Envolver
a comunidade ajuda a preservar sítios
No
Brasil, grande parte dos sítios arqueológicos são
descobertos em áreas ocupadas por populações
humanas. Os habitantes dos arredores desses locais podem, em alguns
casos, ser beneficiados com a preservação ambiental
e patrimonial, com a geração de empregos em atividades
ligadas ao turismo e até com a construção de
uma nova identidade cultural. Já em outros casos, a presença
de sítios pode dificultar obras importantes para os moradores
locais, como a construção de moradias ou, ainda, implicar
na necessidade de deslocamento da comunidade para outra área,
devido a criação de Unidades de Conservação
restritivas.
A experiência
brasileira tem demonstrado que a preservação do patrimônio
cultural dos sítios arqueológicos depende do envolvimento
das comunidades locais, bem como da participação destas
nos benefícios decorrentes de atividades econômicas
como, por exemplo o turismo. "Embora o trabalho voltado para
a preservação do patrimônio sempre estivesse
presente, de diferentes formas, na maioria das pesquisas arqueológicas
isso não ocorria de forma sistemática ou como uma
prioridade, sendo mais um apêndice da exploração
arqueológica como um todo", avalia Sibeli Viana, do
Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia (IGPA)
da Universidade Católica de Goiás (UCG).
Uma
mudança legal estabelecida na Portaria No 230, de 2002, emitida
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan), determinou a necessidade de elaboração
e execução de um Programa de Educação
Patrimonial junto com as pesquisas arqueológicas desenvolvidas.
Com isso, os arqueólogos brasileiros passaram a ter responsabilidades
que incluem não somente a produção das informações
científicas, mas também o envolvimento da comunidade
na gestão do patrimônio. Viana ressalta que "qualquer
empreendimento econômico que vise exploração
do patrimônio arqueológico só se sustentará
se a comunidade envolvida tiver compreensão do que está
sendo exposto, pois ela será seu maior divulgador, bem como
a guardiã deste patrimônio". Para tanto, inúmeras
estratégias têm sido utilizadas para levar às
comunidades os conhecimentos produzidos nas pesquisas arqueológicas
e para promover a exploração turística das
áreas pelas mesmas.
Estratégias
para o envolvimento da comunidade
A grande quantidade de sítios arqueológicos encontrados
em diferentes regiões e contextos gera uma considerável
heterogeneidade de condições sócio-culturais
das comunidades envolvidas. Viana ressalta que, para cada caso,
"é preciso adotar estratégias específicas
de modo a conciliar o valor cultural do sítio e o benefício
que ele pode trazer à população local".
A arqueóloga
Deisi Scunderlick Eloy de Farias conta que, no Núcleo de
Pesquisa em Educação Patrimonial (Nupep) da Universidade
do Sul de Santa Catarina (Unisul), os pesquisadores utilizam os
princípios da "educação patrimonial"
durante as atividades de campo, nas quais ocorrem visitas monitoradas,
oficinas de pré-história e arqueologia. Além
disso, preparam material didático-pedagógico para
circular nas escolas durante os períodos que antecedem e
sucedem as escavações. A educação patrimonial
foi trazida para o Brasil na década de 1980 por Maria de
Lourdes Parreiras Horta, do Museu Imperial do Rio de Janeiro. Desde
então, a Metodologia da Educação Patrimonial
tornou-se um modo de "alfabetização cultural"
que grande parte dos arqueólogos utilizam junto às
comunidades locais. Três pontos fundamentais em relação
ao patrimônio são estabelecidos por ela: conhecer,
observar e reconhecer o patrimônio como parte da vida.
Projetos
que estão sendo desenvolvidos pelo Nupep em Tubarão
- SC:
Projeto |
Objetivo |
Arqueologia
na escola |
levar
o aluno a entrar no ambiente arqueológico por meio de
atividades simuladas de campo e laboratório; |
Exposição
itinerante "Preservem os sambaquis" |
expor
fotos e material pedagógico nas escolas da região; |
Cursos
de capacitação de professores em "Educação
Patrimonial" |
atender
professores do ensino fundamental de várias escolas da
rede pública e privada da região; |
Palestras
para alunos no laboratório |
construir
uma consciência para a preservação dos sítios
arqueológicos. |
O envolvimento
da comunidade desde o início da pesquisa, como "ajudantes"
nos trabalho de campo e atividades de divulgação dos
conhecimentos gerados nos sítios por meio de palestras, distribuição
de "mala-direta", exposições fotográficas
e de visitas ao laboratório de arqueologia, também
são estratégias utilizadas pelos pesquisadores do
IGPA, que atuam no Vale dos Sonhos. Porém, inovam ao buscarem
desenvolver um outro tipo de trabalho, em parceria com a prefeitura
municipal e a Sociedade Habitacional Vale dos Sonhos, que busca
fazer com que a comunidade se reconheça enquanto portadora
de uma identidade sócio-cultural.
Estão
sendo resgatados os elementos que a comunidade do Vale dos Sonhos
tem por referências culturais: desde um quadro pintado, um
crochê confeccionado, uma história "antiga",
ou mesmo uma receita culinária passada por gerações.
"Ao levantarmos estas referências estamos também
inserindo a importância do sítio arqueológico
encontrado no Vale dos Sonhos. Com o passar do tempo, esperamos
que este patrimônio seja 'lembrado' e 'cuidado' como as demais
referências culturais, que atinja o mesmo patamar de importância",
conta a arqueóloga.
Escavações no Vale dos Sonhos
O objetivo
final dos pesquisadores é transformar o bairro em um museu-aberto,
o que poderá trazer diferentes benefícios para a comunidade.
Possíveis melhorias de infra-estrutura do bairro, necessárias
à implementação do museu - que envolvem transporte
e asfalto para facilitar os futuros visitantes, e água, esgoto,
escola, posto de saúde para os moradores - devem ser viabilizadas
pelos órgãos governamentais responsáveis. Serão
gerados empregos para parte dos moradores que queiram se tornar
monitores e guias, além da possibilidade de serem comercializados
produtos artesanais feitos pela população, gerando
renda e espaço para a manutenção da tradição
do saber-fazer desses produtos. "Acreditamos que este processo
culminaria com a divulgação e preservação
do patrimônio arqueológico, e ainda resgataria a auto-estima
da comunidade Vale dos Sonhos", conclui Viana.
Peça encontrada no Vale dos Sonhos
O Parque
Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, foi criado devido
aos inúmeros sítios arqueológicos encontrados
na região por solicitação da missão
franco-brasileira que realiza, desde 1970, um programa de pesquisas
na área e que, em 1986, criou a entidade civil sem fins-lucrativos
Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham). Embora
o decreto de criação do Parque tenha sido assinado
em 5 de junho de 1979 somente em 1987/88 foi efetivada, com a indenização
e retirada dos moradores do povoado Zabelê, que viviam nas
terras há várias gerações.
Desde
1989, o grupo de pesquisas ligado ao Fumdham vem buscando atuar
na formação da população local de modo
a poder ocupar os postos de serviço gerados pela exploração
turística dos sítios. Para tanto, criaram escolas
e oferecem diversos cursos para formação de guias,
guarda-parques e técnicos que atuam nas diferentes atividades
desenvolvidas no museu. "Nosso objetivo é fazer com
que o turismo traga para região um desenvolvimento econômico
e social de modo a diminuir a pressão antrópica no
local", explica a diretora do parque e coordenadora do museu,
Niède Guidon.
O envolvimento
da comunidade com os pesquisadores do Fundham desde o início
das pesquisas propiciou a criação de empregos para
parte da população. Existem hoje os "arqueólogos
mirins", adolescentes da escolas da região que durante
as férias trabalham com a equipe; técnicos em conservação
de pinturas rupestres; mateiros que acompanham botânicos e
zoólogos nas pesquisas pela região; e técnicos
em diversas tarefas da informática, como tratamento da imagem,
alimentação de banco de dados sobre o Parque Nacional
e região.
Dificuldades
de envolver a comunidade
Vários fatores contribuem para que o envolvimento das comunidades
locais nas atividades de pesquisa e exploração dos
sítios arqueológicos no Brasil não seja uma
tarefa simples. A ausência de um vínculo histórico
direto entre os grupos pré-históricos encontrados
e a sociedade atual é uma das dificuldades mais características
do território brasileiro. Outro problema, são os sítios
que impedem ou dificultam a construção de empreendimentos
ou a exploração econômica da área e que
passam a ser vistos de forma negativa pela população.
São exemplos desses sítios aqueles encontrados em
grutas calcárias, os sambaquis, os localizados em áreas
de lavouras e os aterros do Pantanal.
No
sítio Vale dos Sonhos, localizado em zona urbana de baixa
renda de Goiânia, por exemplo, é um desafio falar do
valor científico e cultural das urnas funerárias humanas
encontradas para uma população que não têm
nem mesmo saneamento básico ou escolas públicas nas
proximidades. Além disso, a descoberta do sítio também
tem provocado transtornos à população já
que a pesquisa não foi concluída e, por isso, a área
ainda se encontra embargada pelo Iphan. Segundo Viana, os pesquisadores
aguardam verbas para a conclusão dos trabalhos de pesquisa
necessários para a liberação da área
para a construção das casas dos moradores locais,
que vivem precariamente em casas improvisadas.
(AP
e SD)
|