Biopirataria
na Amazônia - a recorrência de uma prática antiga
Adalberto
Luís Val
Vera Maria Fonseca de Almeida e Val
Tanta vida pra viver/ tanta vida a se acabar/
Com tanto pra se fazer/ com tanto pra se salvar.
Geraldo Vandré
Dois anos após a esquadra de Cabral ter aportado em Porto
Seguro, o Brasil já experimentava os primeiros envios de
pau-brasil para a Europa. Começava a apropriação
da biodiversidade brasileira... Desde aquele momento, vindas de
diferentes países, com objetivos variados, seguiram-se incontáveis
expedições exploratórias dos ecossistemas brasileiros
e do conhecimento tradicional sobre eles. Muito material biológico
foi levado e depositado em coleções estrangeiras.
Muita informação foi produzida. Apenas para referência
cronológica, a primeira versão de A origem das espécies
de Darwin foi publicada em novembro de 1859, ou seja, demorou quase
360 anos até que pudéssemos ter uma primeira explicação
de como surgiu o que hoje entendemos por diversidade biológica
e, por conseguinte, perceber como há "tanto pra se salvar".
O conceito
moderno de biodiversidade inclui todos os níveis de variação
natural, desde o nível molecular até o nível
das espécies, nos seus ambientes. É essa variação
natural que tempera a vida, que não lhe permite a monotonia
das formas, das cores, dos comportamentos. A Amazônia, por
exemplo, não é uma região homogênea como
pode parecer ao olho menos atento. Uma diversidade de ecossistemas,
que interagem e mudam no espaço e no tempo, compõem
não um, mas uma infinidade de teatros. Nenhum dia igual ao
outro. O sobe e desce das águas, o silêncio ensurdecedor
que em algumas áreas recria sons esquecidos, o cair das árvores,
o pôr-do-sol, o vento, a friagem, a chuva, a ilha que se move,
as migrações dos homens e dos bichos, o abraço-da-morte,
o peixe que "anda" de um lago para outro, o peixe que
morre afogado!, o tubarão que confunde o tipo de água,
mas não sua imensidão, dinamizam os cenários.
Nesses palcos da vida, árvores e mamíferos de todos
tamanhos, peixes de todas as formas, aves e sapos de todas as cores,
dramatizam a evolução da vida nas suas mais diversas
opções, testam novas oportunidades, incorporam os
sucessos. É essa variação natural que interessa
ao homem dito moderno, pois hoje sabemos que esconde as estratégias
usadas por cada um e por todos para responder aos desafios do meio
com o qual interagem, seja ele abiótico ou biótico.
A melhoria da qualidade de vida, na alegria e na tristeza, passa
pelo conhecimento dessas estratégias.
Mas
esse mesmo homem "moderno" tem provocado, nos últimos
séculos, a aceleração da extinção
de espécies de plantas e animais numa taxa nunca antes ocorrida.
Sabe-se que a extinção é um processo natural
e que ocorre, ao longo das eras geológicas, dando lugar ao
processo de evolução das espécies. Entretanto,
desde 1600, 484 espécies animais e 654 espécies vegetais
foram consideradas extintas pelos registros oficiais, embora alguns
sugiram que esses números estejam subestimados, principalmente
nas regiões tropicais, onde ainda há muito por descobrir.
As principais causas desse efeito danoso sobre a biodiversidade
são demográficas, econômicas e tecnológicas.
São inúmeros os exemplos em todos os continentes do
planeta; muitas espécies asiáticas, australianas,
norte-americanas, européias e até do pólo norte,
tiveram seu tamanho populacional reduzido a ponto de não
conseguir recuperar sua diversidade genética, o que as levou
à extinção. Na América do Sul, a ação
do ser humano tem registro histórico de devastação
na floresta Atlântica, a qual se reduz atualmente a algumas
unidades de conservação, onde espécies ameaçadas
sobrevivem às custas da ação do próprio
homem. Ainda que paradoxal, a mão que destruiu tenta, hoje,
conservar e preservar. A espécie que se transformou num dos
símbolos da principal Instituição de Conservação
Mundial (IUCN - International Union for Conservation of Nature),
o Mico Leão Dourado, tem sua população artificial
maior que a natural e hoje, o trabalho de reintrodução
na natureza começa a apresentar algum resultado.
Esse
interesse do homem pelos bichos e pelas plantas resulta numa movimentação
de elementos da biota de todos e para todos os cantos do mundo.
Bichos e plantas de todos os tipos, formas e tamanhos estão
depositados em museus e coleções - são usados
para estudos e para o deleite de visitantes. Boas coleções
e museus representam poder, ainda que depositários apenas
do objeto e não do conhecimento inerente. E os jardins zoológicos
e botânicos? Não raro, nas grandes cidades do mundo,
mesmo nos países com clima distinto, se pode apreciar exemplares
de animais e plantas da Amazônia. Este comportamento do homem
reflete um misto de cuidado com interesse estratégico, de
carinho com proteção, não obstante as inúmeras
implicações conceituais e científicas envolvidas.
A questão
da biopirataria, termo cunhado na última década para
significar apropriação de conhecimento e de recursos
genéticos com vistas ao uso unilateral, deve ser analisada
com cuidado. Ainda que a biopirataria já ocorresse na Terra
de Santa Cruz, ganhou destaque com o advento da Biologia Molecular,
que está a decifrar o código genético de um
sem número de plantas e animais. Hoje, já se escreve
a composição química da vida. O mundo faz investimentos
surpreendentes para conhecer a seqüência de bases do
DNA que codifica bichos e plantas. Essa seqüência codifica
proteínas que determinam como os organismos interagem e respondem
aos estímulos do ambiente em que vivem. Portanto, a seqüência
de bases é apenas um lado da equação da vida.
O outro lado da equação é decifrado por meio
do estudo dos animais e das plantas em seus ambientes naturais,
o que se dá mais rapidamente se associado ao conhecimento
das populações humanas tradicionais. A associação
desses três aspectos ganha dimensão substantiva na
Amazônia. A fronteira do conhecimento moderno está
nas delicadas interações dos organismos com seus ambientes
nas regiões tropicais, que se constituem na ferramenta para
desvendar os mecanismos da vida. Por isso, interesses internacionais
e nacionais se multiplicam nas regiões tropicais e, em particular,
na Amazônia.
É
preciso distinguir a biopirataria, representada pelo saque indiscriminado
de material biológico, das atividades próprias da
ciência, direcionadas à produção de informações
sobre a fauna e a flora da região. Um dia perdemos a borracha.
A espécie foi levada da Amazônia e atualmente os países
asiáticos Camboja, Indonésia, Malásia, Myanmar,
Filipinas, Tailândia e Vietnam são os maiores produtores
do mundo; a produção total de borracha natural no
mundo em 2000 foi de 6.760.000 toneladas, das quais 4.892.000 foram
produzidas por aqueles países e apenas 149 mil toneladas
foram produzidas pela América Latina. Noutro dia trouxemos
o café da Etiópia e a soja da China, dois itens de
grande importância na balança comercial brasileira.
O que está contido na Amazônia, cuja bioprospecção
ainda não foi realizada, é incontestável. A
dimensão dessa ignorância guarda relação
direta com a falta de financiamento para a ciência e a tecnologia
na região. O que é pior, está na razão
direta da incapacidade dela em demandar mais recursos em função
da escassez de gente adequadamente treinada. São apenas 600
doutores, comparados aos mais de 60.000 mil no restante do país.
Estamos longe, portanto, de travar o bom combate no caso da biopirataria,
tão indesejável para a região.
Com
relação à Ciência, é preciso apoio
para os muitos projetos de pesquisa, acordos de cooperação
e expedições científicas que foram e estão
sendo implementados. É melhor que estas atividades ocorram
entre nós, dentro de nossas instituições, num
trabalho de interesse comum, possibilitando a avaliação
de resultados e a formação de gente capaz de decodificar
o que vai se revelando a respeito da floresta e dos seus bichos.
É preciso não esquecer que a Ciência é
uma atividade social, com função social. É
necessário dialogar, confrontar idéias. Discutir.
Conceber novas propostas. Definir caminhos. A falta de contrapartida
nacional, entretanto, aproxima perigosamente nossa comunidade científica
do interesse externo. É preciso bom senso. De novo, o abandono
da qualificação de pessoal e da geração
de tecnologia, com a conseqüente falta de consolidação
de laboratórios, aparecem de forma substantiva. Universidades
e institutos de pesquisa não estão aptos a atender,
na velocidade exigida, as necessidades e as demandas atuais, por
parte da sociedade, da ciência e da tecnologia. Necessidades
de nossa gente.
A Amazônia
desperta debates intensos no ambiente científico. Mais precisamente,
a biodiversidade nela contida tem gerado uma certa controvérsia
no que tange à sua origem e manutenção. A teoria
mais aceita prevê especiação por alopatria
(separação física de populações
que darão origem a novas espécies) e tenta reconhecer,
na história evolutiva dos ecossistemas amazônicos,
momentos de isolamento das populações. Por essa razão,
as teorias explicam a alta diversidade prevendo a existência
pretérita de "refúgios". Mas são
crescentes as evidências que apóiam a idéia
da especiação em simpatria (isolamento reprodutivo
sem isolamento físico, gerando novas espécies num
mesmo ambiente) que propõe que uma região de proporções
continentais e contínuas poderia conter quantidade suficiente
de variabilidade genética que, combinada com a diversidade
ecológica e isolamento por distanciamento levaria o processo
evolutivo à magnífica diversidade que a região
Neotropical contém nos dias atuais. Voltando a Darwin, ele
mesmo sugeriu, após conhecer a diversidade das florestas
da América do Sul, que:
"Apesar
de não duvidar de que o isolamento (geográfico)
tenha considerável importância na produção
de novas espécies, no geral estou inclinado a acreditar
que a extensão da área é de maior importância....
não só haverá uma melhor chance de variações
favoráveis surgindo em um grande número de indivíduos
de uma mesma espécie ali mantida, mas as condições
de vida serão infinitamente complexas a partir de um grande
número de espécies já existentes"
(C. Darwin, The Origin of Species - John Murray and Sons,
London, 1859).
São
recentes as conclusões de alguns especialistas de que essas
idéias de Darwin podem estar corretas para o ambiente amazônico.
Mas, o que interessa a origem da diversidade biológica no
cenário atual? Porque tentar desvendar o passado se o que
importa é manter e conservar o presente? Porque considerar
a biopirataria nesse contexto?
Entender
como essa diversidade foi formada e é mantida até
os tempos atuais interessa muito para a formulação
de programas de conservação. Não se consegue
conservar o que não se conhece. Também não
se consegue proteger o que é desconhecido. Como evitar a
biopirataria em uma região onde não se conhecem as
importâncias econômica, médica e social das espécies
de plantas e bichos? De acordo com legisladores, uma grande variedade
de medidas pode ser utilizada para conservar a biodiversidade, tanto
in situ (manejo e conservação da espécie
ameaçada no local de origem, criação de áreas
de conservação e proteção ambiental,
reservas biológicas, etc.) como ex situ (manejo e
conservação da espécie em aquários,
jardins botânicos e zoológicos; criação
de bancos de sementes, bancos de genes, museus, coleções,
etc). Em qualquer dos casos, o manejo e as atividades para conservação
alteram o ambiente ou impõe coleta de material biológico,
que precisa ser analisado caso a caso.
A criação
de unidades de conservação impõe a delimitação
de áreas nas quais há um controle maior da retirada
de material biológico, mas implica, indiretamente, que o
entorno seja liberado para coleta ou outra atividade que modifique
o ambiente. Mundialmente reconhecido, esse problema tem sido resolvido
com a criação dos chamados "corredores"
que prevêem a manutenção de uma área
entre uma grande reserva e outra, para manter a continuidade do
ambiente. Adicionalmente a essas ações, é no
tão propalado "uso sustentado da biodiversidade"
que se encontra a chave para o desenvolvimento social e econômico
de qualquer região. Por isso a flexibilidade no manejo do
ambiente é necessária e deve ser capaz de responder
a mudanças sociais, biológicas e físicas, sem,
no entanto, causar distúrbios nas funções essenciais
dos ecossistemas. Para que isso possa ocorrer de maneira harmoniosa
e considerando o homem como partícipe, impõe-se a
necessidade de ações que levem ao melhor entendimento
do ambiente. É daí que surge o papel da ciência.
Incrementar a pesquisa, os inventários e o monitoramento
são ações importantes para promover o acompanhamento
de projetos governamentais e o manejo responsável dos ecossistemas.
Construir, por meio de instrumentos legais, um parque científico
nacional, comprometido com o desenvolvimento do homem e a preservação
dos recursos naturais é o grande desafio nesse milênio
que se inicia.
O ser
humano desperta para isso após alguns séculos de desenvolvimento
econômico e social ligado à devastação
e destruição do ambiente natural. Como já mencionado,
é histórica a destruição das regiões
mais habitadas do planeta. O exemplo está em casa. Durante
seus 500 anos, o Brasil tem sua história marcada pela destruição
dos ecossistemas da Mata Atlântica na região mais desenvolvida
do país. Hoje, o mundo volta seus olhos para uma das regiões
do planeta mais bem conservadas, a Amazônia, que merece melhor
atenção porque seu povo está a requerer desenvolvimento
econômico e melhoria social.
Seguindo
recomendações do Programa Ambiental das Nações
Unidas (UNEP- United Nations Environment Programme) o treinamento
de recursos humanos deve ser fornecido àqueles envolvidos
no manejo de áreas de proteção ambiental, para
condução de inventários da biodiversidade e
desenvolvimento e salvaguarda das coleções ex-situ
de todos os tipos. Um elemento essencial no treinamento da próxima
geração de pesquisadores será o enfoque em
aspectos mais amplos do manejo dos recursos e o papel crítico
da manutenção em níveis adequados da biodiversidade
em paralelo aos planos de manejo de florestas, de recursos pesqueiros
e com a agricultura. Nesse aspecto os programas de pós-graduação
das áreas de genética, zoologia, botânica e
ecologia, têm responsabilidade dobrada na formação
de recursos humanos voltados para conservação e manejo
dos recursos naturais. Recentes avanços nos estudos sobre
genética da conservação têm mostrado
que o conhecimento da estrutura genética das populações
deve estar acoplado com o conhecimento da biologia populacional
bem como das interações bióticas e abióticas
das populações com seu meio ambiente. A lista de espécies
ameaçadas de extinção aumentaria se houvesse
maior conhecimento da estrutura genética das espécies
em seus ambientes naturais. Mas, para tanto, há que se amostrar,
estudar, trocar material. Há que se ter cientistas comprometidos
com a conservação dos recursos naturais.
Por
fim, mas não menos importante, não há como
imaginar a ciência neutra e sem fronteiras, e por isso é
preciso cuidado, é preciso separar o joio do trigo, sem exageros,
sem inviabilizar o caminhar próprio da própria ciência.
Embora a ação dos legisladores busque a preservação
do patrimônio biológico brasileiro, intenção
válida e desejável, há momentos de tensão
em decorrência da falta de informações. A Amazônia
sempre foi grande demais para o Brasil e tem sido negligenciada
durante décadas. Hoje, os pouco mais de 600 doutores trabalham
numa região que representa cerca de 60% do território
nacional. Não há como colocarmos uma cerca na região
para preservar o que está escrito nas delicadas interações
de bichos e plantas com seus ambientes. Não há como
atrasar esse espetáculo. A estratégia da "reserva
de mercado" não se aplica à biologia. Se não,
vejamos. A água de lastros de navios, os sucos e as polpas
de frutas exportados para outros países e regiões,
os peixes, incluindo os ornamentais, as aves que migram de um país
para outro, tudo tem material genético, tem DNA que pode
ser decifrado. Da mesma forma, aquele colar artesanal de sementes,
as escamas do pirarucu e os fungos a elas associados, os entalhes
de madeira, avidamente procurados por turistas, preservam informação
genética - querendo decifrá-la basta extrair o DNA
e analisar. Ainda, como dito, bichos e plantas da Amazônia
são facilmente encontrados em museus, coleções,
jardins zoológicos e botânicos, espalhados pelo mundo
inteiro. Também, a Amazônia não é só
brasileira, ela se estende por vários países e os
elementos da biota transitam por ela toda, em resposta às
suas características biológicas. Fronteiras políticas
são perceptíveis apenas pelo homem. Portanto, a preservação
do patrimônio biológico passa, necessariamente, pela
aquisição de conhecimentos científicos.
Assunto
recorrente, a formação de recursos humanos na Amazônia
tem sido propalada por muitos de nós e é nela que
temos encontrado e poderemos alcançar soluções
num curto prazo para o preenchimento desse vazio de conhecimento.
O compromisso tem sido apenas das instituições locais,
mas pode e deve ser nacional. Diferente do que vem sendo pensado
para a região, não há solução
apenas com paredes e prédios modernos e bem equipados. Embora
eles sejam necessários, o ser humano qualificado é
imprescindível, inclusive para estabelecer o melhor caminho
na conservação dos recursos naturais e em seu uso
sustentável. Esse caminho leva à geração
dos conhecimentos tão necessários ao alcance da soberania
sobre uma região ameaçada pela biopirataria.
Que
não pairem dúvidas, o uso sustentável da biodiversidade
é o principal componente do desenvolvimento econômico
e social mais justo, tanto para a geração atual, como
para as gerações futuras desse país. Encontrar
uma solução saudável para a repartição
de seu valor, que se enfatize, advirá de seu conhecimento
e não do conjunto de informações ou objetos
depositados em algum canto, é uma tarefa hercúlea.
Deve envolver todas as sociedades pois o conhecimento final vai
sempre ocorrer a partir de um conjunto de informações
produzidas em diferentes países, por vários atores,
sobre uma planta, um animal ou um processo natural, moldados pela
evolução da vida num teatro único.
Adalberto Luís Val e Vera Maria Fonseca de Almeida e Val
são pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
(INPA).
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