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http://www.comciencia.br/reportagens/2005/06/13.shtml

Autor: Sandra Caponi
Data depublicação: 10/06/2005

A emergência da medicina tropical no Brasil e na Argentina

Sandra Caponi*

A preocupação médica com os trópicos, que parece ter obcecado aos médicos militares das colônias européias durante as últimas décadas do século XIX e inícios do século XX, não está ausente na América Latina. Analisamos de que modo os pesquisadores argentinos e brasileiros construíram seus programas de pesquisa referidos a essas doenças que pareciam estar diretamente vinculadas com o clima quente.

Os argumentos utilizados pelos higienistas, sanitaristas e pesquisadores brasileiros e argentinos, entre os anos 1890 e 1916, em torno dos modelos explicativos e das estratégias de profilaxia que deviam ser adotadas perante doenças tais como a febre amarela, a malária e a doenças do Chagas, evidenciam a existência de dois modos diferentes de abordar a medicina tropical.

Na década de 1890, a Argentina desenvolveu seu plano de reorganização urbana e de controle das moradias e doenças populares como a sífilis e a tuberculoses. Durante os anos seguintes as preocupações dos pesquisadores argentinos estarão centradas na construção de laboratórios e de um Instituto de Bacteriologia. Estes estudos bacteriológicos permitiram garantir a continuidade e a legitimidade científica dos trabalhos realizados pelos higienistas clássicos, Guillermo Rawson e Eduardo Wilde. Os novos higienistas das primeiras décadas do século XX, entre os quais figuram principalmente os nomes de Emilio Coni e José Penna, aperfeiçoaram e aprofundaram os estudos estatísticos e centraram toda sua confiança nos avanços e descobrimentos da microbiologia.

A ordem era isolar e descobrir novos micróbios, criar vacinas e soros específicos, e dar continuidade às medidas clássicas de desinfeção, saneamento e reorganização urbana, legitimadas com os estudos da microbiologia. Buenos Aires figurava então como um modelo de cidade higiênica que devia ser seguido pelas outras capitais latino-americanas. Uma cidade, como afirmavam, comparável a Paris, Londres ou New York. Então identificaram seus problemas sanitários aos das grandes metrópoles de clima temperado negando qualquer proximidade com as doenças próprias dos “trópicos palúdicos”.

A preocupação desses higienistas estava centrada nas doenças derivadas das aglomerações populares e das condições de vida de um proletariado escassamente instruído, e se concentrava, fundamentalmente, nessa tríada que preocupava tanto aos higienistas pré e pós-pasteurianos: tuberculoses, sífilis, alcoolismo.

Mas a Argentina não se reduzia a uma Buenos Aires saneada, existiam então, como existem hoje, cidades do interior extremamente pobres e permanentemente ameaças por essas doenças que têm maior incidência nas regiões tropicais. No início do século XX, a doença mas temida na capital era a febre amarela que se enquadrava dentro da categoria de doença tropical. Entretanto, e ainda quando existiram na Argentina duas dramáticas epidemias de febre amarela durante os anos 1871 e 1890, as doenças transmitidas por vetores continuaram sendo estudadas com as mesmas estratégias que qualquer outra doenças infecciosa, seja de transmissão direta de homem a homem, seja de transmissão indireta pelos canais classicamente aceitos: água, ar ou roupas infectadas. Até 1916 a aliança estabelecida entre as medidas de saneamento e desinfeção propostas pela higiene clássica e os avanços dos estudos microbiológicos com suas vacinas e soros parecia suficiente para dar resposta a todos os problemas sanitários que pudessem apresentar-se no país.

O Brasil, por sua parte, possuirá a partir do ano 1903 o maior centro de estudos bacteriológicos existente na América Latina. O Instituto Soroterápico Federal de Manguinhos foi criado no ano 1900 no Rio de Janeiro, inicialmente com o objetivo específico e limitado de criar vacinas e soros para combater uma das duas epidemias que então ameaçava ao Brasil: a pandemia mundial de peste que se iniciou no extremo Oriente em 1894, e que em 1899 faz sua aparição na cidade portuária de Santos. O bacteriologista chefe era um jovem cientista, chamado Oswaldo Cruz, que chegava recomendado por Emile Roux do Instituto Pasteur.

O Instituto de Patologia Experimental Manguinhos, mas tarde chamado Instituto Oswaldo Cruz devia ocupar-se de realizar estudos de soros e vacinas, mas também de criar programas de pesquisa e de profilaxia das três grandes epidemias que então preocupavam ao Brasil: febre amarela, peste e varíola. Duas dessas epidemias são transmitidas por vetores e exigem protocolos de pesquisa diferenciados e estratégias profiláticas específicas de combate aos ratos, pulgas e mosquitos. Uma quarta epidemia, já não urbana mas rural, adicionara-se a essa lista a partir do ano 1909, a tripanosomiasis americana ou doenças do Chagas, também incluída entre as doençass transmitidas por vetores, neste caso pela chamada vinchuca ou “barbeiro”.

O estranho é que ainda quando as epidemias que ameaçavam às populações argentinas e brasileiras eram mais ou menos idênticas - não só varíola e tuberculose mas também febre amarela, peste, paludismo, chagas - os programas de pesquisa seguidos em cada um desses países eram completamente diferentes.

Para compreender essas diferenças é necessário observar a proximidade existente entre o programa sanitário defendido pelos pesquisadores argentinos com a microbiologia pasteuriana e com os estudos desenvolvidos pelos pasteurianos nas colônias francesas da África e Ásia. Por outra lado, será a proximidade entre o programa de pesquisa das doenças tropicais realizada pelos pesquisadores brasileiros com os estudos de medicina tropical desenvolvidos na Inglaterra e Alemanha o que nos permitirá compreender a aparição e integração de novos estudos tais como a entomologia médica, a parasitología como aliados à microbiologia.

O Instituto Pasteur impulsionou a criação dos Institutos de Ultramar na China, Indochina e África para dar resposta a dificuldades encontradas pelos europeus brancos nas colônias. A missão desses institutos era clara: “exportar” o conhecimento dos laboratórios metropolitanos, fundar laboratórios de bacteriologia e “formar uma nova geração de bacteriologistas nativos”. A primeira dificuldade que deixará esse encontro entre a bacteriologia e os trópicos, geralmente mediado por médicos militares, era certa incapacidade para dar resposta às numerosas doenças, particularmente à doença do sonho, que não se deixavam reduzir aos protocolos experimentais e às idéias pasteurianas. Elas pareciam oferecer sérias resistências ao protocolo pasteuriano: tanto à especificação do agente causal como à produção de vacinas e soros que, em muitos casos, continuam até hoje.

Em relação ao programa de pesquisa iniciado por Patrick Manson no The London School of Tropical Medique a preocupação não era exatamente a mesma. Ambos os institutos compartilhavam o objetivo de fazer dos trópicos um espaço saudável e habitável para o homem branco. Porem, ambos trilharam caminhos de investigação e imaginaram estratégias de intervenção diferentes. Para Manson muitas doenças tropicais eram parasitárias e dependiam de complexas cadeias de transmissão que envolviam hóspedes intermediários vivos.

Esse programa de pesquisa possui certas características peculiares, aqui a ameaça representada pelos predadores e o conhecimento da biogeografia substituem a importância tradicionalmente atribuída ao clima, assim como a clássica preocupação, dos médicos militares, que publicavam nos Anais de Medicina Naval e Colonial, como problema do aclimatacionismo. De uma perspectiva próxima ao darwinismo, Manson , dirá que “quanto mais aprendermos sobre as doenças tropicais, menos importante resulta a temperatura per se como agente patogênico direto e como explicação da distribuição geográfica das doenças”; e, em contrapartida, “mais importante resulta a influência da fauna tropical”. Esse programa de pesquisa exige não só poder diferenciar o estudo da microbiologia dos estudos provenientes da história natural “ser um naturalista antes que um bacteriologista ou um médico”; exige privilegiar os estudos de biogeografía por sobre as preocupações aclimatacionistas, dado o rol causal secundário ou indireto do clima.

Os argentinos, como os pasteurianos de ultramar, dando continuidade aos estudos bem-sucedidos da microbiologia realizados até então, imaginavam que toda e qualquer doença podia ser compreendida a partir dos mesmos protocolos utilizados com as doenças cosmopolitas. Nesse mesmo período histórico os pesquisadores brasileiros como Cruz, Chagas ou Lutz pareciam estar convencidos da necessidade de criar novos programas de pesquisa e novas estratégias sanitárias irredutíveis à criação de vacinas e às medidas higiênicas clássicas. Esse programa requeria uma detida observação do ciclo evolutivo e reprodutivo dos seres vivos, uma cuidadosa descrição de seus encadeamentos e alianças

É impossível compreender a distância entre esses programas sem fazer referência ao que podemos chamar de obstáculo climático. A tese clássica, do século XVIII, que associava aos trópicos com a degradação física e moral, ainda parecia estar presentesna mente dos pesquisadores argentinos do início do século XX. Devedores da antiga tese de pessimismo climático, não aceitavam imaginar que uma Buenos Aires de clima temperado e higiênica pudesse possuir os mesmos problemas sanitários daquelas regiões que identificavam como “os trópicos palúdicos”.

* Doutora em filosofía (Unicamp); professora adjunta do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina. Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Saúde Pública, pesquisadora de CNPq.

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Atualizado em 10/06/2005

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