Energia:
fontes e usos finais no Brasil
Isaías
Macedo
Energia está presente em todas as nossas
ações cotidianas. Sua disponibilidade, qualidade e custo precisam
ser considerados em todos os nossos projetos, mesmo se não explicitamente;
desde um simples planejamento de férias até um “plano plurianual
de investimentos” de um governo federal. Seria muito adequado se todos
os brasileiros tivessem como parte da sua educação básica
informação quantitativa sobre as fontes primárias de energia
que usamos (petróleo, hidráulica, biomassa, nuclear, etc) sua
conversão para formas de energia mais úteis para o uso final (eletricidade,
calor, acionamento mecânico, iluminação), as perdas e desperdícios
associados, e sua distribuição pelos setores de uso (doméstico,
industrial, comercial, transportes, etc). Um conhecimento mínimo (mas
sólido) da “matriz” de fontes/usos de energia é importante
para o economista, para os estudos de preservação ambiental, para
a análise da estrutura social (desenvolvimento, emprego, competitividade).
No Brasil temos uma excelente fonte de informações sobre esta
matriz: o Balanço Energético Nacional, divulgado anualmente pelo
MME. Estes relatórios têm evoluído continuamente desde seu
lançamento (1970); são hoje muito completos, e são a referencia
principal para a área técnica envolvida no planejamento. A última
versão (BEN 2003) tem 168 páginas, inclui alguns dados estaduais
e a “história” desde 1970. Muito útil, indispensável
para os técnicos do setor, mas indigesto para uma divulgação
ampla; seria bom ter também uma versão leve, digamos dez páginas,
incluindo uma introdução sobre os dois princípios da termodinâmica
para facilitar o entendimento das conversões de energia, e resumo de
tabelas principais (Brasil e o mundo; Brasil 1970 e Brasil 2003; evolução,
diferenças, causas e conseqüências; o fim da era do petróleo
e o aquecimento global; tendências).
Rapidamente, vamos ver como exemplo alguns
dados do BEN.
O Brasil utiliza cerca de 2% da energia usada no mundo (e tem 3% da população);
medindo o consumo total de energia pelo seu equivalente em petróleo (tep,
tonelada equivalente de petróleo) saímos de pouco menos de 1 tep/
habitante.ano em 1970 para 1,02 em 1987 e 1,13 em 2002. Na primeira metade da
década de 70 era muito conhecido um gráfico relacionando um “índice
de qualidade de vida” (combinação de mortalidade infantil,
analfabetismo e esperança de vida) com este consumo anual de energia
por habitante, para diversos países; o IQV subia rapidamente para consumos
até ~1 tep, e não evoluía mais. Isto era associado a conceitos
de conservação de energia, redistribuição de riquezas
(e à filosofia emergente do “small is beautiful”). De fato,
a evolução para apenas 1,13 hoje reflete uma ação
pouco maior em termos de energia/pessoa; mas a elasticidade da energia (OIE)/PIB
no período foi de apenas 0,85 (muito influenciada pelo valor de 0,64
entre 1970 e 1980, quando houve grande substituição de biomassa
“tradicional”, lenha, por GLP).
Comparando: os EUA usam 8,1 tep / habitante.ano.
Em 1970 o Brasil utilizou um terço da energia usada em 2003; mas o perfil
das fontes de energia mudou. Também o perfil das fontes no Brasil é
muito diferente do perfil mundial:
table ...
As duas últimas são fontes
de energia renovável.
Entre 1970 e 2002 nossa fração de “energia renovável”
caiu de 60% para 41%. Paradoxalmente, esta redução foi ambientalmente
saudável, porque correspondeu à entrada do GLP e do óleo
combustível como substitutos da lenha, com muito maior eficiência
(setores doméstico e industrial); e também do carvão vegetal
por coque metalúrgico. Esta produção de lenha era na maior
parte não renovada; hoje ocorre a volta do carvão vegetal, em
bases sustentáveis. Pode haver grande aumento neste energético,
com o advento de novas tecnologias (principalmente gasificação).
No período, houve aumentos grandes na hidroeletricidade (5 para 13,6%)
e nos produtos da cana (4 para 12,6%); o total de energia renovável (~41%)
é substancialmente maior que no mundo (14%). A participação
relativa de gás natural, urânio e carvão mineral no Brasil
é cerca de um terço da participação (%) no mundo.
A produção de energia de biomassa no mundo tem uma forte componente
“tradicional”, de baixa eficiência e não sustentável:
cerca de um terço da população mundial (~2 bilhões
de pessoas) não tem disponibilidade de combustíveis comerciais
para cocção!
A enorme dependência de combustíveis fósseis no mundo convive
hoje com dois problemas que deverão forçar a mudança desses
perfis nas próximas décadas:
A insegurança do suprimento de petróleo
As emissões de CO2 e seu efeito no clima
Diversas avaliações de reservas de petróleo indicam o
pico de produção de óleo em torno de 2016, em “média”,
incluindo o gás natural; opções mais caras (xisto, areias
bituminosas, óleo pesado da Venezuela) poderiam estender o período
por alguns anos; mas isto inclui a (incerta) ampliação da produção
do Oriente Médio. Por outro lado, a entrada em vigor do protocolo de
Quioto promoverá o aumento de produção de energias renováveis
em grandes quantidades em prazos muito curtos. O Brasil aparece com uma posição
privilegiada, com emissões de 1,7 t CO2 equivalente/tep, contra a média
mundial de 2,36. É muito possível que o setor de cana-de-açúcar
aumente substancialmente a produção de etanol, uma vez que este
compete hoje com a gasolina e a demanda internacional tem aumentado. Isto trará
efeitos também na produção de energia elétrica (co-geração
nas usinas).
De um modo geral, o suprimento de energia para o crescimento do Brasil não
desperta preocupações por falta de opções; o mundo
caminha para maior “renovabilidade”, e nós dispomos de recursos
abundantes; mesmo na área de combustível fóssil, o petróleo
e gás natural atenderiam as necessidades previsíveis. Temos uma
reserva importante de urânio. Temos espaço (e disposição,
como demonstrado durante o “apagão”) para aumentar as eficiências
de uso, e reduzir desperdícios de energia, uma vez convencidos da necessidade.
A análise da “matriz” e as observações do cotidiano
(aqui e no exterior) sugerem, no entanto, que estamos muito carentes de um planejamento
integrado sólido para a área energética. Exemplos claros
de planejamento deficiente têm ocorrido; por exemplo, o “apagão”
na área de eletricidade. Outro exemplo muito claro, mas pouco discutido,
é a falta de política na área de combustíveis líquidos
para transportes (um setor que usa 27% de toda a energia do país). Todos
os brasileiros conhecem o comportamento ciclotímico do setor: nos últimos
vinte anos tivemos a dieselização da frota; o etanol rapidamente
atingiu 90% dos carros novos, para cair a zero em poucos anos; o GNV cresceu
em alguns anos para 700 mil veículos, e não penetrou onde planejado
(termo-elétricas, setor industrial e transporte pesado, para reduzir
o diesel); volta o etanol com o veículo flexível e ocupará
60% dos carros novos em quatro anos. A importação de diesel, e
a difícil posição da gasolina, claramente visíveis
na análise da matriz, são apenas alguns dos prejuízos criados.
O país tem as competências necessárias, e os recursos energéticos.
Conhece as restrições ambientais, tecnológicas, e os impactos
sociais; pode avaliar o contexto mundial. Por que não empenhar-se objetivamente,
sem preconceitos ou ideologias, no planejamento integrado?
A análise da matriz, em comparação com países mais
desenvolvidos, mostra ainda a baixa utilização da geração
distribuída de energia elétrica, conseqüência de trinta
anos de forte crescimento da implantação (oportuna) de grandes
centrais hidrelétricas; mas agora a geração térmica
complementar e a cogeração em sistemas industriais e comerciais
poderá ser um fator importante de economia e segurança no suprimento.
Há inúmeros outros pontos interessantes
para discussão a partir de análises bem contextualizadas dos dados
do BEN; fica a nossa sugestão para a elaboração didática
de uma versão leve, para divulgação ampla. Teríamos
muito a ganhar com o envolvimento bem fundamentado de muito mais pessoas.
Isaías Macedo é pesquisador visitante
do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético, da Unicamp.
|