Paradigmas
que persistem: as origens da arqueologia no Brasil
Lucas
de Melo Reis Bueno
e Juliana Salles Machado
Segundo
vários autores que se empenharam em fazer uma história
da arqueologia no Brasil (Mendonça de Souza 1991, Barreto
1999, Prous 1990, Funari 1995) as origens dessa disciplina remontam
ao período que cobre as últimas três décadas
do século XIX e as duas primeiras do século XX, sendo
esse o período no qual praticamente todas as disciplinas
começam a se especializar. Falar do surgimento da arqueologia
é falar do surgimento da antropologia, da geologia, da zoologia
mas, mais do que isso, é falar da história natural,
aquela que como única referência é quem vai
fornecer até mesmo às ciências sociais os pressupostos
metodológicos para se atingir o status de conhecimento científico.
No
Brasil, até meados do século XIX, toda a sciencia
era feita por viajantes estrangeiros, vindos exclusivamente para
coletar. São as observações da natureza, feitas
num primeiro momento por jesuítas e depois por naturalistas,
que constituem o núcleo das atividades científicas
que se desenvolvem no Brasil até a Independência e
durante a primeira metade do século XIX. É somente
após a transferência da corte portuguesa para o Brasil
que começam a se estabelecer algumas instituições
de tipo técnico-científico e atividades mais sistemáticas
de pesquisa. Estas comumente estão relacionadas a observações
geológicas e mineralógicas, refletindo uma preocupação
utilitarista por parte de Portugal, responsável pela orientação
pragmática desse primeiro projeto científico no Brasil
(Schwartzman 1979, Sevcenko 1990).
No
entanto, 1870 parece ser um marco no panorama intelectual nacional.
Segundo Schwarcz (1989:26) as idéias novas a que se referia
Silvio Romero vieram alterar costumes, padrões e visões
sobre a situação nacional. "Paradigmas de
pensamento, tais como o evolucionismo, o positivismo e o naturalismo
começam a penetrar a partir dos anos setenta, tendo como
horizonte de referência o debate romântico sobre os
fundamentos de uma cultura nacional em oposição aos
legados metropolitanos e à origem colonial."
É
também na passagem do período imperial para o republicano
que as instituições, criadas dentro de uma perspectiva
extremamente pragmática, foram se academicizando, principalmente
pela influência de cientistas identificados com o ambiente
intelectual europeu. Foi nos primeiros anos da República
que surgiram as comissões de geografia e geologia, as instituições
de pesquisa e as faculdades e escolas de nível superior com
nítida inclinação para a esfera produtiva,
evidenciando a importância dada ao aspecto da ciência
aplicada (Schwartzman 1979).
Numa
tentativa de modernização nacional significando alinhamento
com a Europa, o Brasil passa por uma fase de remodelação
dos hábitos sociais, uma verdadeira reforma rumo à
civilização, rumo ao progresso. Esta aspiração
a uma sintonia que substituiria a preguiça nacional pela
rapidez dos bondes europeus, carregava em si uma negação
do ser brasileiro. Pois, ao entender a Europa como civilização,
e progresso como necessariamente melhoria, entende-se o Brasil como
oposto a tudo isso, como o local da barbárie que necessita
ser esquecida ou eliminada, com o intuito de se criar uma imagem
de estabilidade para o outro lado do Atlântico.
É
nesse contexto que vamos encontrar o início da arqueologia
no Brasil. Esta, em seus primórdios, está essencialmente
confinada aos museus que então se formavam e consolidavam
no país: Museu Nacional, Museu Paulista e Museu Paraense
Emílio Goeldi. A importância dos museus, nessa época,
se deve ao papel relevante que cumpriram no incentivo de estudos
e pesquisas em ciências naturais e antropologia física
no país, bem como na personificação de um certo
ideal de cientificidade e objetividade, muito valorizado naquele
momento em especial (Schwarcz 1989).
Herdeiros
de uma forma específica de classificação, os
museus etnográficos aplicaram as máximas do evolucionismo
social, substituindo organismos vivos por grupos sociais. Fiéis
a esses pressupostos, cujo enfoque centrava-se no desenvolvimento
cultural da humanidade como um todo e não de uma sociedade
em específico, os antropólogos dos museus parecem
entender o país como um grande arquivo de documentos originais
e fundamentais para a verificação e estudo das etapas
"atrasadas" da humanidade (Schwarcz 1989). Nesse
sentido os museus etnográficos cumpriam uma inusitada função
local. Ajudando a delimitar o atraso ou reafirmando a inferioridade
da miscigenação e das raças formadoras, acabavam
por encampar, de forma específica, os debates da intelectualidade
da época interessada nos rumos deste país.
Não
podemos perder de vista que a idéia de classificar e organizar
o conhecimento está, de certa forma, relacionada ao intuito
de transmitir a imagem de uma suposta estabilidade aos estrangeiros
para assegurar o investimento deles no país. Ou seja, está
vinculada a uma postura política que procurava forjar um
Estado-Nação moderno no Brasil, eficaz em todas as
suas múltiplas atribuições diante das novas
vicissitudes históricas, tal como os modelos europeus (Sevcenko
1990).
Entre
a antropologia e a arqueologia
Vimos até aqui, alguns dos pressupostos teóricos que
primeiro fomentaram a pesquisa arqueológica no Brasil. Orientados
pelas teorias evolucionistas e pelos métodos oriundos da
história natural, os pesquisadores procuravam fornecer descrições
detalhadas dos objetos das coleções dos museus ou
oferecer medidas craniológicas precisas dos esqueletos achados
nos sítios arqueológicos. Isto, na maior parte das
vezes com o objetivo de incluir o índio nativo do Brasil
numa escala evolutiva, como pertencendo a uma suposta infância
da humanidade.
Nesse
sentido, podemos entender um pouco melhor as regiões e os
temas mais em voga na arqueologia da época. As regiões
enfocadas eram a bacia amazônica, a costa sul e sudeste e
o Brasil Central que, não por coincidência, tinham
cada uma o seu tipo de homem pré-histórico. Para a
bacia amazônica tínhamos o Homem de Pacoval, para o
Brasil Central o Homem da Lagoa Santa, e para a costa sul e sudeste
o Homem do Sambaqui. Isto, sem dúvida, evidencia uma forte
influência da arqueologia européia que, particularmente
marcada por preocupações nacionalistas, ressaltava
como um dos principais pontos da arqueologia a necessidade de se
investigar origens e diferenciações étnicas
dos vários povos europeus (Barreto 1999:205).
Tal
discussão inseria o Brasil em outro debate corrente na época,
envolvendo poligenistas e monogenistas. Dominante até meados
do século XIX, a corrente monogenista, baseava-se na idéia
de uma humanidade una, sendo as diferenças fruto de uma maior
ou menor degeneração. Já os poligenistas, que
marcam os finais do século XIX, pressupõem vários
centros de criação, justificando assim as diferenças
raciais observáveis. O interessante é que este debate
era sempre encarado em função da teoria evolutiva,
e os pesquisadores brasileiros pareciam procurar juntar dados para
comprovar o atraso e a inferioridade dos indígenas brasileiros
(Lacerda 1885). Assim, um dos temas mais debatidos nos artigos de
arqueologia nos finais do século XIX, versava sobre a origem
e antiguidade do homem americano, reforçando o laço
já existente entre a arqueologia e a antropologia física.
No
entanto, segundo Faria, esta relação não se
deve só à importância da craneometria, mas também
ao tipo de abordagem adotada para se tratar de aspectos culturais
dos grupos pré-históricos. Segundo Faria (1955:574)
o conceito de uniformidade, sustentado pela tese da origem artificial
dos sambaquis "... aliado ao fato de ter-se dedicado um
pequeníssimo interesse aos elementos culturais, (...) fez
com que os craneos de sambaquis fossem quase sempre tratados pelos
especialistas em antropologia física não somente dentro
daquele mesmo conceito de uniformidade como também com sistemática
e total exclusão de todos os aspectos culturais."
O descaso
dos pesquisadores com os elementos culturais indígenas é
também um reflexo da maneira como os antropólogos
entendiam esses índios. Abandonando a classificação
colonialista de selvagens, começam a classificá-los
pelo que lhes falta, o que, segundo Chauí (1999:122) implicitamente
mantém "como modelo explicativo a nossa sociedade,
sociedade plena - isto é, com escrita, com mercado, com Estado,
com História. Isto não significa que os antropólogos
queiram defender o colonialismo (...), mas sim que sua ciência
permanece presa a uma racionalidade e uma cientificidade que conserva,
silenciosamente, a idéia burguesa do progresso".
Se,
no primeiro momento o debate arqueológico se deu em torno
da existência de diferentes raças na pré-história
brasileira, num segundo passou-se a discutir a questão das
origens dos sambaquis. De um lado tínhamos a corrente defensora
da origem artificial, com a hipótese de que esses montes
de conchas seriam ou restos de comida ou monumentos funerários
das populações pré-históricas; de outro
lado a corrente defensora da origem natural, com a hipótese
de serem esses montes de concha depósitos marinhos formados
em uma época onde o nível do mar era mais elevado.
Mais do que em evidências culturais, os debates se estruturavam
em torno da discussão de aspectos geológicos, da flutuação
da linha da costa e das possíveis variáveis ambientais
que pudessem ter levado à formação desses montes.
De maneira geral os argumentos a favor da origem artificial se baseavam
na presença de objetos indígenas e de esqueletos humanos
em meio a esses montes de conchas. Já para sustentar a tese
de origem natural, além de dados geológicos e zoológicos
(existência ou não de tal tipo de concha na região,
disponibilidade das conchas etc.) lançava-se mão de
um argumento extremamente racista que, ao considerar o indígena
preguiçoso e indolente, não o via interessado em acumular
restos de comida até construir montes de tamanha dimensão,
nem capaz de fazer isso. O interessante é que mesmo os artificialistas
adotavam essa perspectiva preconceituosa, na medida em que justificavam
o acúmulo de restos de comida também por causa da
indolência indígena.
Este
tema das origens dos sambaquis talvez tenha sido o tema que mais
polêmica suscitou dentro da arqueologia. Pois, por trás
do debate acadêmico, estavam instituições e
posições políticas antagônicas. O maior
defensor da corrente artificialista foi Ladislau Netto e, de modo
geral, os adeptos desta corrente se alinhavam ao Museu Nacional
e ao Império. A ligação de Ladislau Netto com
Pedro II era largamente conhecida, tendo o imperador, chegado a
visitar uma escavação (Mendonça de Souza 1991;
Funari 1995). Do outro lado, o maior defensor da corrente naturalista
era Hermann von Ihering, diretor do Museu Paulista, erigido com
o apoio da nova elite cafeicultora do oeste paulista e definitivamente
republicana. Segundo Sevcenko (1990:36) "ao contrário
do período da Independência, em que as elites buscavam
uma identificação com os grupos nativos, particularmente
índios e mamelucos e manifestavam um desejo de ser brasileiro,
no período estudado [começo da República],
essa relação se torna de oposição, e
o que é manifestado podemos dizer que é um desejo
de ser estrangeiro". Mas se na política a república
prevaleceu, na ciência a tese da origem natural dos sambaquis
acabou se enfraquecendo, embora até meados do século
XX ainda fosse possível encontrar quem a defendesse.
Já
no que tange ao aspecto histórico, podemos considerar a falta
de preocupação com a disposição estratigráfica
dos objetos culturais, demonstrada nas pesquisas arqueológicas,
ao fato daqueles autores considerarem a pré-história
brasileira como um período a-histórico. As divisões
temporais feitas por von Ihering no estudo dos sambaquis se resumem
a um período pós e outro pré-colombiano. Neste
último período, as divisões são sempre
geográficas ou raciais, mas nunca temporais, o que parece
um tanto contraditório para quem se baseia numa teoria evolucionista
da humanidade. A única divisão temporal esboçada
por von Ihering (1904:244) se restringe a três fases sucessivas:
"a) os indios actuaes; b) aqueles do tempo da descoberta;
c) o povo que habitava os sambaquis, tendo nelles enterrado seus
mortos".
Do
ponto de vista geográfico as divisões são maiores,
incluindo quatro províncias archaeologicas. Estas
províncias são definidas basicamente por typos e grupos
de objetos archaeologicos. Assim, segundo von Ihering, teríamos
a província sambaquiana, a sul-brasileira, a bahiana e a
amazônica. Guardando-se as devidas proporções,
podemos vislumbrar uma continuidade entre esse tipo de abordagem
e o que até pouco tempo ainda vinha sendo feito no Brasil.
Ademais,
toda essa discussão era permeada pela necessidade constante
de se afirmar a neutralidade do pesquisador que, classificando e
descrevendo, fornecia o grau de cientificidade necessário
para legitimar seu trabalho. Com isso, podemos identificar o que
compõe o cerne do pensamento arqueológico de então:
evolucionismo e positivismo aliados aos métodos das ciências
naturais e complementados com uma grande dose de racismo.
Paradigmas
que persistem
Tendo esboçado algumas características do período
de formação da arqueologia científica no Brasil,
esperamos ter evidenciado algumas tendências que são
caras à arqueologia brasileira até os dias atuais.
Por outro lado, as características da arqueologia acima apontadas
estavam de total acordo com o contexto do pensamento científico
do Brasil de então; muito embora já estivessem um
pouco defasadas frente à arqueologia que se vinha fazendo
na Europa - principalmente com relação à datação
relativa dos achados arqueológicos e às críticas
que já vinham sendo feitas ao evolucionismo e ao positivismo
(Barreto 1999; Trigger 1989).
Vemos
também que a constante insistência em atingir o máximo
de objetividade possível, observando, descrevendo e defendendo
uma postura de neutralidade frente aos fatos, legou-nos por um lado
importantes e acuradas observações e, por outro, uma
arqueologia essencialmente descritiva e pobre de interpretações.
Nesse sentido, o trabalho de von Ihering é interessante pois,
mesmo procurando atingir o máximo grau de objetividade, baseando-se
nos "mais irrefutáveis fatos geológicos",
sua tese sobre origem natural dos sambaquis caiu. Já a tese
de origem dos sambaquis como restos de cozinha, aceita por alguns
até os dias atuais, começa a ser criticada na década
de 90 através de algumas evidências já notadas
por von Ihering, mas utilizadas como argumento da origem natural
dos sambaquis. Dentre essas evidências podemos citar, por
exemplo, a existência de conchas bivalves fechadas e diferenças
na estrutura interna dos sambaquis entre centro e periferia - hoje
tidas como possíveis evidências de uma construção
intencional dos sambaquis, onde as conchas estariam sendo utilizadas
mais provavelmente como elemento construtivo (Gaspar 1992, Figuti
1993, Afonso e De Blasis 1994).
Tais
observações levantam questões fundamentais
para a arqueologia. Primeiro relativas ao que são e como
são percebidos os vestígios de atividades humanas.
Ou seja, como é percebida a relação entre natureza
e cultura, o que é traço de uma ou de outra e até
que ponto concebemos e percebemos a intervenção de
uma na outra. É importante termos em mente que essa relação
- cultura/ciência x natureza - é dinâmica, sendo
alterada de acordo com o contexto político e sócio-cultural
no qual ela se insere.
É
interessante notar que isso vem se transformando, mais drasticamente,
em dois temas que estavam no centro dos debates do início
da arqueologia científica no Brasil - os sambaquis (do qual
já falamos) e a amazônia. Na Amazônia essa questão
se coloca quando se discute, por exemplo, que a floresta amazônica
não é mais uma floresta primária devido à
lenta e tênue, mas milenar, utilização e manejo
da floresta que o homem vem desenvolvendo (Denevan 1992).
Outro
aspecto importante de se notar, é que a arqueologia pode
ser uma ciência empírica, mas que na sua maior parte
vai depender da estrutura teórico-metodológica e sócio-política
na qual o pesquisador está inserido. Ou seja, que além
da parte empírica (também contigente visto que a própria
percepção é histórica) a arqueologia
é, sim, um conhecimento socialmente construído e determinado
(Trigger 1989).
Lucas
de Melo Reis Bueno é doutorando do Museu de arqueologia e
Etnologia da USP e Juliana Salles Machado é mestranda. Ambos
bolsistas Fapesp.
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