Migração de pessoas e doenças
O
principal fator apontado como responsável pela difusão de doenças
tropicais no mundo é a situação de pobreza estrutural
em que se encontram alguns dos países do sul. Em segundo plano, mas
não menos importante, considera-se a questão da tropicalidade,
incluindo suas características peculiares de temperatura e pluviosidade.
As alterações na paisagem através da construção
de grandes obras, as questões socioterritoriais como infra-estrutura
do território, postos de saúde, saneamento básico e coleta
de lixo são fatores com maior poder explicativo do que o determinismo
geográfico ambiental (a explicação direta de que as doenças
surgem devido às características geográficas), ainda
presente em algumas pesquisas. Um outro ponto que exige cautela quando o assunto
é difusão dessas doenças é que a migração
de pessoas aumenta os riscos de transmissão, pois o homem é
um dos vetores. Na década de 1980, as frentes de trabalho para a Amazônia,
atraiam pessoas saudáveis, cheias de sonhos e as devolvia doentes de
malária, aumentando as chances de transmissão para amigos e
familiares.
Expedito
Luna, do Departamento de Vigilância Epidemiológica do Ministério
da Saúde, explica que para uma doença tropical possa migrar
de uma região para outra são necessárias certas condições
eco-epidemiológicas. Para que os microorganismos sejam bem sucedidos
necessitam da participação de um hospedeiro definitivo e de
um vetor. Se essas condições não existirem a migração
torna-se muito difícil. É o caso da mosca Tsé-Tsé,
que só existe numa determinada faixa da latitude da África e
não encontra condições ambientais para sua reprodução
em outras latitudes. Assim, as condições de reprodução
são determinadas por certas circunstâncias ecológicas
de temperatura, umidade e pluviosidade que possibilitam a reprodução,
ou seja, para que haja a migração de uma doença tropical
é necessário algo além da migração das
pessoas. “Do contrário ela [pessoa] pode até migrar doente,
mas não será um foco de transmissão. As doenças
que não são transmitidas diretamente, pessoa-pessoa, mas por
um vetor intermediário, só se instalam em um novo ambiente se
essas condições forem possíveis de serem reproduzidas”,
argumenta Luna.
Marcos
César Ferreira, professor de geografia da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), concorda com o secretário do Ministério
da Saúde e destaca que as condições climáticas
contribuem para que os casos ocorram em uma certa época do ano. No
inverno, alguns casos específicos são bem menores ou quase nulos.
“O que existe é uma pulsação espacial no período
do verão proporcionado pelas altas chuvas, havendo a probabilidade
maior de concentração de casos devido à situação
de reprodução de insetos”. Porém, Ferreira destaca
que isso serve apenas para uma análise na macro-escala, ou seja, considerando-se
o mapa múndi. Quando a análise é micro-regional, analisando-se
os municípios de uma região metropolitana, é preciso
agregar a situação da circulação econômica,
que surge como fator principal. “Cidades com forte migração
para áreas maiores, municípios que recebem grande contingente
migratório, sejam temporários ou perenes, mostram a consequência
de um certo desequilíbrio econômico regional”, explica
Ferreira.
Fonte
: Instituto Virtual da Dengue do Rio de Janeiro |
|
Aedes
aegypti no mundo |
Fonte:
Superintendência de Controle de Endemias de São Paulo |
|
Municípios
infestados por dengue no estado de São Paulo |
Condições
político-econômicas dos municípios como o parcelamento
ilegal do solo e outras situações de infra-estrutura urbana,
são fatores que fazem com que as grandes cidades sejam focos preferenciais.
“Não é porque o município é maior, mas porque
o município maior é visto como um pólo de agregação
de migração. São situações em que a dinâmica
de uso do solo é mais intensa”, lembra Ferreira.
Regulamento
Sanitário Internacional
Ações
iniciadas na Conferência Mundial da Saúde, organizada pela Organização
Mundial da Saúde (OMS), visam fortalecer os mecanismos de comunicação
entre os países membros para fins preventivos contra as doenças
tropicais. A OMS aprovou, no último dia 23 de maio, o novo Regulamento
Sanitário Internacional. O documento, que deverá entrar em vigor
em dois anos - prazo para que os países se adaptem as novas regras
- traz atualizações importantes com o objetivo de proteger os
países da propagação de doenças em escala mundial.
Algumas das medidas que deverão ser adotadas pelos 192 países
membros da OMS dizem respeito ao controle de fronteiras, portos e aeroportos.
O Relatório original surgiu em 1969, com o objetivo de formar uma rede
de alerta e controle entre os países que observassem o surgimento de
doenças como a varíola, febre amarela, peste e cólera.
Nesse caso, os países membros que ratificaram o Regulamento devem notificar
aos demais países membros da OMS quando da ocorrência dessas
doenças em seus territórios.
Luna,
do Departamento de Vigilância Epidemiológica, explica que, segundo
o antigo Regulamento, se um país não comunicasse a outro nenhuma
epidemia que não fosse alguma dessas descritas, não estaria
infringindo nenhum regulamento internacional. “Mas isso mudou”,
afirma. “Existe uma seqüência de questões a serem
respondidas e notificadas à OMS. Para que isso aconteça, os
países têm que ter determinadas condições que o
permitam detectar esses eventos, condições de vigilância
epidemiológica de laboratório e de saúde pública”.
No Brasil, isso já vem sendo trabalhado há algum tempo. Mas
o maior desafio é melhorar sua capacidade de vigilância epidemiológica
para identificar as doenças emergentes, as desconhecidas, ou as que
já eram conhecidas e voltam com maior oportunidade em uma determinada
área.
Mapemática |
O
método utilizado para desenvolver a pesquisa e representar
os dados espaciais, números e símbolos através
de uma representação gráfica, foi baseado
na chamada mapemática. Ferreira define a mapemática
como a fusão entre as técnicas quantitativas de
análise espacial, a cartografia temática e o sistema
de informação geográfica. Assim, ao mesmo
tempo em que a mapemática cria imagens de quantidades analíticas
do espaço geográfico produz valores numéricos
a partir das variáveis visuais do mapa.
|
|
Para
contribuir no sentido de um maior conhecimento do comportamento espacial de
certas doenças tropicais, a tese de livre docência apresentada
em 2003 pelo professor Marcos Ferreira, da Unicamp, discute a difusão
espacial da dengue na região de São José do Rio Preto,
a noroeste do estado de São Paulo. Sua pesquisa oferece elementos para
que sociedade e governo discutam sobre a permanência de doenças
que já possuem conhecimentos necessários para sua erradicação.
Usando o método da mapemática (veja box ao lado), sua pesquisa
utilizou a linha de difusão espacial que tenta mostrar como determinados
objetos ou informações mudam de posição no espaço
de acordo com o tempo.
Ferreira
explica que os municípios menores, localizados em torno da região
de São José de Rio Preto, apresentam incidência de casos
não aleatoriamente, em círculo, mas num alinhamento preferencial
pelas grandes vias rodoviárias. “Um mosquito não viaja
em linha reta seguindo uma rede rodoviária. Observamos que esse alinhamento
explica porque em alguns municípios os picos dos casos apareciam depois
do verão, como nas cidades de São José do Rio Preto,
Votuporanga e Olímpia, que são cidades situadas em posições
estratégicas no território, em entroncamento de rodovias, com
indústrias e migrações muito elevadas”. A dengue
é muito bem estudada do ponto de vista municipal, ou seja, do urbano,
mas raramente é estudada do ponto de visita regional.
Para
estudar a difusão espacial da dengue, Ferreira utilizou ferramentas
da geoinformação, ou seja, utilizou o computador para referenciar
dados do espaço geográfico. Ele explica que o sistema de informações
geográficas tem contribuído muito com o planejamento e a gestão
dos territórios. “Os casos das doenças, principalmente
as contagiosas, têm um forte vínculo locacional. Assim, o sistema
de informação consegue modelar a ocorrência de casos e
visualizar de uma maneira temporal - por exemplo, a cada semana - as ocorrências
epidemiológicas em um mapa”.
Fonte
Ferreira 2003 |
|
Incidência
de casos de dengue na região de São José do Rio
Preto |
Os municípios 72 e 73 são São José
do Rio Preto e Votuporanga, respectivamente.
Fonte
Ferreira 2003 |
|
Índice
de potencial de contágio |
Interferências
na paisagem também contribuem para migrações
Uma
outra contribuição para estudar os processos de migração
das doenças tropicais é dada pela análise da construção
de grandes obras nos territórios. Na década de 1980, a construção
do lago da Hidrelétrica de Itaipu, no Paraná, foi objeto de
pesquisa de Maria Eugênia Moreira Costa Ferreira, professora da Universidade
Estadual de Maringá (UEM). Seu trabalho procurou investigar as mudanças
no clima local e a alteração da temperatura mínima média
nos arredores do lago. Constatou-se que houve um aquecimento na região,
favorecendo a proliferação do Anopheles (gênero
do mosquito que transmite a malária).
A
professora Moreira Costa explica que o Paraná é o limite extremo
de latitude do Anopheles, que precisa de temperaturas maiores que
26 graus Celsius para reprodução. Assim, a região apresentava
um bom controle natural do inseto, pois o inverno não oferecia condições
climáticas para que eles sobrevivessem. Havia apenas poucos casos de
malária isolados, entre os meses de dezembro a março. Os remansos
criados tornaram-se áreas favoráveis ao desenvolvimento do Anopheles,
mais ou menos entre 1985 e 1994, somando-se às temperaturas mínimas
um pouco mais elevadas, criando as condições naturais para procriação.
Outro
fator investigado por Moreira Costa foi a contribuição dos movimentos
de migração humana para a difusão da doença. Ela
conta que, na década de 1980, muitos paranaenses foram para os garimpos
na Amazônia e o preenchimento do lago, em 1982, influenciou diretamente
esse processo de migração. “O município de Santa
Helena teve um terço de suas terras inundadas. Houve muita gente retirada
de lá que foi, em geral, mal indenizada. Esses desterrados foram para
a Amazônia trabalhar nas frentes de ocupação e quando
voltavam estavam contaminados com malária”.
Por
isso ela defende que o profissional que lida com a saúde não
deve se prender tanto à questão da tropicalidade, pois conjugam-se
problemas sociais, econômicos e políticos do mundo tropical,
e sobretudo, a questão da pobreza. Marcos Ferreira, da Unicamp, concorda
e questiona: “por que em uma mesma região, com condições
climáticas semelhantes em termos de precipitação e temperatura,
alguns municípios têm uma incidência diferente de casos
de seu vizinho?”. Para ele, se a hipótese climatogênica
fosse suficiente, a probabilidade de ocorrência de casos seria a mesma
entre municípios vizinhos, não havendo diferenças significativas.
“Entretanto, a realidade mostra justamente o contrário, ou seja,
que há uma concentração grande em alguns municípios
enquanto em outros não”, finaliza o pesquisador.
(AG)