Leishmaniose Visceral Americana:
doença emergente no estado de São Paulo
Vera Lucia
Fonseca de Camargo-Neves
A leishmaniose
visceral (LV) é uma doença infecciosa e originalmente uma
zoonose que afeta animais e o homem. Tem como agentes causais
espécies de protozoários do gênero Leishmania
(ordem Kinetoplastidae, família Trypanosomatidae) dependendo da
localização geográfica e, da mesma forma, tem como
agentes transmissores diferentes espécies de insetos,
denominados flebotomíneos, pertencentes à
sub-família Phlebotominae, dos gêneros Phlebotomus sp
e Lutzomyia sp. No Brasil a doença, também
chamada de leishmaniose visceral americana (LVA) ou calazar
neo-tropical, é causada pela Leishmania chagasi e as
espécies envolvidas com a transmissão são a
Lutzomyia longipalpis, o principal vetor, e L. cruzi.
A LV está
entre as seis doenças mais importantes causadas por
protozoários no mundo dado a sua incidência, alta
mortalidade em indivíduos não tratados e crianças
desnutridas, e emergência em indivíduos portadores da
infecção por HIV. Tem ampla distribuição
geográfica ocorrendo na Ásia, na Europa, no Oriente
Médio, na África e nas Américas. O número
estimado de casos, por ano, é de cerca de 500 mil casos novos,
sendo que 90% deles ocorrem em Bangladesh, Brasil, Índia e
Sudão. Na América Latina a doença já foi
descrita em pelo menos 12 países, sendo no Brasil aquele em que
se registra o maior número de casos (cerca de 90% do total
notificado).
No Brasil, a LVA atinge
19 estados e anualmente são registrados cerca de 3.500 casos. Até
a década de 90, a região Nordeste foi a que registrou os maiores
coeficientes de incidência e contribuiu com 90% dos casos registrados
no país. Ao final dessa década, observa-se além do aumento
do número de casos, uma expansão da área de distribuição
geográfica da doença para outras regiões brasileiras
atingindo estados onde a doença era desconhecida, como o estado de
São Paulo. Isto se deu em virtude da modificação do padrão
de transmissão, antes uma enfermidade quase exclusivamente de ocorrência
rural e, recentemente, a transmissão vem ocorrendo em zonas urbanizadas
de grandes cidades como Fortaleza - CE, Teresina - PI, Campo Grande - MS,
Belo Horizonte - MG, Araçatuba e Bauru no ESP. Entre os fatores que
contribuíram para essa mudança de comportamento destacam-se
as modificações sócio-ambientais como o desmatamento,
que reduziu a disponibilidade de criadouros do vetor, fazendo que houvesse
a sua adaptação para novos ecótopos e da oferta de animais
que servissem como fonte de alimentação para o flebotomíneo,
colocando o cão doméstico e o homem como alternativas mais acessíveis;
e o processo migratório, que trouxe para as periferias das cidades
populações humana e canina originárias de áreas
rurais, onde a doença é endêmica, introduzindo o parasito
em novas áreas receptivas para a ocorrência da doença.
No estado de
São Paulo, a espécie de flebotomíneo envolvida com
a transmissão da LVA é a L. longipalpis, que
já havia sido registrada em zonas rurais de municípios
situados no Planalto Atlântico Paulista. Em zona urbana, a
espécie foi registrada pela primeira vez em 1997, no
município de Araçatuba, na região do Planalto
Ocidental, onde até então sua presença era
desconhecida.
Desde
então, verifica-se que a expansão e a
adaptação do vetor aos ecótopos urbanos vêm
ocorrendo lentamente, tendo sido registrado, inicialmente, em
municípios contíguos à Araçatuba e, depois,
naqueles que estabeleceram fluxo migratório de pessoas e
mercadorias com os municípios da região de
Araçatuba. Posteriormente, foi detectada em outras
regiões administrativas, como Bauru, Marília e Presidente
Prudente, seguindo pelos grandes eixos rodoviários e
ferroviários. No início de 2005, a L. longipalpis
foi detectada pela primeira vez em zona urbana de município
situado na região Planalto Atlântico, com
características macro climáticas diferentes, mostrando o
alto potencial de adaptação do vetor à ambientes
diversos.
Até o
momento, a L. longipalpis foi registrada em zona urbana de 56
municípios do estado (figura 1). Sendo essa a única
espécie relacionada com os focos de transmissão da
doença, embora na região metropolitana de São
Paulo a ocorrência da enzootia canina leve a supor que haja outra
espécie de flebotomíneo que possa estar envolvida com a
transmissão ou mesmo a existência de outro modo de
transmissão, o que ainda deve ser elucidado.
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Figura 1:
Distribuição de Lutzomyia longipalpis no estado
de São Paulo.
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No ambiente
domiciliar, o peridomicílio destaca-se como o local onde o vetor
é encontrado em maior densidade. Está relacionado
à presença de animais domésticos, sendo os abrigos
de animais considerados os locais mais importantes de
criação e de repouso de L. longipalpis em
área urbanizada. As fêmeas desta espécie têm
demonstrado alta cinofilia, como também antropofilia,
confirmando assim seu papel de vetor da LVA.
Historicamente,
no estado de São Paulo, a LVA era conhecida pela
detecção de casos importados, oriundos de outras
regiões endêmicas do país. Em 1998, a
transmissão canina foi registrada pela primeira vez no
município de Araçatuba. Posteriormente, em 1999, foi
registrado o primeiro caso humano de LVA e, desde então, a
doença vem ocorrendo em municípios situados na
região do Planalto Ocidental Paulista, nos quais a
transmissão tem feição exclusivamente urbana. A
enzootia canina, desde a sua primeira detecção até
maio de 2005, foi registrada em 41 municípios abrangendo as
regiões de Araçatuba, Bauru e, mais recentemente,
Marília, além da região metropolitana de
São Paulo e a possibilidade de ocorrência de
transmissão canina no município Espírito Santo do
Pinhal, ainda em investigação. Desses, em 28
municípios a transmissão em seres humanos já foi
notificada (figura 2), tendo sido notificados, ao Centro de
Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Saúde do
estado de São Paulo, 534 casos humanos e 65 óbitos.
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Figura 2:
Distribuição de municípios com transmissão
de leishmaniose visceral americana canina e humana, no período
de 1998 a 2005. Estado de São Paulo.
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No estado de
São Paulo, observa-se que o maior número de casos ocorreu
naqueles municípios com as maiores prevalências caninas,
verificando-se uma relação espaço-temporal, na
qual a doença em cães, na grande maioria das vezes,
precedeu a detecção de casos humanos, principalmente em
municípios onde o vetor já havia sido registrado
anteriormente. Embora não se possa estabelecer uma
relação causa-efeito, a ocorrência da LVA em seres
humanos tem também como fator de risco a ocorrência da LVA
em cães e esta à alta densidade da
população canina.
O programa de
controle da LVA aplicado no Estado consiste nas ações de
vigilância epidemiológica, na detecção e
tratamento oportuno dos casos humanos; na vigilância
entomológica e controle da população canina
infectada e da densidade vetorial. No que se refere à
vigilância entomológica, esta visa detectar a
presença e dispersão de L. longipalpis,
além de permitir conhecer sua distribuição nos
centros urbanos e aglomerados rurais, monitorando, ainda, a
variação sazonal dos níveis de
infestação e adaptação do vetor. O controle
da população canina consiste, principalmente, na
eliminação dos animais errantes; na busca ativa e
eliminação de cães infectados, detectados
através de exame parasitológico ou sorologia positiva.
As ações de controle vetorial vêm sendo realizadas
por meio de atividades de saneamento ambiental, em todos os setores do
município em que vetor já foi detectado. A fim de reduzir
os locais prováveis de criação do vetor ou de
repouso, está embasada no controle mecânico, a partir da
retirada de matéria orgânica do peridomicílio e na
poda de galhos e arbustos que possam fornecer condições
de estabelecimento de locais para repouso e criação do
vetor. O controle químico vem sendo realizado nos meses
favoráveis ao aumento da densidade do vetor, restrito às
áreas de ocorrência de casos humanos e que reúnam
as condições que indiquem maior risco de
manutenção do ciclo de transmissão da
doença. Entre elas, alta densidade populacional de cães e
prevalências caninas superiores a 2%, ocorrência de casos
humanos há mais de dois anos e população com baixo
nível sócio econômico.
Apesar dos
esforços para atingir os objetivos, a transmissão da LVA
transcorre nas formas subclínicas com o registro de casos novos
todos os anos. O município de Araçatuba é o que
registra o maior número de casos. Entre os municípios
investigados anualmente, observa-se que a expansão da
doença vem se dando na medida em que vem ocorrendo a
adaptação da Lutzomyia longipalpis em novos
municípios, verificando-se que a epizootia canina, na maioria
dos municípios, precedeu o aparecimento dos casos humanos. O
risco de expansão aumenta a partir do momento em que grandes
pólos de atração migratória passam a
registrar a doença, como o município de Bauru e, mais
recentemente, embora de pequeno porte, os municípios da
região de Marília. Na grande maioria das vezes, a
introdução do parasito ocorre pelo envio de cães
assintomáticos, para outras áreas a fim de que estes
não sejam eutanasiados pelos órgãos de controle ou
mesmo pela doação de cães assintomáticos
oriundos de áreas endêmicas, levando com isso ao
estabelecimento de transmissão da doença entre os
cães e, conseqüentemente, da transmissão para seres
humanos.
A LVA é
uma doença de difícil controle, dado ao longo
período de incubação tanto no reservatório
doméstico como no hospedeiro humano, não se sabendo ao
certo onde poderá vir a ocorrer. As ações de
controle do vetor por meio de aplicação de inseticidas de
ação residual, é uma medida de pouco impacto e
deve ser aplicada em situações epidêmicas de modo a
baixar a densidade vetorial rapidamente, já que esta alternativa
atingiria apenas a forma alada do vetor, não extinguindo os
criadouros. O tratamento de cães, também não
é uma medida eficaz, uma vez que não redime o animal como
fonte de infecção para o vetor. Portanto, as
ações de controle, atualmente propostas devem ser
contínuas e avaliadas a cada ano, para que os objetivos
propostos possam ser atingidos, principalmente o de
redução da mortalidade humana. A descontinuidade das
ações de controle, tanto aquelas relacionadas ao
reservatório doméstico como as relacionadas ao vetor,
é um fator que favorece a manutenção da
transmissão. Medidas alternativas como a
utilização de mosquiteiros impregnados com inseticidas, a
telagem de portas e janelas de domicílios situados em
áreas endêmicas, pode minimizar o risco de
transmissão. A utilização de coleiras impregnada
com deltametrina, também vem a ser uma alternativa de
proteção contra aplicada para o flebotomíneo e sua
utilização em programas de saúde pública
vem sendo avaliada com resultados promissores.
Vera Lucia
Fonseca de Camargo-Neves
Superintendência de Controle de Endemias - Sucen, Coordenadoria de Controle
de Doenças, Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo.