Revolta
da Vacina: a saúde pública e um novo projeto sociedade
O
nome "Revolta da Vacina" pode induzir a algumas interpretações
equivocadas sobre o levante popular ocorrido em 1904, no Rio de Janeiro. A
revolta não esteve circunscrita a vacina em si, mas a um novo projeto
de sociedade que alguns setores da elite brasileira queriam implementar na
capital do país, integrado-o aos ventos da modernidade que sopravam
também na Europa e nos Estados Unidos. Tal projeto teve um impacto
junto às camadas baixas da população, onde era maior
a incidência de doenças endêmicas. No caso do Rio de Janeiro,
gerou o episódio da revolta. No entanto, esse significado mais amplo
também é alvo de controvérsias entre os historiadores
e cientistas sociais que estudam o período.
O
Rio de Janeiro da época era uma das maiores cidades do Brasil, com
cerca de 800 mil habitantes. Era também a capital do país que
produzia mais de dois terços do café comercializado no mundo
e que buscava atrair imigrantes para trabalhar nas lavouras do produto, carro-chefe
da economia nacional. Desse modo, os cafeicultores davam as cartas no cenário
político e eram a base de sustentação do presidente da
época, Rodrigues Alves, ligado ao Partido Republicano Paulista (PRP).
"Um
dos entraves à política imigrantista do governo federal eram
as sucessivas epidemias de febre amarela, que ocorriam no Rio de Janeiro desde
meados do século XIX, principal porto de entrada do país",
afirma o historiador Sidney Chalhoub, da Universidade Estadual de Campinas.
O combate às doenças era uma demanda urgente e, nesse contexto,
é que se sobressai a figura do sanitarista Oswaldo Cruz. Baseado nas
então recentes conclusões de pesquisadores norte-americanos
sobre a transmissão da doença e em eficientes projetos de combate
ao mosquito transmissor já implementados por Emílio Ribas no
interior paulista, Oswaldo Cruz dirige um "grande cruzada" contra
a doença no Rio de Janeiro.
O
prefeito Pereira Passos, ao mesmo tempo, inicia um conjunto de obras de urbanização,
que inclui a construção de grandes avenidas e praças,
além da eliminação de cortiços e locais denominados
como "insalubres". Centenas de casas são demolidas e seus
moradores expulsos para construção da atual Avenida Rio Branco
e da Avenida Passos. "Do ponto de vista político e social, o que
Oswaldo Cruz estava propondo era também, usando os termos da época,
uma modernização do Rio de Janeiro, que tinha como grande referência
as cidades européias", afirma o sociólogo Luiz Antônio
de Castro Santos, do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual
do Rio de Janeiro (UERJ). O pesquisador também elogia, o embasamento
da proposta de Oswaldo Cruz: "O jovem sanitarista era um médico
'de ponta'. Em qualquer lugar do mundo ele seria considerado alguém
que estava trabalhando com o que de mais avançado em termos de conhecimento
e controle de doenças", afirma.
No
entanto, para Sidney Chalhoub, outro fator atua como motivador das reformas
urbanas. Trata-se do combate à existência de miasmas, definidos
na época como emanações de gases e odores provenientes
de matéria orgânica em decomposição e de moléstias
contagiosas, que tornavam o ambiente propício a propagação
de doenças: "Mesmo com o surgimento da microbiologia e de uma
série de descobertas científicas a partir da década de
80 do século XIX, o paradigma da infecção miasmática
continua sendo importantíssimo para as reformas urbanas ocorridas no
período", afirma Chalhoub. O historiador diz que as reformas urbanas
no Rio de Janeiro, visavam dispersá-los, já que era impossível
eliminá-los por completo. Tal situação leva a uma política
extremamente opressiva: "Há uma projeção social
da segregação social, separando-se os pobres, já que
que eram vistos como potenciais transmissores de doenças", completa
Chalhoub.
Após
iniciado o combate à febre amarela, já na virada para o século
XX, o Rio de Janeiro passa também por epidemias de peste bubônica,
que passou a ser prevenida com o combate aos ratos. Já a varíola,
terceira doença a ser combatida, pressupunha a vacinação
em massa da população. E aí é que ocorre a gota
d'água para a eclosão da Revolta da Vacina. Em 31 de outubro
de 1904, o governo aprova uma lei que torna obrigatória a vacinação,
cuja regulamentação previa a aplicação de multas
em quem resistisse. O comprovante de vacinação passava a ser
exigido para casamento, viagens, hospedagens e matrículas em escolas.
A reação foi rápida: os protestos iniciam-se no dia 10
de novembro e foram crescendo até o dia 13, quando generalizaram-se.
Embora centrados na região da Praça da República e do
Largo São Francisco, os conflitos estenderam-se desde a zona norte
até a zona sul. Bondes foram queimados, barricadas foram construídas,
a população invadiu delegacias e quartéis e viam-se trocas
de tiros em diversas regiões da capital. Rodrigues Alves esteve na
iminência de fugir às pressas do palácio do Catete, pois
havia a suspeita de um possível golpe de Estado. Tropas do exército
das cidades de Niterói, Lorena (SP) e São João del Rei
(MG) foram convocadas.
Mas
quais grupos sociais e lideranças compunham essa massa de revoltosos
que implantou o caos no Rio de Janeiro e por que houve uma adesão tão
grande à revolta? Segundo registros de época, havia a presença
de operários socialistas, estudantes, comerciantes e militares, mas
a grande maioria era composta pela população pobre. Quanto à
adesão maciça à revolta, segundo Luiz Antônio de
Castro Santos, ela se explica devido às precárias condições
de vida da população e não foi especificamente contra
a vacina: "Foi uma revolta essencialmente contra a carestia, que teve
uma série de elementos que levaram à sua eclosão, como
as reformas urbanas de Pereira Passos e a vacinação obrigatória".
Segundo o sociólogo, houve também a manipulação
da população em geral por uma facção da elite
que não estava ligada PRP, partido de Rodrigues Alves. Parte deles
eram oficiais de baixa patente das forças armadas, que posteriormente
seriam chamados de "tenentes". Havia também grupos de positivistas,
além de "setores da elite médica, principalmente da Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro, que mantinham uma distância do Instituto
Manguinhos e não tinham assimilado a importância da vacinação.",
completa. Por último, ele cita também um fator moral, pois alegava-se
na época que a vacinação compulsória nas casas
envolvia a "profanação" da intimidade do lar das pessoas.
Já
para Sidney Chalhoub, a atuação ostensiva do poder público
junto a população pobre, entrando nas casas com a polícia
e vacinando as pessoas mesmo sem consentimento, foi determinante para a eclosão
da revolta: "Anteriormente à lei, a população já
vivia uma rotina de vacinação compulsória, onde regiões
de incidência da doença eram cercadas e todas as pessoas vacinadas".
O agravamento de tal situação se dava também devido a
aspectos culturais. Conforme Chalhoub, de acordo com as tradições
africanas, a varíola era vista como algo que servia para purificar
a comunidade e havia rituais de variolização (prática
que gera formas mais brandas da doença e pode levar à imunização).
Em um contexto em que 60% dos escravos do Rio de Janeiro eram africanos, o
choque cultural era inevitável. Desse modo, ele define a Revolta da
Vacina como uma falta de comunicação trágica: "A
medicina ocidental não buscou entender os motivos e os entendimentos
culturais dos outros sujeitos e entrou com a arrogância científica
para impor uma determinada prática", explica.
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Charge publicada em jornal da época,
intitulada "o espeto obrigatório" |
Já
Luiz Antônio de Castro Santos defende a atuação dos médicos
na ocasião, pois vê as medidas tomadas por Oswaldo Cruz como
inseridas em um processo de concessão de direitos e de cidadania à
população. Ele cita um dos primeiros médicos a atuar
nessa perspectiva, chamado Rudolf Virchow, na Alemanha do século XIX,
que defendia a saúde como um dos instrumentos para uma reforma política
da sociedade, democratizando-a e concedendo direitos essenciais. Embora Oswaldo
Cruz não tivesse essa referência, ele cita que não deixa
de ser um avanço: "Essa 'tradição alemã'
não estava no ator social Oswaldo Cruz, mas no momento histórico.
Do ponto de vista da análise sociológica, havia ali uma conquista",
afirma.
Sidney
Chalhoub também faz outra crítica à atuação
do poder público, lembrando que ela era embasada na teoria dos miasmas,
que incluía um forte conteúdo discriminatório: "Como
as teorias miasmáticas eram abrangentes, acompanhadas de um jeito de
pensar a sociedade como um todo, havia a necessidade do poder público
atuar visando não só um saneamento médico, mas também
moral", diz. Tal fato fez com que a população pobre fosse
amplamente atingida e reagisse dando início à revolta. "Não
é a toa que as principais áreas de conflagração
da revolta foram regiões onde estavam concentradas a população
de baianos e os candomblés", afirma.
Sobre os parâmetros que orientam as discussões sobre saúde
no momento atual, porém, ambos os pesquisadores são bastante
críticos. Para Luiz Antônio de Castro Santos, vivemos hoje o
"mito da saúde perfeita", que gera uma medicalização
exacerbada e campanhas centradas no indivíduo, como por exemplo as
campanhas anti-tabagistas. Já Sidney Chalhoub critica a formação
e atuação de muitos médicos: " A maioria dos médicos
não se propõe a pensar o mundo e o seu ofício em um contexto
mais abrangente, o que era algo impensável para um médico do
século XIX", afirma. A conseqüência disto é
que a prevenção de doenças acaba não sendo discutida,
ou então ocorre atrelada ao uso de novas técnicas ou tecnologias:
"Tem-se o conhecimento, mas não há a prioridade na prevenção
e nas políticas públicas, conclui.
(DC)