A
emergência da medicina tropical no Brasil e na Argentina
Sandra Caponi*
A
preocupação médica com os trópicos, que
parece ter obcecado aos médicos militares das colônias
européias durante as últimas décadas do
século XIX e inícios do século XX, não
está ausente na América Latina. Analisamos de que modo os
pesquisadores argentinos e brasileiros construíram seus
programas de pesquisa referidos a essas doenças que pareciam
estar diretamente vinculadas com o clima quente.
Os argumentos
utilizados pelos higienistas, sanitaristas e pesquisadores brasileiros
e argentinos, entre os anos 1890 e 1916, em torno dos modelos
explicativos e das estratégias de profilaxia que deviam ser
adotadas perante doenças tais como a febre amarela, a
malária e a doenças do Chagas, evidenciam a
existência de dois modos diferentes de abordar a medicina
tropical.
Na década
de 1890, a Argentina desenvolveu seu plano de
reorganização urbana e de controle das moradias e
doenças populares como a sífilis e a tuberculoses.
Durante os anos seguintes as preocupações dos
pesquisadores argentinos estarão centradas na
construção de laboratórios e de um Instituto de
Bacteriologia. Estes estudos bacteriológicos permitiram garantir
a continuidade e a legitimidade científica dos trabalhos
realizados pelos higienistas clássicos, Guillermo Rawson e
Eduardo Wilde. Os novos higienistas das primeiras décadas do
século XX, entre os quais figuram principalmente os nomes de
Emilio Coni e José Penna, aperfeiçoaram e aprofundaram os
estudos estatísticos e centraram toda sua confiança nos
avanços e descobrimentos da microbiologia.
A ordem era
isolar e descobrir novos micróbios, criar vacinas e soros
específicos, e dar continuidade às medidas
clássicas de desinfeção, saneamento e
reorganização urbana, legitimadas com os estudos da
microbiologia. Buenos Aires figurava então como um modelo de
cidade higiênica que devia ser seguido pelas outras capitais
latino-americanas. Uma cidade, como afirmavam, comparável a
Paris, Londres ou New York. Então identificaram seus problemas
sanitários aos das grandes metrópoles de clima temperado
negando qualquer proximidade com as doenças próprias dos
“trópicos palúdicos”.
A
preocupação desses higienistas estava centrada nas
doenças derivadas das aglomerações populares e das
condições de vida de um proletariado escassamente
instruído, e se concentrava, fundamentalmente, nessa
tríada que preocupava tanto aos higienistas pré e
pós-pasteurianos: tuberculoses, sífilis, alcoolismo.
Mas a Argentina
não se reduzia a uma Buenos Aires saneada, existiam
então, como existem hoje, cidades do interior extremamente
pobres e permanentemente ameaças por essas doenças que
têm maior incidência nas regiões tropicais. No
início do século XX, a doença mas temida na
capital era a febre amarela que se enquadrava dentro da categoria de
doença tropical. Entretanto, e ainda quando existiram na
Argentina duas dramáticas epidemias de febre amarela durante os
anos 1871 e 1890, as doenças transmitidas por vetores
continuaram sendo estudadas com as mesmas estratégias que
qualquer outra doenças infecciosa, seja de transmissão
direta de homem a homem, seja de transmissão indireta pelos
canais classicamente aceitos: água, ar ou roupas infectadas.
Até 1916 a aliança estabelecida entre as medidas de
saneamento e desinfeção propostas pela higiene
clássica e os avanços dos estudos microbiológicos
com suas vacinas e soros parecia suficiente para dar resposta a todos
os problemas sanitários que pudessem apresentar-se no
país.
O Brasil, por
sua parte, possuirá a partir do ano 1903 o maior centro de
estudos bacteriológicos existente na América Latina. O
Instituto Soroterápico Federal de Manguinhos foi criado no ano
1900 no Rio de Janeiro, inicialmente com o objetivo específico e
limitado de criar vacinas e soros para combater uma das duas epidemias
que então ameaçava ao Brasil: a pandemia mundial de peste
que se iniciou no extremo Oriente em 1894, e que em 1899 faz sua
aparição na cidade portuária de Santos. O
bacteriologista chefe era um jovem cientista, chamado Oswaldo Cruz, que
chegava recomendado por Emile Roux do Instituto Pasteur.
O Instituto
de Patologia Experimental Manguinhos, mas tarde chamado Instituto
Oswaldo Cruz devia ocupar-se de realizar estudos de soros e vacinas,
mas também de criar programas de pesquisa e de profilaxia das
três grandes epidemias que então preocupavam ao Brasil:
febre amarela, peste e varíola. Duas dessas epidemias são
transmitidas por vetores e exigem protocolos de pesquisa diferenciados
e estratégias profiláticas específicas de combate
aos ratos, pulgas e mosquitos. Uma quarta epidemia, já
não urbana mas rural, adicionara-se a essa lista a partir do ano
1909, a tripanosomiasis americana ou doenças do Chagas,
também incluída entre as doençass transmitidas por
vetores, neste caso pela chamada vinchuca ou
“barbeiro”.
O estranho
é que ainda quando as epidemias que ameaçavam às
populações argentinas e brasileiras eram mais ou menos
idênticas - não só varíola e tuberculose mas
também febre amarela, peste, paludismo, chagas - os programas de
pesquisa seguidos em cada um desses países eram completamente
diferentes.
Para compreender
essas diferenças é necessário observar a
proximidade existente entre o programa sanitário defendido pelos
pesquisadores argentinos com a microbiologia pasteuriana e com os
estudos desenvolvidos pelos pasteurianos nas colônias francesas
da África e Ásia. Por outra lado, será a
proximidade entre o programa de pesquisa das doenças tropicais
realizada pelos pesquisadores brasileiros com os estudos de medicina
tropical desenvolvidos na Inglaterra e Alemanha o que nos
permitirá compreender a aparição e
integração de novos estudos tais como a entomologia
médica, a parasitología como aliados à
microbiologia.
O Instituto
Pasteur impulsionou a criação dos Institutos de Ultramar
na China, Indochina e África para dar resposta a dificuldades
encontradas pelos europeus brancos nas colônias. A missão
desses institutos era clara: “exportar” o conhecimento dos
laboratórios metropolitanos, fundar laboratórios de
bacteriologia e “formar uma nova geração de
bacteriologistas nativos”. A primeira dificuldade que
deixará esse encontro entre a bacteriologia e os
trópicos, geralmente mediado por médicos militares, era
certa incapacidade para dar resposta às numerosas
doenças, particularmente à doença do sonho, que
não se deixavam reduzir aos protocolos experimentais e às
idéias pasteurianas. Elas pareciam oferecer sérias
resistências ao protocolo pasteuriano: tanto à
especificação do agente causal como à
produção de vacinas e soros que, em muitos casos,
continuam até hoje.
Em
relação ao programa de pesquisa iniciado por Patrick
Manson no The London School of Tropical Medique a
preocupação não era exatamente a mesma. Ambos os
institutos compartilhavam o objetivo de fazer dos trópicos um
espaço saudável e habitável para o homem branco.
Porem, ambos trilharam caminhos de investigação e
imaginaram estratégias de intervenção diferentes.
Para Manson muitas doenças tropicais eram parasitárias e
dependiam de complexas cadeias de transmissão que envolviam
hóspedes intermediários vivos.
Esse programa de
pesquisa possui certas características peculiares, aqui a
ameaça representada pelos predadores e o conhecimento da
biogeografia substituem a importância tradicionalmente
atribuída ao clima, assim como a clássica
preocupação, dos médicos militares, que publicavam
nos Anais de Medicina Naval e Colonial, como problema do
aclimatacionismo. De uma perspectiva próxima ao darwinismo,
Manson , dirá que “quanto mais aprendermos sobre as
doenças tropicais, menos importante resulta a temperatura per
se como agente patogênico direto e como
explicação da distribuição
geográfica das doenças”; e, em contrapartida,
“mais importante resulta a influência da fauna
tropical”. Esse programa de pesquisa exige não só
poder diferenciar o estudo da microbiologia dos estudos provenientes da
história natural “ser um naturalista antes que um
bacteriologista ou um médico”; exige privilegiar os
estudos de biogeografía por sobre as preocupações
aclimatacionistas, dado o rol causal secundário ou indireto do
clima.
Os argentinos,
como os pasteurianos de ultramar, dando continuidade aos estudos
bem-sucedidos da microbiologia realizados até então,
imaginavam que toda e qualquer doença podia ser compreendida a
partir dos mesmos protocolos utilizados com as doenças
cosmopolitas. Nesse mesmo período histórico os
pesquisadores brasileiros como Cruz, Chagas ou Lutz pareciam estar
convencidos da necessidade de criar novos programas de pesquisa e novas
estratégias sanitárias irredutíveis à
criação de vacinas e às medidas higiênicas
clássicas. Esse programa requeria uma detida
observação do ciclo evolutivo e reprodutivo dos seres
vivos, uma cuidadosa descrição de seus encadeamentos e
alianças
É
impossível compreender a distância entre esses programas
sem fazer referência ao que podemos chamar de obstáculo
climático. A tese clássica, do século XVIII, que
associava aos trópicos com a degradação
física e moral, ainda parecia estar presentesna mente dos
pesquisadores argentinos do início do século XX.
Devedores da antiga tese de pessimismo climático, não
aceitavam imaginar que uma Buenos Aires de clima temperado e
higiênica pudesse possuir os mesmos problemas sanitários
daquelas regiões que identificavam como “os
trópicos palúdicos”.
* Doutora em
filosofía (Unicamp); professora adjunta do Departamento de
Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina.
Coordenadora do Programa de Pós-graduação em
Saúde Pública, pesquisadora de CNPq.