A atualidade das
doenças tropicais
Claudio Bertolli
Filho
A rápida substituição da percepção
européia sobre o Novo Mundo como uma área do planeta onde
inexistiam enfermidades letais pela concepção de que as
regiões coloniais comportavam novas e mortíferas
doenças permitiu que, já no decorrer do século
XIX, ganhasse corpo um ramal especializado das ciências
médicas denominado "medicina tropical". Tal modalidade
científica foi constituída com o objetivo do estudo das
patologias que se acreditava serem exclusividade das regiões de
clima quente, não casualmente ocupada por sociedades rotuladas
pelo positivismo oitocentista como estando vivendo nos quadros mentais
e culturais da "barbárie".
No âmbito
do neocolonialismo europeu ritmado pelo imperialismo britânico,
foi creditado a um inglês, Patrick Manson, a paternidade da
medicina tropical. No plano das justificativas oficiais, a nova
proposta foi apresentada como fruto do compromisso – ou fardo
– do homem branco em promover o "progresso" das colônias em
nome de um pretenso humanismo europocêntrico. Na verdade, o
florescimento da medicina tropical coube menos a razões
éticas e morais do que ao empenho de preservação
da saúde dos colonizadores e da manutenção da
capacidade produtiva dos colonizados. Além disso, buscava-se
conhecer cientificamente as doenças consideradas típicas
das colônias para evitar que elas invadissem a Europa, trazendo
novas dificuldades para a economia e a sociedade do Velho Mundo.
A
organização da medicina tropical impôs que fossem
catalogados e estudados os males que não existiam na Europa ou
que pelo menos não fossem admitidos como tendo expressividade
epidemiológica naquele continente. Nesse sentido, foi elencando
um conjunto de doenças que tem variado no decurso do tempo. A
hanseníase, conhecida pelos europeus desde a Antiguidade,
inicialmente não foi considerada uma doença tropical
para, nas últimas décadas, ganhar tal rótulo; o
cólera, pelo contrário, foi registrado por um longo
período como doença típica dos climas quentes para
hoje manter-se em poucas obras de referência como patologia
tropical.
As dificuldades
em esclarecer quais eram as doenças tropicais não impediu
que os principais países colonialistas europeus, acompanhados em
pouco tempo pelos Estados Unidos, patrocinassem a criação
de centros de pesquisas voltados para as doenças tropicais.
Ancorados na nascente parasitologia, os estudos produzidos pelos
institutos especializados contavam com dois postulados básicos:
primeiramente, a realidade tropical favorecia a existência de uma
multiplicidade de patologias nativas e, em segundo lugar, que tais
enfermidades ganhavam maior intensidade e disseminação
devido aos valores e práticas culturais dos colonizados. Em
continuidade, acreditava-se que um plano de intervenção
sanitária deveria contar com sólidos conhecimentos sobre
os mecanismos biológicos das enfermidades e intensa
ação no setor da educação em saúde.
No contexto
brasileiro, as campanhas contra as doenças tropicais ganharam
impulso desde as primeiras décadas do século passado com
a participação da atual Organização
Panamericana de Saúde (OPAS) e o patrocínio da
Fundação Rockefeller. Vale ressaltar que tais iniciativas
foram pautadas por atritos em série, primeiramente entre os
médicos brasileiros e os especialistas estrangeiros e, em
seguida, entre o agrupamento sanitário e a sociedade abrangente,
situação reproduzida, em maior ou menor escala, em todas
as nações e colônias que experimentaram a
renovação no campo da saúde pública.
No âmbito
médico, o país se modernizava, criando seus heróis
civilizadores, dentre eles Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Adolfo Lutz
(considerado o mais destacado representante da medicina tropical
brasileira) e Vital Brazil, além dos tributários da
Escola Tropicalista da Bahia, dos quais se destacava Afrânio
Peixoto, autor de Clima e saúde; dos Estados Unidos
chegavam os emissários da OPAS que reclamavam para si autonomia
suficiente para criarem e implementarem planos sanitários. Ao
serem colocadas em prática as medidas em nome da saúde, a
população mostrava-se avessa e, às vezes,
agressiva frente às novidades impostas pela medicina. Como
exemplo cita-se a exigência feita por Fred Soper, representante
da OPAS no Brasil de efetuar-se viscerotomia nas vítimas da
febre amarela, medida que gerou protestos e ameaças de morte
para os pesquisadores, situação que só foi
superada com a realização de acordos entre os
funcionários da Saúde Pública e os coronéis
do interior nordestino.
As
situações pautadas por conflitos no âmbito das
medidas modernizadoras propostas relegaram a um plano secundário
os debates sobre a especificidade das doenças que deveriam ser
objeto de intervenção por parte da medicina tropical.
Desde suas origens, esta área da medicina encontrava opositores
que negavam, ou pelo menos atenuavam, a importância do clima, da
topografia, da flora, da fauna e também das culturas dos
agrupamentos periféricos como elementos determinantes do perfil
epidemiológico tropical. Henry Sigerist, Bernhardt Stern e, mais
recentemente, Thomas McKeown são alguns dos estudiosos que
assumiram tal postura ao reconhecerem a importância
estratégica da medicina tropical, mas enfatizando que muitas das
enfermidades atribuídas aos trópicos eram encontradas
também em áreas temperadas e, mais do que isto, tais
doenças não deveriam ser explicadas apenas por fatores
naturais e culturais, mas também e sobretudo pelas
relações econômicas e sociais instituídas
nas regiões mais pobres do planeta.
O
cólera, doença tropical?
O cólera
mostra-se como um bom exemplo sobre as dificuldades e reticências
em se proclamar uma patologia como sendo típica dos
trópicos. Doença comum na Ásia e especialmente na
Índia desde há muitos séculos, foi registrada pela
primeira vez na Europa em 1817 e a partir de então alastrou-se
por praticamente todo o continente, ganhando dimensões
epidêmicas pelo menos em quatro oportunidades durante o
século XIX e de lá ganhando disseminação
global. Enquanto enigma médico, a enfermidade passou a ser
insistentemente estudada, permitindo que, em 1849, John Snow decifrasse
seus mecanismos de transmissão e que, em 1883, Robert Koch
isolasse o vibrião colérico. Apesar disso, a
doença continuou durante um longo tempo a ser considerada
patologia exclusiva dos trópicos, sendo porisso denominada de
"mal levantino", sendo justificada sua presença na Europa como
resultado dos hábitos anti-higiênicos dos orientais, que
assim perpetuavam a doença em seu continente, e da fragilidade
dos serviços de vigilância sanitária dos portos
europeus. A recusa de admissão de que o cólera era uma
realidade inclusive européia, que a exportava para outras
regiões, permanece até hoje como idéia
implícita nas páginas de textos que focam tanto a
história como os desafios atuais da medicina tropical.
No Brasil, a
trajetória histórica da enfermidade foi recentemente
analisada por Jane Felipe Beltrão, no livro Cólera:
o flagelo da Belém do Grão-Pará (Ed. Museu
Paraense Emílio Goeldi/Universidade Federal do Pará,
2004). Através dessa obra sabe-se que o cólera foi
introduzido no país por imigrantes portugueses, ganhando
dimensões epidêmicas no norte brasileiro a partir de maio
de 1855. O mal mostrou-se avassalador, cobrando milhares de vidas
não só devido ao desconhecimento científico da
enfermidade, mas também devido aos receios das autoridades
públicas em declarar o estado pestífero e, com isso,
prejudicar os negócios dos poderosos. No final, a epidemia, que
prolongou-se por nove meses, matou sobretudo a população
mais pobre da Amazônia. Nas explicações
médicas e políticas vigentes tanto na época como
nas décadas posteriores, o mote central das justificativas
oferecidas sobre a epidemia era a condição tropical da
região e a incapacidade do povo em se submeter às
prescrições ditadas pela esfera sanitária.
Quase um
século e meio depois, na década de 1990, o cólera
continuava presente entre nós, desta vez na região
Nordeste, matando menos gente que nos surtos anteriores, mas mesmo
assim selecionando suas vítimas fatais entre os extratos mais
pobres da população. Novamente a questão sobre a
mortal combinação do clima quente e do despreparo
cultural popular em seguir as recomendações
médicas foram mencionadas como circunstâncias
perpetuadoras da enfermidade. No entanto, as vozes que ganharam maior
aceitação foram as que apontaram para o baixo
investimento público no saneamento básico e nas
condições de miserabilidade dos atingidos como elementos
explicadores do evento sanitário.
A
renovação da medicina tropical
O
declínio da linhagem da medicina tropical que explica as
enfermidades pelas condições geo-climáticas e
peculiaridades das culturas periféricas é uma realidade,
mas ainda as análises médicas guardam em seu bojo uma
gama de preconceitos sobre as antigas populações
coloniais. No livro Ebola (Record, 1996), o médico
norte-americano William Close registrou suas impressões sobre os
grupos acometidos pelo vírus na República
Democrática do Congo. Para ele, os serviços de
saúde daquele país africano eram caóticos e
incapazes de organizar um plano emergencial de controle da crise
sanitária e os médicos e enfermeiros locais, apesar de
contarem com diplomas expedidos por universidades européias e
norte-americanas, não reuniam conhecimentos básicos de
medicina e higiene, fugindo das áreas onde eram constatados
óbitos causados pela infecção. Mais ainda, Close
informou que a população sob risco parecia apática
frente à ameaça representada pelo ebola, preferindo
afastar-se das orientações e da assistência
oferecidas pelos médicos e religiosos europeus e esperar a morte
em suas moradias.
O autor parece
mesmo solidário com as idéias expressas no decorrer de um
diálogo entre dois religiosos belgas que prestavam
serviços aos doentes, a freira Verônica e o padre Gerard,
diálogo este reproduzido no livro mencionado:
“ –
Padre, as pessoas desta região fumam maconha e bebem lotoko
[aguardante de banana] há anos. Matar algumas com uma
doença não vai mudar seu hábitos. É o
costume local. É a maneira que estas pessoas têm de lidar
com uma vida árdua e isolada.
– É a punição de Deus porque não
obedecem a seus mandamentos! Gritou Gerard.
– Seus ngangas [curandeiros] dizem que a doença é
causada pelos espíritos ancestrais de uma tribo que costumava
viver aqui e foi deslocada pelos atuais habitantes – comentou
Verônica, sem se deixar intimidar pelo padre.
– Onde ouviu isso?
– Nas aldeias, quando fazia minha ronda, há dois dias.
– Deveria passar mais tempo ajoelhada na capela e menos escutando
as bobagens dos nativos – declarou o padre, severo”.
Opiniões
detratoras da cultura dos habitantes das antigas colônias
não são raras em livros empenhados no retrato das
populações atingidas pelas doenças tropicais,
tanto os de autoria de leigos quanto de profissionais da saúde.
No entanto, os ares de renovação que açoitam cada
vez mais a medicina tributária da nostalgia do poderio
colonialista ensejam redefinições tanto do próprio
conceito de medicina tropical quanto das doenças a seu encargo.
Em vez de medicina tropical, postula-se atualmente a
constituição de um campo voltado para o saber
clínico-epidemiológico e a prática médica
nos trópicos. Se é necessário que continue a ser
levada em consideração a distribuição
geográfica das enfermidades, também deve ser colocada em
foco a miséria econômico-social que assola a maior parte
das regiões genericamente denominadas de tropicais, sem colocar
os valores culturais das populações periféricas
como elementos determinantes da ocorrência e
disseminação das enfermidades.
Segundo esta
percepção, malária, febre amarela, dengue,
esquistossomose mansônica e leishemaniose visceral, só
para mencionar alguns dos males que assolam o Brasil, perdem sua
dimensão privilegiada de doenças tropicais para serem
reclassificadas como patologias da pobreza. Com isto desaparece o
propalado fatalismo sanitário dos trópicos e ganha
destaque o compromisso de governos democráticos e da medicina em
somar esforços para a existência digna dos homens das
áreas periféricas do planeta.
Claudio Bertolli
Filho é docente no Programa de
Pós-Graduação em Educação para a
Ciência e no Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp),
campus de Bauru. E-mail: cbertolli@uol.com.br