http://www.comciencia.br/reportagens/2005/06/14.shtml
Autor: Luiz Jacintho da Silva |
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Vigilância epidemiológica: a perspectiva de quem é responsável Luiz Jacintho da Silva [1] Introdução Convencionou-se designar determinadas
doenças, a maioria delas parasitárias ou transmitidas por vetor,
como “tropicais”, geralmente pela sua inexistência nos países
industrializados do hemisfério norte e presença nas antigas
colônias das regiões tropicais. Na verdade, raras e geralmente
sem maior importância são as doenças efetivamente “tropicais”,
isto é, encontradas exclusivamente na região tropical. A lógica era o impacto dessas
doenças em saúde pública. Ainda hoje, esta conceituação
de “endemias” é adotada pelo Ministério da Saúde. Vigilância epidemiológica: conceito e desenvolvimento Dentre as medidas recomendadas para o
controle ou mesmo erradicação das doenças infecciosas,
se destaca a vigilância epidemiológica . Antes de adentrar na discussão, cabe lembrar que vamos considerar doenças passíveis de vigilância, ou de notificação compulsória, como um conceito e não como uma listagem de doenças. Isso porque para alcançar o status de notificação compulsória é imprescindível que exista uma política pública de controle ou de ações com relação à doença, sob o risco de se incorrer em erro grave. É totalmente desprovida de senso lógico a vigilância de uma doença sem que isso deflagre, ou pelo menos subsidie, um conjunto de medidas de saúde pública. Decorrência inevitável da
definição acima é que vigilância, investigação
e controle são uma só entidade. Um breve histórico Parece existir o consenso de que são dois os marcos históricos da vigilância epidemiológica no Brasil, o primeiro tendo sido a campanha de erradicação da varíola, no final da década de 1960 e início da década de 1970 e o segundo a criação do SUS, no final da década de 1980. Em meados da década de 1970, surgiram
os primeiros documentos legais instituindo e regulamentando um Sistema Nacional
de Vigilância Epidemiológica.[3] Estabelecida a vigilância epidemiológica como a área de conhecimento cujo domínio era imprescindível para o planejamento e implementação das ações de saúde, deu-se um movimento da capacitação ampla dos recursos humanos empregados ou a serem empregados nos diferentes níveis do SUS. Coincide esse período com a criação do Centro Nacional de Epidemiologia (Cenepi), o Centro de Vigilância Epidemiológica (CVE) da Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo e outros tantos equivalentes em outros estados. O Cenepi acabou desempenhando o papel de coordenador ou articulador da pesquisa e discussão em vigilância epidemiológica, não só através de suas publicações, como o Informe Epidemiológico do SUS, como pela indução de pesquisas na área e o fomento de discussões em congressos específicos, como o I Congresso Brasileiro de Epidemiologia, realizado no início da década de 1990. Na área acadêmica, a discussão sobre vigilância epidemiológica foi conduzida pela Associação Brasileira de Pós Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), associação que acumula as funções de uma sociedade científica de epidemiologia, uma vez que não existe, no Brasil, uma sociedade científica ou acadêmica de epidemiologia. A pesquisa em epidemiologia se desenvolveu o suficiente para comportar um congresso próprio, no momento bienal. Evolução do conceito Na primeira metade da década de 60 consolidou-se, internacionalmente, uma conceituação mais abrangente de vigilância epidemiológica, em que eram explicitados seus propósitos, funções, atividades, sistemas e modalidades operacionais. Vigilância epidemiológica foi, então, definida como: “... o conjunto de atividades que permite reunir a informação indispensável para conhecer, a qualquer momento, o comportamento ou história natural das doenças, bem como detectar ou prever alterações de seus fatores condicionantes, com o fim de recomendar oportunamente, sobre bases firmes, as medidas indicadas e eficientes que levem à prevenção e ao controle de determinadas doenças”. No Brasil, esse conceito foi inicialmente utilizado em alguns programas de controle de doenças transmissíveis coordenados pelo Ministério da Saúde, notadamente a Campanha de Erradicação da Varíola (CEV), de 1966 a 1973. A experiência da CEV motivou a aplicação dos princípios de vigilância epidemiológica a outras doenças evitáveis por imunização, de forma que, em 1969, foi organizado um sistema de notificação semanal de doenças, baseado na rede de unidades permanentes de saúde e sob a coordenação das Secretarias Estaduais de Saúde. As informações de interesse desse sistema passaram a ser divulgadas regularmente pelo Ministério da Saúde, através de um boletim epidemiológico de circulação quinzenal. Tal processo propiciou o fortalecimento de bases técnicas que serviram, mais tarde, para a implementação de programas nacionais de grande sucesso na área de imunizações, notadamente na erradicação da transmissão autóctone do poliovírus selvagem na região das Américas. Em 1975, por recomendação
da 5ª Conferência Nacional de Saúde foi instituído
o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SNVE). Este
sistema, formalizado através da Lei no 6.259, do mesmo ano e Decreto
no 78.231, que a regulamentou, em 1976, incorporou o conjunto de doenças
transmissíveis então consideradas de maior relevância
sanitária no país. Buscava-se, na ocasião, compatibilizar
a operacionalização de estratégias de intervenção
desenvolvidas para controlar doenças específicas, através
de programas nacionais que eram, então, escassamente interativos. “... um conjunto de ações que proporciona o conhecimento, a detecção ou prevenção de qualquer mudança nos fatores determinantes e condicionantes de saúde individual ou coletiva, com a finalidade de recomendar e adotar as medidas de prevenção e controle das doenças ou agravos”. Embora essa definição não modifique a essência da concepção até então adotada pelo SNVE, ela faz parte de um contexto de profunda reorganização do sistema de saúde brasileiro, que prevê a integralidade preventivo-assistencial das ações de saúde e a conseqüente eliminação da dicotomia tradicional entre essas duas áreas que tanto dificultava, e ainda dificulta, as ações de vigilância. Além disso, um dos pilares do novo sistema de saúde passou a ser a descentralização de funções, sob comando único em cada esfera de governo, federal, estadual e municipal o que implica no direcionamento da atenção para as bases locais de operacionalização das atividades de vigilância epidemiológica no país. Dessa forma, a orientação atual para o desenvolvimento do SNVE estabelece, como prioridade, o fortalecimento de sistemas municipais de vigilância epidemiológica dotados de autonomia técnico-gerencial para enfocar os problemas de saúde próprios de suas respectivas áreas de abrangência. Espera-se, assim, que os recursos locais sejam direcionados para atender, prioritariamente, às ações demandadas pelas necessidades da área, em termos de doenças e agravos que lá sejam mais prevalentes. Nessa perspectiva, a reorganização do SNVE se pautar nos seguintes pressupostos, que resultaram de amplo debate nacional entre os técnicos da área, com base nos preceitos da reforma sanitária instituída e implementação no país:
A relação de doenças de notificação nacional tem sofrido revisões durante as últimas décadas, em função de novas ações programáticas instituídas para controlar problemas específicos de saúde. Em 1998 foi procedida, pelo Centro Nacional de Epidemiologia (Cenepi), ampla revisão do assunto, que resultou na explicitação de conceitos técnicos sobre o processo de notificação, bem como dos critérios utilizados para a seleção de doenças e agravos notificáveis. Essa orientação servirá de base para a atualização da relação de doenças de notificação compulsória em âmbito nacional. Em 2003, as atividades de vigilância epidemiológica e de controle de doenças foram retiradas da Fundação Nacional da Saúde (Funasa) e colocadas na recém-criada Secretaria de Vigilância da Saúde (SVS), órgão da administração direta do Ministério da Saúde. Esta medida administrativa segue uma tendência mundial de reunir todas as ações de vigilância numa só entidade[4] . Até então, a vigilância e os programas de controle da aids, da tuberculose e da hanseníase não estavam agrupados, ficando separados em áreas distintas do Ministério da Saúde. Com a criação da SVS, todas essas atividades foram reunidas numa só entidade administrativa, incluídas a vigilância das doenças e agravos não transmissíveis e a vigilância ambiental, duas vertentes até então virtualmente ignoradas. A vigilância epidemiológica pode ser dividida, pelo menos didaticamente, em vigilância na estrutura e vigilância de casos. No primeiro caso se implanta um sistema que detecte a circulação, ou transmissão, do agente infeccioso, seja em humanos, seja em animais, seja no ambiente. No segundo, o sistema é montado para detectar a ocorrência de casos clínicos em humanos. As normas vigentes de notificação compulsória prevêem o segundo caso. Durante décadas a vigilância epidemiológica se baseou em doenças específicas, infecciosas ou não. Com a complexidade das sociedades contemporâneas, a globalização da economia, os avanços da biologia molecular e a questão das doenças emergentes, o conceito de vigilância por doença específica se tornou insuficiente para fazer frente às demandas e necessidades da saúde pública. Houve uma mudança de paradigma, passando-se a propor a vigilância multi-doenças e a vigilância por síndromes. Essa mudança de paradigma não é mero modismo, e não exclui a vigilância clássica, por doença. A vigilância por síndromes incorpora a percepção de que as diferentes doenças infecciosas apresentam quadros muitas vezes semelhantes e variáveis, no tempo e no espaço. Não só a vigilância por síndromes pressupõe uma maior variabilidade de quadros clínicos, mas também incorpora os conceitos de resposta rápida e necessidade de investigação laboratorial ampla, inclusiva. A situação atual A vigilância epidemiológica é uma atividade exclusiva dos serviços públicos, ainda que não deva ser assim, necessariamente. Em vista desse fato, é relativamente fácil fazer uma avaliação da situação atual. Com a implantação do SUS, foram introduzidos mecanismos de financiamento das ações de saúde. Esses mecanismos, no entanto, foram adaptados dos mecanismos anteriormente existentes, herdados do extinto Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS). Esses mecanismos preveêm apenas ações médico-hospitalares, essencialmente curativas e individualizadas. Não preveêm ações de saúde pública, essas, na estrutura de saúde anterior ao SUS, não competiam aos intstitutos de previdência, mas ao Ministério da Saúde. Até o final do século XX, não havia nenhum mecanismo de financiamento das ações assim ditas “coletivas”, entre elas a vigilância epidemiológica. O financiamento dessas ações era contemplado através de financiamentos diretos do Ministério da Saúde aos estados e municípios, geralmente através da Funasa, contemplando programas específicos de controle e repassados através de convênios. Isso resultou num viés das prioridades de vigilância e, consequentemente, de controle, determinadas não pelo contexto epidemiológico mas pelos interesses do Ministério da Saúde. O resultado foi o desenvolvimento desigual da infra-estrutura de assistência médico-hospitalar em relação à de vigilância e controle de doenças. Em 1999 o governo federal introduziu a Programação Pactuada Integrada – Epidemiologia e Controle de Doenças (PPI-ECD)[5] , um sistema de financiamento das ações de saúde coletiva, incluída aí a vigilância epidemiológica, baseada não no ressarcimento por atividade, mas no repasse de recursos, diretamente aos fundos municipais e estaduais de saúde, baseada num critério misto de população, extensão territorial e contexto epidemiológico. Esta sistemática, regulamentada pela Instrução Normativa [Funasa] Nº 02, de 6 de dezembro de 2001, representou um avanço significativo, que permitiu a criação e manutenção de diversos serviços municipais de vigilância epidemiológica. O princípio dessa sistemática de financiamento já estava previsto na Norma Operacional Básica de 1996 Perspectivas A tendência da saúde pública no concernente ao controle das doenças é bastante clara, cada vez mais a vigilância, isto é, a coleta e análise de dados, gerando informação para subsidiar as intervenções vem se tornando uma atividade insustituível. O crescimento em importância da vigilância coincide com o fim da era industrial, com o surgimento da sociedade pós-moderna, estruturada na informação, o que é perfeitamente compreensível. A moderna saúde pública não pode prescindir da vigilância, daí que se observa a re-estruturação dos serviços de saúde pública a partir dessa lógica. Infelizmente, instituições públicas são notoriamente refratárias à mudança, o que gera um descompasso em relação às necessidades vigentes em vigilância e controle de doenças. Em época recente, a avaliação do que se convencionou denominar “carga da doença”[i] , sistemática recomendada pela Organização Mundial da Saúde para determinar o impacto de uma doença sobre uma dada população. Sem entrar em maiores detalhes, o planejamento de qualquer ação de controle deverá levar em conta a definição da doença e seu impacto sobre a mortalidade, a morbidade, a ocorrência de seqüelas, a opinião pública e o custo econômico. Essa avaliação nem sempre é objetiva, muitas vezes a opinião pública dificulta uma análise fria da situação, através da mobilização da sociedade civil, o que pode levar a uma alocação desigual de recursos para o controle de diferentes doenças, como pode ser comprovado com a aids e a malária. Esta segunda doença, ainda que determine uma mortalidade muita maior do que a da aids foi relegada a um segundo plano na prioridade de alocação de recursos para pesquisa e controle. A se manter o atual rumo da re-estruturação
dos serviços de saúde pública em todo o mundo, teremos
serviços de vigilância e controle mais ágeis, menores e
descentralizados, infelizmente não com urgência que se faz necessária. [1] - Professor titular, disciplina de infectologia,
Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Ciências Médicas,
UNICAMP. |
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Atualizado em 10/06/2005 |
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