Trangênicos
e segurança alimentar: o que está em jogo?
Lavínia
Pessanha
Podemos
distinguir quatro campos de políticas envolvidos no conceito
de segurança alimentar: a) a garantia da produção
e da oferta agrícola; b) a garantia do direito de acesso
aos alimentos; c) a garantia de qualidade sanitária e nutricional
dos alimentos; e d) a garantia de conservação e controle
da base genética do sistema agroalimentar.
Portanto,
segurança alimentar significa garantir alimentos com os atributos
adequados à saúde dos consumidores, implicando em
alimentos de boa qualidade, livre de contaminações
de natureza química, biológica ou física, ou
de qualquer outra substância que possa acarretar problemas
à saúde das populações. Sua importância
cresce com o desenvolvimento de novos processos de industrialização
de alimentos e das novas tendências de comportamento do consumidor.
Atualmente, a polêmica vem se acirrando, pela entrada dos
alimentos GMs no mercado de consumo global, e pela posição
ativa das organizações de consumidores que exigem
alimentos com atributos gastronômicos e nutricionais comprovadamente
seguros. As decisões de compra de alimentos, tradicionalmente
baseadas em aspectos como variedade, conveniência, e estabilidade
de preço, cada vez mais envolvem aspectos como qualidade,
nutrição, segurança e sustentabilidade ambiental.
Neste contexto, nosso país assume caráter particularmente
estratégico, pois ocupa o lugar de maior fornecedor de grãos
de soja não transgênica no mercado internacional.
A organização
do mercado mundial de alimentos reflete cada vez mais a opinião
pública e a capacidade dos grupos da sociedade civil de influenciar
as ações das grandes cadeias de supermercados. Há
evidências de uma tendência de reorganização
do mercado mundial de alimentos com a emergência do debate
sobre organismos GM. A rejeição dos varejistas europeus
à comercialização de alimentos GMs está
criando uma "bifurcação" dos mercados, obrigando
os processadores de alimentos a adaptarem seus produtos às
condições regionais, e os grandes comercializadores
de grãos a segregarem suas commodities. Em linhas
gerais, há uma percepção oposta entre norte-americanos
e europeus sobre a segurança dos produtos alimentares GM:
enquanto os primeiros têm uma posição mais benevolente
ou ao seu consumo; os segundos são mais cépticos e
reticentes.
O debate
envolve a comunidade internacional de cientistas. Os grupos falam
de distintos pontos de vistas que refletem visões de mundo
e concepções acerca do papel e do processo de desenvolvimento
científico e tecnológico antagônicas. De um
lado, pesquisadores relançam a ameaça da "armadilha
malthusiana" do crescimento populacional vis a vis o crescimento
da produção de alimentos, e retomam os argumentos
da necessidade de modernização tecnológica
da agricultura - previamente desenvolvidos pelos teóricos
da Revolução Verde. Nesta perspectiva, a fome é
conseqüência do gap entre a produção de
alimentos e as taxas de crescimento da população humana.
Os atuais patamares de crescimento da produtividade das sementes
agrícolas seriam insuficientes frente ao desafio de alimentar
a crescente população do Terceiro Mundo nos próximos
50 anos, de tal modo que se faz indispensável uma nova revolução
tecnológica com a adoção em larga escala das
técnicas de engenharia genética para o melhoramento
de sementes como uma saída para a crise alimentar iminente.
De
outro lado, numa perspectiva crítica à abordagem quantitativa,
autores afirmam que não há relação entre
a prevalência de fome em um determinado país e o tamanho
de sua população, sendo esta gerada por processos
políticos de distribuição de recursos entre
países e indivíduos. A verdadeira causa da fome estaria
na pobreza, na desigualdade e na falta de acesso a terra e aos alimentos,
como mostra o "paradoxo da plenitude", observado na Revolução
Verde, pelo qual a maior quantidade de alimentos é acompanhada
pelo recrudescimento da fome. Ademais, destacam os riscos potenciais
de danos ao meio ambiente e à saúde humana derivados
da produção e consumo das novas sementes.
O que
está em jogo é a disputa entre interesses econômicos
e pontos de vistas opostos, que se confrontam inclusive no que se
refere à adoção de princípios jurídicos
para a tomada pública e governamental de decisões
sobre a produção e consumo de alimentos transgênicos.
Em geral, os atores favoráveis à liberação
imediata fundamentam sua posição através dos
princípios da equivalência substantiva e do benefício
da dúvida, como no caso dos EUA e das empresas transnacionais
detentoras da tecnologia, enquanto os atores contrários a
esta liberação aderem ao princípio da precaução,
como no caso dos governos, empresas alimentares, organizações
civis e população, europeus.
A avaliação
da segurança de um alimento GM é direcionada pelo
estabelecimento de sua equivalência substancial. O objetivo
é garantir que os alimentos geneticamente alterados sejam
tão seguros quanto seus análogos convencionais. O
alimento GM é comparado ao seu análogo convencional,
com histórico de uso seguro, identificando-se similaridades
e diferenças. Contudo, o importante a ser ressaltado é
que "o fato de um alimento GM ser substancialmente equivalente
ao análogo convencional não significa que o mesmo
seja seguro, nem elimina a necessidade de se conduzir uma avaliação
rigorosa para garantir a segurança do mesmo antes que sua
comercialização seja permitida. Por outro lado, a
não constatação da equivalência substantiva
não significa que o alimento GM não seja seguro, mas
que há a necessidade de se prover dados de maneira extensiva,
que demonstrem sua segurança" (Nutti, M. R. e Watanabe,
E.: 2002/125).
Ademais,
os potenciais riscos da produção e consumo dos alimentos
transgênicos apontados pelos pesquisadores vão muito
além dos aspectos da segurança nutricional dos alimentos
estrito senso: a) a tecnologia terminator, que permite a
introdução de genes capazes de tornar estéreis
uma segunda geração de sementes; b) a tecnologia traitor,
que consiste em alterar geneticamente uma planta para que a expressão
de determinadas proteínas esteja condicionada à aplicação
de uma substância capaz de ativar ou desativar características
específicas da planta; c) a eliminação de insetos
e microorganismos do ecossistema, devido à exposição
a substâncias tóxicas; d) a contaminação
de culturas convencionais; a transferência horizontal de genes,
ou seja, entre espécies que não se relacionam na natureza;
e) a geração de superpragas - ervas daninhas e insetos
resistentes a herbicidas e inseticidas; f) o aumento do uso de defensivos;
a redução da produtividade das colheitas transgênicas
em relação às convencionais; g) o surgimento
de novas substâncias indesejáveis e não previstas;
h) a oligopolização do mercado de sementes; o aumento
do preço final do produto; e i)a elevação da
dependência e a intensificação do processo de
exclusão dos pequenos agricultores (Guerrante, R. S. e outros:2003).
Permanecemos,
portanto, em situação de incerteza. Por isso, e contrariando
a posição norteamericana, diversos países preferem
aderir ao princípio da precaução no que se
refere à liberação dos transgênicos no
meio ambiente e ao consumo humano, pelo qual a ausência de
certeza, levando-se em conta os conhecimentos científicos
e técnicos do momento, não deve retardar a adoção
de medidas de efetivas e proporcionais visando prevenir o risco
de danos graves e irreversíveis ao meio ambiente. O princípio
da precaução visa a durabilidade da qualidade de vida
das gerações, presentes e futuras, e a conservação
da natureza planetária, e não pretende imobilizar
as atividades humanas. Nesta perspectiva, as atuações
com efeitos imediatos ou a prazo no meio ambiente devem ser antecipadamente
consideradas, priorizando-se o posicionamento preventivo. Não
é preciso que se tenha prova científica absoluta de
que ocorrerá dano ambiental, bastando o risco de que o dano
seja irreversível ou grave para que não se adiem as
medidas efetivas de proteção ao ambiente. Existindo
dúvida sobre a possibilidade futura de dano ao homem e ao
ambiente, a solução deve ser favorável ao ambiente
e não ao lucro imediato, por menos atraente que pareça
esta atitude preventiva para as gerações presentes.
Diversos
documentos internacionais, tais como a Declaração
do Rio, a Convenção da Diversidade Biológica
e o protocolo de Cartágena sobre Biossegurança da
Convenção de Diversidade Biológica, acatam
o princípio da precaução. Suas regras prevêem
orientações a serem incorporadas nos sistemas normativos
internos e internacionais.
O princípio
da precaução é acatado na Constituição
Federal e na legislação ambiental brasileira. O artigo
225, inciso IV, da Constituição Federal exige, na
forma da lei, estudo prévio de impacto ambiental, para instalação
de qualquer obra ou atividade potencialmente causadora de significativa
degradação do meio ambiente, incluindo-se nesse rol
a liberação de organismo GM. Ademais, a Lei n. 6.938/81
e a Resolução n. 237, de 19/12/97, do Conselho Nacional
do Meio Ambiente (Conama), exigem a licença ambiental em
casos de introdução de espécies geneticamente
modificadas. O princípio da precaução se aplica
à introdução de organismos GM no país
através da Lei 8.974/95, de biossegurança, que estabelece
normas de segurança e mecanismos de fiscalização
no uso de técnicas de engenharia genética, buscando
evitar e prevenir os efeitos não desejados que potencialmente
podem ser produzidos pelas espécies geneticamente alteradas
e aplicar o princípio da precaução igualmente
a organismos, substâncias e produtos resultantes.
Por
isso, e contrariando poderosos interesses econômicos, o plantio
e comercialização de alimentos transgênicos
estão proibidos em território nacional desde junho
de 1999, em virtude de sentença judicial emitida em resposta
à ação promovida pelo Idec e Greenpeace Brasil
em conjunto com o Ministério Público. Contudo, o governo
federal publicou recentemente (27/03/03) a Medida Provisória
n. 113 que autoriza a comercialização para consumo
humano e animal da safra de soja do Rio Grande do Sul contaminada
por transgênicos, exigindo-se em contrapartida a rotulagem
da matéria-prima e seus derivados no caso dos produtos alimentares
a serem consumidos no mercado interno.
A Medida
Provisória está sendo interpretada por juristas e
organizações sociais como um incentivo à desobediência
ao Estado de Direito, e aguarda-se a entrada de ação
na justiça contrária à mesma a ser promovida
contra a liberação. A liberação da produção
e consumo de transgênicos em nosso país teria efeitos
graves muito além de nossas fronteiras, pois praticamente
extinguiria as fontes de matéria-prima não transgênicas
no mercado internacional, afrontando o direito de escolha e a segurança
alimentar da população global.
Bibliografia:
_ Guerrante: R. S. e outros - "Transgênicos,
a Difícil Relação entre a Ciência, a
Sociedade e o Mercado". In: Silvio Valle e José Luiz
Telles (orgs): Bioética e Biorrisco - Abordagem Transdiciplinar.
Rio de Janeiro, Interciência, 2003.
_ Nutti,
M. R. e Watanabe, E. (2002) - "Segurança Alimentar dos
Alimentos Geneticamente Modificados". In: ABIA - Alimentos
Geneticamente Modificados - Segurança Alimentar e Ambiental.
São Paulo, ABIA, 2002.
Lavínia
Pessanha é pesquisadora adjunta da Escola Nacional de Ciências
Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
|