Novos fármacos para
as doenças tropicais, a indústria farmacêutica, o Estado
e nós
Heitor Franco de Andrade
As
doenças tropicais são marcadas pelo estigma do
exótico e do grave. Quem não tem na mente a figura do
paciente com elefantíase, o tremor do paciente com
malária, ou as feridas imaginadas dos hansenianos? Nesse
espectro folclórico, a origem dessas doenças está
associada à pobreza ou à aventura. Se as pessoas viajam
ou trafegam em regiões novas, podem contrair as doenças
que lá ocorrem e que são diferentes das que estão
habituadas em sua região. Com as grandes
navegações, os europeus colonizadores foram expostos a
doenças desconhecidas das regiões tropicais e associaram
a estas regiões a medicina dos viajantes, criando uma medicina
de portos ou medicina tropical, ou a medicina das doenças
exóticas. Isto é uma meia verdade. Países
desenvolvidos como o EUA e a Espanha convivem com doenças desse
tipo e a aids veio dos países tropicais para o "mundo" sem
haver relação com o clima. Em geral, as doenças
tropicais desaparecem pela melhoria das condições
sanitárias e higiênicas de uma população, o
que explica em grande parte a sua aparente ausência em
países desenvolvidos. A maioria dos pacientes dessas
doenças vive nas regiões mais pobres do mundo, com
Estados desorganizados, empobrecidos e em freqüente
beligerância interna. Esse quadro é piorado pelas
associações de doenças com a fome crônica,
gerando um quadro caótico, com milhões de mortes anuais,
como na África Sub-Saariana. Mesmo no Brasil, as doenças
estão restritas a bolsões de pobreza e o número de
casos caiu significativamente, mas ainda temos nilhões de
pessoas em risco de contrair essas enfermidades.
A
preocupação com a prevenção e o tratamento
dessas doenças sempre existiu, já que são de
importância estratégica. A malária praticamente
extinguiu a elite ateniense de Péricles no cerco a Siracusa e
causou mais baixas americanas na Guerra do Vietnã que o
exército Vietcong. Até hoje, missionários
religiosos morrem nos países tropicais, sucumbindo a
infecções e é freqüente a morte de viajantes
em seu retorno, pelo desconhecimento dos médicos
“desenvolvidos” sobre essas terríveis doenças
exóticas. Nos últimos 30 anos, houve um aprimoramento das
condições sanitárias mundiais, mas mantiveram-se
bolsões de extrema pobreza não somente em países
tropicais ou em desenvolvimento, mas também em desenvolvidos, em
guetos e áreas empobrecidas. Nestas áreas, estão
presentes as causas e crescem também os vetores de
doenças infecciosas, como a dengue, encefalites e leishmaniose.
Nos países em desenvolvimento, os centros urbanos mais ricos e
áreas de agricultura intensiva, como ocorre no Brasil, afastaram
a maioria das doenças tropicais das cidades e da sua
população, restringindo-as às áreas menos
favorecidas e de colonização mais recente. As equipes de
saúde passam a ter menos experiência com estas
doenças, pela distância dos focos de transmissão e
pelo contato com um menor número de pacientes - e a
vigilância cai. Se a montanha não vai a Maomé,
vamos a montanha. O ecoturismo e as viagens turísticas ou
privadas aumentaram muito e passaram a colocar em risco os turistas,
atletas e técnicos. Recentemente pudemos acompanhar a febre
amarela de um médico da mídia e a leptospirose em equipes
de competição. Esse é um novo aspecto das
doenças tropicais, uma verdadeira colonização da
área desenvolvida sobre as áreas menos favorecidas,
até mesmo de um único país, como no subcontinente
brasileiro. Como é uma pandemia, a aids não será
incluída nestas considerações, restrita às
doenças tropicais mais conhecidas.
Apesar de um
quadro favorável de diminuição do número de
pacientes, com as chamadas doenças tropicais a
situação mantém-se perversa, porque estes
estão entre os mais pobres e os excluídos sociais. Assim,
somente o Estado pode prover os recursos para diagnóstico e
tratamento.
O conhecimento
sobre o tratamento de uma determinada doença vem do
próprio povo afetado e as doenças tropicais não
são exceção. O quinino, que representou o marco de
tratamento da malária, não foi encontrado na Europa, mas
sim na Bolívia. O uso de antimoniais foi descoberto no Brasil
para as leishmanioses. Muito do conhecimento foi adquirido pela
pesquisa local no desenvolvimento de fármacos, mas isso
praticamente parou nos últimos 20 anos, preferindo-se tentar
associações de fármacos conhecidos. Excetuando-se
a miltefosina, um potencial remédio para a leishmaniose, e os
antivirais específicos para o HIV, o arsenal desenvolvido para
as doenças tropicais tem mais de 20 anos.
Ninguém
se pergunta por que isso ocorreu, embora a OMS reclame e chame as
doenças tropicais de negligenciadas. Realmente, não
há um apelo econômico para o desenvolvimento de novos
fármacos contra as doenças tropicais no modelo
econômico prevalente nos últimos 30 anos. Nos conceitos
neoliberais recentes, a produção está diretamente
relacionada ao lucro e não ao bem-estar. Até os anos 60,
havia uma preocupação real com a melhoria das
condições sociais nos países. A idéia era
ter uma população feliz, com uma boa casa e
condições adequadas de vida. Lembra aqueles desenhos
da Seleções do
Readers’ Digest, a familia feliz lavando o carro na frente
da casa, com as crianças brincando e o pai e a mãe
abraçados? O modelo econômico mudou e a unidade
econômica passou a ser o indivíduo isolado, cada qual
cuidando do seu destino, mas também de sua saúde. Nesse
contexto, cada indivíduo deve ser capaz de adquirir sua
medicação, que passou a ser um importante item de
avaliação de renda. Esse conceito gerou um aumento enorme
no lucro da industria farmacêutica, criando nova ética
para medicamentos.
Hoje é
muito freqüente o anúncio de medicamentos na mídia,
para uso e depois consulta ao médico. Compre, teste e se
não melhorar; a culpa aqui é sua; vá então
ao médico. Isto é mercadológico e causou um
impacto muito alto no custo final do medicamento. Hoje cerca de 90% do
custo do fármaco é marketing e, na indústria
privada, os centros de pesquisa e desenvolvimento são
subordinados ao marketing. Nesse contexto, é lógico que
teremos Viagras, Cialis e Prozacs e não fármacos para as
doenças tropicais. Quem estará interessado em produzir
para quem não tem como pagar? Ou produzir para um pequeno
número de turistas infectados? Ou ainda participar de
licitações para vender uma única partida de
medicamento por um ano, sem venda a varejo?
Um exemplo
triste é o da leishmaniose no Brasil. Temos 20000 casos por ano,
que deveriam receber 20 ampolas de 5 ml do remédio, que
dá um consumo real anual de 2000 litros ou duas toneladas,um
processo industrial muito pequeno e um volume de comércio
irrisório. Não há interessados na
produção e o Ministério da Saúde tem que
fomentar o fabricante. Não se sabe como isso evoluirá,
mas explicar aos seus acionistas um prejuízo com fármacos
para doenças tropicais é um problema. Os
acionistas querem lucrar e jogar a culpa no Estado, ele que cuide
dessas mazelas.
Desde o princípio, era ainda mais complicado se o remédio
tivesse algum tipo de segredo. Quando os jesuítas controlavam o
uso da quina, o pó
dos jesuítas, contra a
malária eles usaram a sua difusão seletiva como elemento
estratégico de controle de nações e governantes. A
história da quebra do segredo é cheia de aventura e
mortes e a própria agressão aos jesuítas mostra
uma reação dos Estados nacionais contra a primeira
multinacional farmacêutica, a Companhia de Jesus. Hoje não
é muito diferente. Como não haverá retorno
econômico, a indústria espera pelo menos um retorno
político.
Embora imensos
mercados populacionais estejam se formando na Ásia, com China,
Índia e vizinhos, e na América do Sul, com a
urbanização dos países, esses mercados na
realidade estão mudando de perfis de fármacos, passando
daqueles específicos para as doenças tropicais para os
convencionais e já desenvolvidos fármacos de
doenças crônicas, da terceira idade e do prazer. A
melhoria das condições sociais e a
urbanização eliminam os ambientes de crescimento de
vetores, em especial os Anopheles, da malária, e
aumentam o de outros, como os Aedes, da dengue, alterando o perfil das
epidemias esperadas. Além disso, o uso maior da água e
dos recursos hídricos, com maior recirculação,
favorece as doenças de transmissão oral como a
cólera e os rotavirus. Nesse contexto, insere-se um novo risco
ao desenvolvimento de fármacos, que é o risco individual.
No modelo social, toda ênfase era dada à
prevenção das doenças e ações de
prevenção e higiene, com menor ênfase na
terapia.
No novo modelo,
a segurança do uso do fármaco é garantida pela
indústria e, se um fármaco tiver efeitos colaterais em
poucos pacientes, mas com grande impacto econômico, processos
reparatórios, etc., todo o eventual lucro pode desaparecer em
instantes e um enorme problema para a indústria pode surgir.
Isto foi recentemente realçado pelos processos contra a
indústria fabricante de um anti-malárico usado na
prevenção de malária em turistas, que causou
psicose em um pequeno número, com vultosas
reparações. Esse é o modelo da saúde
individual, você compra um remédio seguro que deve
resolver seu problema sem efeitos colaterais ou a empresa deve pagar
por isso. Isso não é só para esses
fármacos, mas para todos eles e virou uma nova maneira de
compensação do lucro destas indústrias nos Estados
nacionais com justiça e regulamentos fortes. Para se aprovar
qualquer fármaco, um chá de erva cidreira em pó,
são necessários todos os testes de segurança e
toxicidade -- entre US$ 5-10 milhões de gastos.
Apesar de
existirem resultados adequados em outros países, cada Estado
tenta controlar novos gastos com importação de
fármacos, testando no país cada novo produto. A
multiplicidade de países, as diferentes etnias, os
hábitos culturais levam a diferenças entre as
nações obrigam a estes testes mas aniquilam qualquer
eficiência de custo de desenvolvimento de um fármaco para
as nossas doenças. A nova droga precisa de uma venda e uma vida
média que justifique o investimento e assegure o retorno, sem
esquecer da concorrência.
Nesse ponto,
lembramos a importância da universidade pública e dos
sistemas de saúde pública locais. No meu entender,
só um pequeno número de fármacos para estas
doenças foi desenvolvido pela industria farmacêutica
privada. Um exemplo é a ivermectina para o tratamento da
cegueira causada pela Oncocerca na África, mas a
indústria preferiu transferir tudo para a OMS, para economizar
no marketing e permitir a disseminação do produto. Na
maioria dos casos, os produtos foram desenvolvidos nos próprios
países interessados, quer sejam aqueles com grande número
de casos, ou aqueles com interesses estratégicos. Apesar
disso, os governantes assumem hoje posturas neoliberais, declinando do
custeio da pesquisa para novas descobertas ou então com
programas pouco eficientes de desenvolvimento de fármacos em
cada país, geralmente vinculados a possíveis patentes.
Embora existam, no Brasil, empresas governamentais capazes de produzir
e distribuir fármacos, como a FURP e a FarManguinhos, a
universidade não consegue transferir seus conhecimentos
rapidamente para a produção e o impacto social,
justamente devido a mecanismos de restrição de
proteção individual, que afastam até as
estatais da produção de novos fármacos. Essas
empresas apenas se dedicam à produção de
genéricos, que são fármacos testados por outros e
que tem consolidada sua eficácia e segurança. Não
é competência da universidade a produção e a
toxicologia prospectiva de um fármaco.
A pesquisa
universitária é cientifica e aberta, disponível
para a concorrência, sem uma proteção para o lucro,
diferente da visão mais tecnológica e comercial
necessária à indústria. Não adianta
somente criar massa crítica adequada, como Cingapura tem
proposto em joint-ventures com indústrias farmacêuticas ou
nos nossos programas brasileiros de pós-graduação,
para depois desempregá-los por razões de custo, num
sistema industrial onde o vendedor é o chefe do cientista. Isto
é tipicamente individualista e não voltado para o
aprimoramento do bem estar da sociedade como um todo. Temos que definir
o que queremos como sociedade para todos nós. É licito
morrer de leishmaniose visceral por falta de fármaco?
Será aceitável a morte por aids? Valemos o que somos ou o
que temos?
No atual modelo,
o último homem herdará toda a Terra e seus bens.
Faça bom proveito.
Heitor
Franco de Andrade Júnior é professor do Instituto de
Medicina Tropical da Universidade de São Paulo