestígios arqueológicos datados do
final do Pleistoceno e começo do Holoceno no Brasil Central
e Amazônia sugerem um padrão de subsistência
baseado em coleta de frutos e sementes complementada pela caça
generalizada de animais de pequeno e médio porte. Estudos
teóricos que utilizam-se da teoria de ecologia evolutiva,
aliados a estudos empíricos (e.g., escavações,
análise de coleções etc), que estão
sendo realizados por pesquisadores e estudantes do LEEH/USP, têm
demonstrado uma grande diversidade cultural dos primeiros colonizadores
do continente.
As
pesquisas do LEEH/USP também têm demonstrado que o
modelo tradicional de três migrações de populações
geneticamente associadas às populações do norte
da Ásia não explica a variabilidade biológica
dos esqueletos encontrados em vários sítios arqueológicos
da América do Sul datados do final do Pleistoceno e começo
do Holoceno. Estudos baseados em crânios humanos da região
de Lagoa Santa sugerem que as primeiras populações
tiveram ancestrais comuns com populações pré-históricas
da Austrália e não com os do norte da Ásia,
como previa o modelo convencional.
O processo
evolutivo e histórico da colonização do continente
americano é bem mais complexo e difícil de se traçar,
assim como em outras regiões do mundo. As pesquisas mais
recentes indicam várias "populações-fundadoras"
com origens diferentes, entrando no continente em diferentes períodos,
trazendo diferentes hábitos, tecnologias e ideologias. As
pesquisas que estão sendo realizadas no Brasil têm
tido uma posição de destaque na produção
deste conhecimento.
Notas:
1-
Uma datação indireta de ca. 12.000 AP para um esqueleto
humano, conhecido com Luzia, escavado no sítio Lapa Vermelha
IV é normalmente citado como sendo o mais antigo para as
Américas. Infelizmente o esqueleto não preservou mateiral
orgânico que pudesse ser datado. Também não
temos como averiguar esta datação pois não
há nenhuma publicação detalhada do contexto
em que o esqueleto foi encontrado. Me parece que Luzia tem problemas
intrínsecos similares aos de Pedra Furada, apesar de que
não há duvida quanto a questão antrópica.
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Renato
Kipnis é pós-doutorando/Fapesp, no Laboratório
de Estudos Evolutivos Humanos, do Instituto de Biociências
daUniversidade de São Paulo.
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