Novos medicamentos: responsabilidade
de quem?
A produção
de novos medicamentos para as chamadas doenças
tropicais, ou de forma mais genérica, doenças negligenciadas
é considerada insuficiente tanto em países desenvolvidos quanto
em países em desenvolvimento. As indústrias farmacêuticas
constituem um setor altamente monopolizado e lucrativo, que necessita de grande
investimento em P&D. Seguindo a lógica empresarial, os altos investimentos
implicam na produção de fármacos que ofereçam
maior segurança de retorno financeiro. Como os atingidos pelas doenças
tropicais vivem justamente nos países em desenvolvimento - mais pobres
- não é difícil entender porque as doenças tropicais
se tornam também doenças negligenciadas pelos grandes laboratórios
farmacêuticos.
Algumas
estatísticas sobre o setor mostram que as grandes empresas
farmacêuticas não apenas estão concentradas em
países desenvolvidos, mas também vendem e produzem
basicamente para esses países. Os maiores produtores mundiais de
medicamentos são respectivamente América do Norte (50%),
Europa (24%) e Japão (13%). Toda América Latina é
responsável por apenas 5% dos medicamentos produzidos. De outro
lado, 80% da população mundial é
responsável pelo consumo de cerca de 20% dos remédios
produzidos e apenas 10% das pesquisas de saúde são
dedicadas a doenças negligenciadas.
Segundo o documento Desequilíbrio
Fatal produzido pela organização Médicos Sem Fronteiras
(MSF) e pelo Drugs for Neglected Diseases (DNDi)
das 1393 novas drogas descobertas entre 1975 e 1999, apenas 15 destinaram-se
a doenças negligenciadas - cerca de 1% - apesar de essas doenças
representarem mais de 12% das enfermidades mundiais. Dentre os 13 medicamentos
produzidos para doenças tropicais nesse período, 6 foram feitos
com apoio do programa Treinamento para Doenças Tropicais (TDT) financiado
pela Organização das Nações Unidas (ONU), Banco
Mundial e Organização Mundial de Saúde (OMS), que destinou
U$ 30 milhões anuais para o TDT.
Esse quadro
deixa claro que dificilmente o setor privado vai resolver o problema de
saúde que envolve a produção e melhora na
eficiência de fármacos que combatem as doenças
infecciosas tropicais. Por falta de remédios ou
inexistência de tratamentos adequados, essas doenças
matam, por ano, cerca de 14 milhões de pessoas no mundo. A
solução, então, dependeria muito mais de
esforços de laboratórios, institutos e entidades de
caráter público, e também de ações
públicas que incentivassem a produção desses
medicamentos por empresas privadas.
"Na parte de controle de
vetores que transmitem doenças tropicais temos conseguido avançar,
na parte de detecção dessas doenças também. Mas,
a produção de novos medicamentos para doenças tropicais
ainda constitui um grande hiato para o sistema de saúde brasileiro",
confirmou Carlos Magno Castelo Branco Fortaleza, médico e superintendente
da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen).
Para o médico, a
emergência de doenças como hantavirose, febre maculosa e leishmaniose
visceral - que voltaram a crescer em alguns locais do estado de São
Paulo - reforçam a necessidade de fornecer tratamentos melhores e formas
de detecção mais efetivas. "A tuberculose, por exemplo,
é considerada uma doença negligenciada que atinge uma fatia
importante da população mundial e mesmo assim não é
produzida uma droga nova para seu combate há 30 anos. É lógico
que se houvesse mais investimentos, poderíamos ter hoje uma vacina
mais efetiva para tuberculose como já ocorre com o sarampo e outras
enfermidades", analisou o médico (leia artigo
que fala sobre nova vacina para tuberculose.
Setores
públicos ainda participam pouco
Apesar de existirem hoje
no Brasil inúmeras pesquisas
em andamento sobre doenças tropicais em laboratórios, institutos
e universidades públicas, quando o assunto é a produção
de medicamentos para combate a essas doenças, as ações
estão muito aquém do necessário. O único laboratório
público que trabalha com pesquisa de novos fármacos no Brasil
integra o Instituto de Tecnologia em Fármacos (Far-Manguinhos), da
Fiocruz. A produção de medicamentos neste laboratório
é significativa, tendo proporcionado, apenas em 2004, uma economia
de R$ 200 milhões ao Ministério da Saúde que adquiriu
fármacos com preço em média 60% mais baixo que o do mercado.
Mas, apesar de uma das missões do Far-Manguinhos ser a produção
de fármacos para as doenças negligenciadas, a maior parte dos
medicamentos produzidos no ano passado foi voltada para combate à hipertensão
e diabetes - atendendo à demanda do Programa de Hipertensão
e Diabetes do Ministério da Saúde - e medicamentos para o coquetel
anti-aids.
No que diz respeito a medicamentos
para doenças negligenciadas, seguindo a tendência dos grandes
laboratórios privados, a produção de novos fármacos
é ainda incipiente. " O Far-Manguinhos possui várias linhas
de pesquisa voltadas para essas doenças, mas ainda não produziu
nenhum fármaco novo que já tenha chegado ao mercado ou às
redes de saúde pública. O desenvolvimento tecnológico
de um medicamento novo leva em torno de 10 anos. Nossas pesquisas são
importantes justamente para que novos fármacos voltados a doenças
negligenciadas possam estar disponíveis para a população
em um futuro próximo ", explicou André Daher, médico
da assessoria de planejamento de gestão tecnológica do Far-Manguinhos.
Um dos projetos
desenvolvidos pelo Far-Manguinhos em parceria com a DNDi e a empresa
Sanofi-Aventis foi concluído em maio deste ano, e
proporcionará o lançamento de um novo medicamento para o
tratamento da malária. O produto não foi patenteado e
poderá ser produzido por qualquer indústria de
medicamentos genéricos. Para isso, a DNDi e a Sanofi-Aventis
devem promover a transferência de tecnologia para os produtores
de genéricos, de modo que o produto esteja disponível aos
pacientes já em 2006. Entre as vantagens do novo medicamento
estão a facilidade de uso e o baixo custo: 1 dólar por
tratamento completo para um adulto. Apesar da importância desse
primeiro passo da DNDi, a MSF ressalta que o parasita
responsável pela malária se modifica freqüentemente
em resposta a novos tratamentos, portanto, é essencial que a
P&D de novos produtos seja contínua, dependendo de
políticas públicas e comprometimento financeiro por parte
dos governos e entidades internacionais para que novas
soluções sejam apresentadas periodicamente.
Ainda sobre
ações voltadas para P&D de fármacos para
doenças negligenciadas, algumas estatísticas da
Coordenação de Programas de Pesquisa em Saúde do
CNPq mostram que os investimentos em farmacologia, química e
bioquímica têm crescido nos últimos anos no Brasil.
Porém, é difícil saber, dentre os investimentos
feitos, qual a quantia destinada especificamente para o desenvolvimento
de novos fármacos, assim como, quais novos fármacos
teriam relação com as doenças tropicais.
No que diz respeito a linhas
de financiamento ou incentivos, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
e Social (BNDES) lançou recentemente um programa para financiamento
à indústria farmacêutica nacional, o Pró-Farma,
que não possui incentivos específicos para produção
de fármacos voltados para doenças negligenciadas, o que poderia
representar um estímulo para a indústria nacional produzir medicamentos
para esse fim. "No entanto, pretendemos a curto prazo criar algumas diferenciações
dentro do incentivo à indústria farmacêutica e dentre
elas queremos contemplar as doenças negligenciadas", pontuou Pedro
Palmeira, gerente de químicos para saúde do BNDES.
Segundo documento produzido
pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), a falta de opções terapêuticas
ou tratamentos mais adequados para doenças como a do sono, leishmaniose,
de Chagas, malária e outras classificadas como doenças negligenciadas,
é resultado de falhas do mercado e das políticas públicas.
" É preciso buscar estratégias para resolver essa questão,
pois apesar do avanço no conhecimento das bases moleculares e celulares
das patologias, o desenvolvimento de novas drogas para essas doenças
avança a passos lentos ". Para os analistas, gerar novas drogas
para doenças negligenciadas não tem como objetivo principal
gerar uma nova patente, mas sim assegurar autonomia política para garantir
o tratamento de patologias que não despertam os interesses econômicos
das grandes corporações farmacêuticas.
Para o DNDi, a
mudança da situação atual exige dos governos
ações que busquem estabelecer tratados globais que
obriguem as empresas farmacêuticas a investir parte do seu lucro
em pesquisas sobre doenças negligenciadas e que as drogas para
tratamento dessas moléstias sejam consideradas bens
públicos globais, passíveis de terem sua patente
quebrada.
(MT)