Sem
lucro não há interesse
A despeito
da necessidade de investimento em pesquisa e desenvolvimento, sinalizada desde
meados da década de 70 pela Organização Mundial da Saúde
(OMS), e embora existam altos índices de ocorrência e mortalidade,
doenças tropicais como malária, leishmaniose ou doença
de Chagas não têm sido um alvo privilegiado pela indústria
farmacêutica. ONGs, médicos e pesquisadores afirmam que o desinteresse
ocorre porque doenças tropicais, recorrentes em países subdesenvolvidos,
não representam um mercado lucrativo para as indústrias. A organização
Médicos Sem Fronteira (MSF) revela que somente 1% dos 1393 novos medicamentos,
registrados entre 1975 e 1999, destinava-se a doenças tropicais e tuberculose.
Sérgio
Queiroz, economista da Unicamp, concorda que a indústria farmacêutica
não vê nas doenças tropicais uma fonte de lucro. “De
modo geral, as empresas realmente não têm interesse em doenças
tropicais. Esses mercados são pequenos ou inexistentes, o que não
quer dizer que as pessoas que sofrem dessas doenças sejam poucas. A
indústria está interessada no dinheiro”, afirma. O economista
observa ainda que, se houvesse sistemas de saúde adequados e abrangentes
nos países subdesenvolvidos, o governo pagaria pelos medicamentos que
a população não pode comprar, criando o mercado que a
indústria quer.
Concordando
com a idéia, o médico do Instituto de Medicina Tropical da USP,
Heitor Franco de Andrade Júnior, salienta a importância de diferenciar
as doenças tropicais e doenças mais recentes, como a aids, que
recebeu consideráveis somas de investimento por afetar cronicamente
grandes populações. Na opinião de Andrade Junior, a diferença
ocorre porque doenças tropicais mais antigas não têm o
impacto comercial significativo para as indústrias farmacêuticas
que a aids tem.
Queiroz complementa
a informação dizendo que apesar do maior contingente de doentes
de aids estar na África, a maior parte do lucro dos medicamentos vem
dos países desenvolvidos: “Certamente a indústria vende
medicamentos anti-aids para o Brasil, assim como para outros países
do terceiro mundo, mas o que ganham aqui não é nada perto do
que eles ganham lá. Essa possibilidade não existe com relação
às doenças tropicais de uma forma geral”.
Andrade Júnior
explica que a lógica de funcionamento da indústria farmacêutica
passa também pelo tempo de uso pelo do paciente: “Os medicamentos
para a aids devem ser tomados por muitos anos seguidos, enquanto que para
a malária apenas seis doses são suficientes para solucionar
o problema. Isso também faz com que o investimento na aids traga maior
retorno para a indústria farmacêutica e justifique investimentos
maiores”, diz ele.
De acordo
com a organização MSF, medicamentos antigos e pouco eficientes
ainda são muito utilizados no tratamento de doenças tropicais,
três mil pessoas morrem por dia por não ter acesso a tratamentos
mais efetivos contra, por exemplo, a malária. Enquanto isso, as indústrias
farmacêuticas investem bilhões de dólares por ano em pesquisa
e desenvolvimento de novos medicamentos concentram seus esforços em
drogas para doenças ou necessidades típicas dos países
mais ricos. Queiroz explica que as doenças que mais atingem a população
dos países desenvolvidos são as degenerativas, como problemas
cardíacos ou mal de Alzheimer, enquanto que nos países pobres,
incidem principalmente doenças infecciosas ou tropicais, sendo a aids,
uma exceção nesse panorama.
No rol das
doenças que interessam à indústria, Andrade Júniorcoloca
ainda as chamadas drogas recreativas. O maior exemplo é o Viagra, remédio
para combater a disfunção erétil que os indivíduos
utilizam voluntariamente e sem receita. “As drogas são desenvolvidas
visando o mercado potencial delas e não as necessidades da sociedade,
tanto é que se gasta muito mais com o marketing de um medicamento do
que com a produção dos compostos em sua formulação”,
diz ele.
Sérgio
Queiroz afirma que o interesse da indústria farmacêutica pela
saúde é um mito, algo que faz parte do marketing, e explica
as motivações: “Não estou dizendo que por conta
disso a empresa não está nem um pouco interessada na saúde.
Existem várias situações em que buscar a saúde
é ao mesmo tempo buscar o lucro, há uma coincidência de
objetivos sanitários e econômicos. Isso ocorre freqüentemente,
mas a empresa não está orientada por motivos de saúde,
e sim pela lucratividade. Se resolver o problema de saúde, mas não
resolver o problema do lucro, ela não fará”, conclui Queiroz.
Responsabilidade
social absorve a crítica
Contudo,
a imagem negativa da indústria junto ao público também
não faz bem aos negócios. Por esse e outros motivos, algumas
empresas têm procurado se aproximar de iniciativas voltadas para os
países subdesenvolvidos.Esse é o caso da empresa Novartis que
criou, em 2003, em Cingapura, o Instituto Novartis de Pesquisa em Doenças
Tropicais. Mais recentemente, a mesma empresa criou um portal voltado para
pesquisadores e centros de pesquisa, que visa agilizar a troca de informações
e conhecimento a respeito do tema. O projeto é uma parceria da Novartis
com a Fapesp, Instituto de Medicina Tropical, da Faculdade de Medicina da
USP, Sociedade Brasileira de Medicina Tropical e a ONG Médicos sem
Fronteiras.
Sálvio
Di Girólamo, diretor de relações externas da Novartis
afirma que a empresa assumiu de forma muito intensa os princípios e
compromissos com o movimento sustentável, em resposta a questionamentos
que estavam sendo feitos há muitos anos à indústria farmacêutica.
“De fato, a indústria não estava se ocupando de desenvolver
ou pesquisar sobre doenças presentes principalmente nos países
em desenvolvimento. A iniciativa em Cingapura foi uma resposta a esta verdade”,
declarou Di Girólamo.
Para o diretor,
as acusações contra a indústria farmacêutica de
uma maneira geral são justas e é importante assumir essa questão
para que o problema seja revertido. “Não dava mais para fazer
de conta que não estava acontecendo nada. Os meios de comunicação
hoje estão publicando críticas de forma instantânea no
mundo inteiro. Isso está criando condições para que nós
tratemos de coisas que até então não estavam sendo tratadas”,
diz o diretor.
Di Girólamo
reconhece que, com a idéia cada vez mais presente de responsabilidade
social, empresas podem ser penalizadas por atitudes que não são
consideradas dignas. “Isso pode fazer com que o valor da ação
da empresa caia. Não é só uma questão de responsabilidade
social, é uma responsabilidade com o acionista. É um conjunto
de fatores que estão empurrando - felizmente - as organizações
numa direção muito mais humana.”, comemora Di Girólamo.
Mas a iniciativa
da indústria farmacêutica com relação às
doenças tropicais traz mais mensagens. Daniel Vasella, presidente mundial
da Novartis, em visita ao Brasil em janeiro deste ano, criticou a política
brasileira relativa às patentes de certos medicamentos, afirmando que
ela gera desconfiança, o que afasta os investidores estrangeiros. Na
mesma oportunidade, Vasella criticou ainda a rigidez de regras para a pesquisa.
Terceiro
mundo como foco para pesquisas clínicas e regulação de
patentes
Falando pela
Novartis, Sálvio Di Girólamo afirma que a crítica do
presidente da empresa refere-se à fase de desenvolvimento dos medicamentos.
Nessa fase, estão as pesquisas clínicas 2, 3 e 4 (a 1 é
com animais). “Muitas vezes exige-se das indústrias estudos com
40 ou 50 mil pacientes. Dificilmente uma empresa na Suíça vai
conseguir 50 mil pacientes que tenham aquela doença. Então,
montam-se vários centros de estudos pelo mundo afora. Ao fazer isso,
a indústria está investindo em cada um desses centros, trazendo
recursos ou comprando equipamentos. O que nós queríamos é
que o Brasil pudesse atrair essa área de desenvolvimento da indústria
farmacêutica”, esclarece Di Girólamo.
O diretor
da Novartis afirma que, enquanto as comissões de ética no mundo
aprovam as pesquisas da fase 4 em 90 dias e já montam os grupos de
pacientes, o Brasil demora nove meses para aprovar e montar esses grupos:
“Como o fator tempo é um fator crítico de sucesso, o Brasil
acaba ficando fora de muitos estudos que poderiam ser feitos aqui. A nossa
estimativa é de que o Brasil deixa de arrecadar algo em torno de US$
300 milhões todos os anos para pesquisas clínicas. Imagine o
que esse dinheiro poderia fazer pelo desenvolvimento do Brasil.”
Di Girólamo
explica a fala de seu chefe afirmando a necessidade do Brasil competir com
esses outros países na atração dos investimentos, que
podem ajudar a desenvolver conhecimento e gerar empregos. “O que Vasella
diz é que o Brasil não é o único país do
mundo. Existem muitos países querendo crescer e se desenvolver, posicionando-se
como excelentes áreas de oportunidade para os investidores internacionais”.
Sérgio
Queiroz afirma que todas as empresas farmacêuticas importantes, que
têm atividades de pesquisa, apresentam esse argumento de que a política
de ameaça de quebra de patentes brasileira gera um clima de instabilidade.
“Um país com proteção de patentes inadequada é
um país que elas vão boicotar, pois ninguém investe em
P&D sem ter perspectivas de se apropriar dos ganhos. Por outro lado, o
ponto de vista do Brasil é que essas empresas reduzam o seu poder de
monopólio. O governo também está certo em defender seu
ponto de vista e barganhar com essas empresas condições e preços
melhores”, diz o economista.
Para Queiroz,
além do fator marketing, as indústrias farmacêuticas estão
atentas para o momento em que há, nos países pobres, um crescimento
de renda suficiente para aumentar o consumo de medicamentos, ou o início
de programas governamentais de atenção à saúde,
que incluam pacotes de medicamentos para a população. “As
empresas monitoram tudo isso. No momento em que isso começa a acontecer
- e talvez haja algum sinal de que isso já está acontecendo
- então começam a investir em doenças tropicais. Certamente
elas não vão ser pegas de surpresa. Vejo o investimento da Novartis
já como uma sinalização nesse sentido”, diz o economista.
O médico
Andrade Júnior acredita que o crescimento da atenção
das indústrias farmacêuticas sobre o terceiro mundo não
pode ser desvinculado de seus interesses, seja pelo marketing, para se firmar
diante de mercados potenciais que países como Brasil, Índia
ou China representam, ou ainda, pelas vantagens econômicas existentes
na realização das pesquisas nesses países, com menor
custo de mão de obra. Apesar disso, Andrade considera que essa atenção
da indústria farmacêutica pelas patologias tropicais deve ser
valorizada.
(MK)