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Bioética discute uso da informação do genoma humano

O avanço das biociências, nos últimos anos, tem levado as descobertas no campo da genética a um destaque constante na imprensa internacional. O projeto Genoma Humano, já conta com um considerável acervo de informações, algumas públicas e abertas - envolvendo redes de universidades e centros de pesquisa - e outras fechadas a empresas privadas de biotecnologia. Ao mesmo tempo em que geram expectativas em relação à cura de doenças ou produção de medicamentos para combatê-las, as pesquisas envolvendo o genoma humano também suscitam discussões sobre a ética tanto na coleta de dados quanto no uso que se faz das informações genéticas obtidas nos estudos.

"Há anos biocientistas vêm proclamando que o carro-chefe da luta pelos direitos humanos no século XXI seria o lema: 'Nossos genes nos pertencem'", diz a médica e pesquisadora Fátima Oliveira, que trabalha como bolsista da Fundação MacArthur em um projeto de divulgação e popularização da bioética. Ela menciona casos de patenteamento de DNA de indígenas em 1995, nos EUA, usado em pesquisa e desenvolvimento de remédios para doenças como a leucemia. A pesquisadora cita também a venda de DNA de indígenas brasileiros feita em 1996 pela empresa norte-americana Coriell Cell e a venda das informações genéticas de toda a população da Islândia, feita pelo próprio governo do país, em 2000, para a empresa norte-americana DeCode.

O interesse dos pesquisadores pelo DNA de determinadas populações está ligado ao grau de isolamento ou de contato com outros povos. No caso da Islândia, em quase mil anos, a entrada de novos imigrantes no país foi muito pequena. Para os pesquisadores, isso representa uma população mais "homogênea", pois a ascendência de um islandês se mantém islandesa por várias gerações. Eles esperam, com o estudo do DNA da população, descobrir as causas de doenças genéticas que atingiram gerações passadas de islandeses.

Em relação a povos indígenas, um dos objetivos do estudo do seu DNA é tentar verificar se certas etnias são mais resistentes a determinadas doenças. Mas esse tipo de pesquisa sempre esbarra em questões éticas delicadas. "São de domínio público uma série de atitudes antiéticas de cientistas do PDGH [Projeto da Diversidade do Genoma Humano] na coleta de DNA, sem consentimento, de populações indígenas", afirma Oliveira. "A ausência do consentimento livre e esclarecido, na assistência e na pesquisa em saúde, classifica qualquer procedimento como antiético, logo é uma prática condenável", conclui.

Essa é uma das alegações dos índios Yanomami que reivindicam a devolução do sangue de seus antepassados, coletado por pesquisadores norte-americanos na década de 60 para estudos de DNA. Os líderes Davi Kopenawa e Toto Yanomami, e a representante da Comissão Pró-Yanomami, Jô Cardoso de Oliveira, que foram aos EUA, em abril de 2002 para participar de um seminário sobre a ética em pesquisa biológica e antropológica envolvendo povos indígenas, aproveitaram para consultar, em Washington, os advogados do Indian Law Resource Center, organização que dá apoio jurídico a povos indígenas.

Os Yanomami pediram orientação sobre a possibilidade de obter judicialmente a devolução das amostras de sangue e de todo o material genético resultante dessas amostras, depositados no National Cancer Institute, no National Wealth Institute, e nas universidades de Michigan, de Emory e da Pensilvânia. Os índios dessa etnia consideram que a conservação dos restos mortais de seus parentes em terras estranhas representa para o seu povo uma ofensa moral e um desrespeito às suas crenças e tradições funerárias. "Nosso costume é chorar os mortos, queimar corpos e destruir tudo que usaram e plantaram", declara Davi Kopenawa em carta enviada à Procuradoria Geral da República, em novembro de 2002, solicitando a intervenção do governo brasileiro no caso. "O Indian Law e a Procuradoria ainda estão estudando o caso, mas continuo achando que vamos conseguir alguma coisa", diz Jô Cardoso.

Alguns pesquisadores que participaram do seminário sobre ética no trabalho de campo, em abril de 2002, mencionaram a expedição do geneticista James Neel e do antropólogo Napoleon Chagnon às aldeias Yanomami da Venezuela, em 1968. Um dos artigos do livro Darkness in El Dourado: how scientist and journalist devasted the Amazon, lançado pelo jornalista Patrick Tierney em 2000, acusa Neel e Chagnon de espalharem intencionalmente sarampo entre os Yanomami para comprovar uma teoria sobre a superioridade genética dessa etnia.

"A discussão sobre a expedição de Neel toca diretamente no atual problema ético dos estudos genéticos feitos com amostras humanas que não foram coletadas com o total conhecimento e consentimento de seus donos", afirma a pesquisadora brasileira Leda Leitão Martins, da Universidade de Cornell. "O fato de as amostras de sangue coletadas naquela expedição e em outras subseqüentes estarem depositadas na Universidade Estadual da Pensilvânia força uma inevitável revisão do tipo de consentimento dado pelos Yanomami para o uso de seu sangue, se algum consentimento de fato foi dado, e qual é a atitude correta a ser tomada agora pelas partes envolvidas", conclui.

"O consentimento informado é complexo, está ligado ao grau de entendimento do índio", afirma o professor Francisco Salzano, do Instituto de Biocências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele trabalha com povos indígenas há cerca de meio século, e esteve inclusive com os Yanomami da Amazônia brasileira, na década de 70. "Em todos os casos de coleta, houve a informação adequada ao nível de entendimento deles. Isso não significa que se esteja ocultando o objetivo da pesquisa", diz. Segundo Salzano, a opinião do índio era acatada, caso ele não quisesse ter seu sangue coletado. Além disso, ele conta que os pesquisadores sempre procuravam dar uma contrapartida para a comunidade indígena, como auxílio médico, por exemplo.

"Mas é preciso fazer uma distinção. O estudo do DNA envolve dois enfoques muito distintos", afirma Salzano. "Uma coisa é pesquisa acadêmica pura, sem fins lucrativos, e outra bem diferente é essa tendência atual do uso da informação para fins comerciais", completa. "Sou contra qualquer exploração comercial ou estabelecimento de patentes de DNA humano, que é diferente do uso do DNA para fins acadêmicos. Trata-se de um material preciosíssimo, com uma série de informações importantes para o estudo biológico do homem e da história de determinados grupos", finaliza.

A legislação brasileira proíbe o patenteamento de genes humanos, mas nos EUA ele é permitido. A empresa norte-americana Celera Genomics Corporation, que investiu cerca de US$ 2 bilhões em pesquisas envolvendo o sequenciamento do genoma humano, já entrou com 6500 pedidos de patentes provisórias de genes. "Essa questão de patentes é complicada, porque envolve normas nacionais e internacionais", diz Salzano. "Mesmo que um país estabeleça uma legislação clara sobre o assunto, se for contrária à norma internacional, ela corre o risco de ser ignorada. Além do mais, se a patente é proibida em um país, o pesquisador pode tentar o patenteamento nos países que o permitem", declara.

(RC)

 
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Atualizado em 10/04/2003
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