Energia,
economia e mercado
André
Tosi Furtado
A energia é um insumo indispensável
ao desenvolvimento econômico. Desde a primeira revolução
industrial, quando o carvão mineral substituiu a lenha como fonte dominante,
as energias fósseis se tornaram vetores centrais do industrialismo, tanto
como combustível das máquinas a vapor, assim como insumo central
para a fabricação de ferro. A energia das máquinas foi
gradativamente substituindo o trabalho humano, dos animais e daquele obtido
a partir das energias renováveis como a biomassa e a eólica. As
matérias-primas obtidas a partir de energias fósseis substituíram
progressivamente as naturais, principalmente a madeira. Esse processo de uso
das energias fósseis se intensificou consideravelmente com o advento
da segunda revolução industrial, iniciada na segunda metade do
século XIX, que trouxe, em seu bojo, o uso de novas fontes de energia
tais como o petróleo, o gás natural e a hidroeletriciadade; o
uso de novas formas de energia tais como a energia elétrica; o uso de
novos conversores de energia entre os quais se destacam o motor a explosão
interna e o motor elétrico; assim como de novos materiais, principalmente
os produtos químicos, o aço e o cimento.
O mundo atual depende, para seu funcionamento, muito fortemente do abastecimento
de vetores energéticos modernos que são o petróleo, o gás
natural, o carvão, a energia nuclear e a hidroeletricidade. As quatro
primeiras são as principais fontes energéticas primárias,
porém não são renováveis e dispõem de reservas
limitadas, sendo que as maiores reservas são de carvão mineral.
A quinta, que é renovável, se encontra em quantidade muito mais
limitada e se concentra em alguns países. Essas fontes são responsáveis
por 90% do abastecimento energético mundial.
Embora a energia seja crucial para o funcionamento das sociedades modernas,
sua importância relativa varia de acordo com o estágio e o modelo
de desenvolvimento de cada país. É reconhecido que o papel da
energia tende a ser mais importante nas primeiras etapas do desenvolvimento,
quando a infraestrutura econômica ainda está em formação,
do que nas etapas posteriores. Nos estágios mais avançados do
desenvolvimento, o consumo de energia aumenta abaixo do crescimento do produto
interno, porque as atividades econômicas que mais crescem são as
industriais de alta tecnologia e os serviços, as quais consomem menos
intensivamente energia.
No entanto, os países não seguem um padrão uniforme de
desenvolvimento. Assim, os EUA e o Canadá consomem uma quantidade de
energia per capita que é praticamente o dobro da dos países desenvolvidos
europeus e do Japão, embora esses países possuam rendas per capita
muito próximas entre si. A razão dessa diferença reside
em seus respectivos estilos de desenvolvimento. Os Estados Unidos privilegiaram
uma civilização apoiada no automóvel como meio dominante
de transporte e na residência individual. Ao passo que na Europa e no
Japão, que são mais densamente habitados, incentivou-se o transporte
coletivo e a aglomeração da população em residências
coletivas.
O progresso técnico tem forte influência tanto sobre o consumo
de energia como sobre a sua oferta. Pelo lado da demanda, o progresso técnico
reduz progressivamente as necessidades de consumo de energia por unidade produzida,
ao melhorar a eficiência das máquinas e dos processos industriais.
O progresso técnico também altera a estrutura do produto em benefício
das atividades que utilizam menos intensivamente energia como as industriais
de alta tecnologia e os serviços. Nesse contexto, deve-se esperar que
os países que se industrializam mais tardiamente utilizem menos quantidade
de energia do que os pioneiros. Pelo lado da oferta, o avanço tecnológico
também contribui para baixar os custos de produção da energia
e aumentar o escopo de recursos exploráveis a um determinado custo. Porém,
o progresso técnico nem sempre consegue contrabalançar as tendências
negativas de depleção das energias não renováveis
(fósseis principalmente) e do acúmulo de poluição
no meio ambiente.
Os desafios colocados pelas necessidades de abastecimento energético
das sociedades modernas são muito mais complexos. Tendo em vista a importância
central da energia para o processo de desenvolvimento econômico, o Estado
interferiu desde muito cedo na oferta para que ela se expandisse de acordo com
as necessidades de consumo. Também o Estado foi decisivo para determinar
que o preço cobrado pela energia não fosse desfavorável
ao consumidor. Nessa atividade, onde as economias de escala e de escopo tendem
a impor grandes monopólios como forma de organização econômica
mais eficiente, o Estado interferiu para que o preço cobrado pela energia
não fosse prejudicial ao consumidor. Senão os grandes grupos econômicos
se aproveitariam do fato que a energia é um bem essencial a qualquer
atividade econômica e social para fixar preços muito acima dos
custos.
Esse papel preponderante do Estado tendeu a reduzir-se desde o final da década
de 70, quando os países desenvolvidos tomaram uma série de iniciativas
para abrir seus mercados de energia à concorrência de novos produtores.
Tal mudança é relativamente compreensível para esses países
dado o estágio de desenvolvimento de suas economias, nas quais o consumo
de energia cresce abaixo do produto e porque o progresso técnico, visível
sobretudo no setor de geração elétrica, abre a possibilidade
para entrada de novos produtores. Ainda assim, mais recentemente as reformas
de abertura do mercado e de privatizações do setor elétrico
mostraram suas limitações em vários desses países
desenvolvidos devido à incapacidade do setor privado em realizar os investimentos
necessários para a expansão da oferta. Com efeito, embora o consumo
de energia primária cresça relativamente pouco nesses países,
aproximadamente 1,4% a.a., o mesmo não acontece com o de energia elétrica,
que cresce superior de 2,1% a.a (cifras relativas ao período 1990 a 2003
da BP).
Muito mais duvidosa ainda foi a adoção dessas reformas por países
em desenvolvimento. De maneira geral, as privatizações foram guiadas
por necessidades alheias ao setor energético, a principal sendo a de
atrair investimentos estrangeiros diretos para fechar as contas do Balanço
de Pagamentos. O capital estrangeiro que adquiriu a maior parte das empresas
estatais buscava, sobretudo, a valorização de ativos financeiros.
Os problemas de instabilidade de taxa de câmbio, enfrentados pelas moedas
desses países, logo tornou demasiadamente arriscado esse tipo de aplicação.
Em decorrência, os ganhos, para os países em desenvolvimento, em
termos de ampliação da capacidade de investimento e da oferta
foram muito limitados e insuficientes para fazer frente às necessidades
de expansão da demanda. Como foi visto, as necessidades de expansão
da oferta são muito mais amplas nesses países, em termos relativos,
do que nos países desenvolvidos. Ademais, os governos dos países
em desenvolvimento perderam, em função das privatizações
realizadas na década passada, o controle sobre importantes instrumentos
de política energética, industrial e social. A tentativa de substituir
a coordenação direta do Estado, realizada através das empresas
estatais, pela indireta, da regulação e dos contratos foi mal
sucedida.
No Brasil, com as privatizações e a assinatura de novos contratos
de concessão o poder de barganha das empresas energéticas privadas
aumentou, conduzindo à fixação de tarifas mais elevadas
e tolhendo o Estado de um importante instrumento de indução de
outras atividades econômicas. As estatais exerciam, também, um
importante papel de induzir, através do seu poder de compras, o desenvolvimento
da indústria local de equipamentos e de serviços de engenharia.
A tentativa de substituir a política industrial direta das estatais,
realizada através do seu poder de compra, por mecanismos regulatórios,
como a fixação de índices de nacionalização
nas licitações da ANP, e políticas de fomento dos investimentos
em C&T, com os Fundos Setoriais, se revelou insuficiente.
Os dissabores com a privatização levaram a um refluxo do modelo
de mercado, na atual década, em todo mundo. Esse modelo demonstrou importantes
limitações sobretudo em países em desenvolvimento. A privatização
do setor elétrico brasileiro é um caso exemplar. Nas atividades
em que ocorreram, elas foram incapazes de atrair novos investimentos à
altura das necessidades do país, tanto no segmento térmico como
hidroelétrico. No setor petróleo, onde a privatização
não passou de uma intenção do governo passado mas em que
houve quebra do monopólio da Petrobras, o capital estrangeiro também
demonstrou as limitações para ampliar, isoladamente, a capacidade
produtiva do país. Desde a abertura do setor petróleo, iniciada
em 1998, até 2004, grande parte dos poços exploratórios
perfurados e das descobertas de novas reservas foi feita pela Petrobras. O investimento
privado apesar de haver alcançado a barreira de 1 bilhão de dólares
não gerou descobertas significativas. O caso do petróleo serve
sobretudo para demonstrar a grande capacidade tecnológica das empresas
estatais brasileiras que competem e suplantam as grandes companhias internacionais.
Essas empresas são a base para a formação de campeões
industriais e tecnológicos nacionais.
Os ganhos do novo modelo advêm sobretudo da maior flexibilidade que ele
proporciona à gestão das estatais, inclusive para se associar
com o setor privado. Essa parceria pode ocorrer desde o nível produtivo,
passando pelo financeiro e chegando ao tecnológico. A associação
entre empresas em diferentes tipos de arranjos é uma característica
distintiva da atual fase do capitalismo porque permite aumentar o potencial
de inovação das empresas e a sua capacidade de adaptação
a contextos instáveis. No caso do setor público, essa maior flexibilidade
permitiu aumentar a capacidade de investimento das empresas estatais quando
estas enfrentavam grandes limitações orçamentárias
internas impostas pelo governo federal.
O desafio consiste em encontrar para o setor energético um equilíbrio
saudável entre a flexibilidade do mercado e a capacidade de coordenação
do Estado na consecução dos objetivos de consolidação
do processo de desenvolvimento. O setor privado tanto nacional quanto estrangeiro
não apresenta uma grande capacidade de mobilização de investimentos
produtivos, uma das razões principais sendo a sua inerente expectativa
de rápido retorno financeiro. Ora o setor energético, principalmente
nas condições brasileira de petróleos difíceis e
predomínio hidroelétrico, requer horizontes de investimento mais
amplos e taxas de retorno inicialmente mais baixas. Além de que o repasse
do custo ao consumidor não se configura em uma estratégia adequada
para o país por dificultar o desenvolvimento de outros setores. Essas
observações mostram que o novo arranjo entre Estado e mercado
deve de qualquer forma, num país com a demanda energética em forte
expansão, prever uma presença importante do primeiro.
André Tosi Furtado é professor do Departamento
de Política Científica e Tecnológica, do Instituto de Geociências
da Unicamp e professor participante do Programa de Planejamento de Sistemas
Energéticos da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp.
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