A quem pertence a biodiversidade?
Tão
rica quanto desconhecida, há algumas décadas a biodiversidade
dos mais variados ecossistemas do planeta tornou-se sinônimo
de lucro. Calcula-se que os ecossistemas representem um valor econômico
global de 33 trilhões de dólares por ano, mais do
que o produto mundial econômico bruto. Embora estimativas
revelem que o número total de espécies varie entre
5 e 100 milhões, e que apenas 1,7 milhão já
foram estudadas, hoje muitas delas são úteis à
fabricação de remédios, alimentos, fibras e
matéria-prima para produtos agrícolas, químicos
e industriais. Cerca de 25 a 40% dos medicamentos têm como
princípio ativo elementos retirados da natureza, movimentando
40 bilhões de dólares. Porém, a quem são
destinadas essas cifras? Os maiores beneficiados ainda são
os países desenvolvidos, líderes em tecnologia e poderio
econômico. As populações tradicionais, cuja
maioria vive dentro ou muito próxima de áreas de preservação
ambiental das florestas tropicais, nada recebem pelo saber revelado
e explorado.
Atualmente,
o principal instrumento legal para a proteção da biodiversidade
é a Convenção da Diversidade Biológica
(CDB), assinada por uma centena de países durante a Conferência
das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento
(Rio-92). A convenção representou alguns avanços
teóricos, como a adoção do princípio
da soberania dos Estados sobre os recursos biológicos e genéticos
existentes em seus territórios. Assim, foi extinta a idéia
de que esses recursos seriam "patrimônio da humanidade".
Com o novo princípio, qualquer Estado interessado em acessar
recursos biológicos e genéticos deve pedir autorização
prévia ao "Estado de origem" desses recursos, ou
seja, onde eles foram encontrados. Para Juliana Ferraz Santilli,
promotora de justiça no Prodema (Segunda Promotoria de Justiça
de Defesa do Meio Ambiente e do Patrimônio Cultural, do Ministério
Público Federal), os princípios da CDB estão
sendo implementados. "Muitos países já aprovaram
leis que regulamentam o uso da biodiversidade existente em seus
territórios, como a Costa Rica, o Peru, a Índia e
o Equador", diz Santilli. "Isso prova que existe a preocupação
em proteger recursos biológicos e genéticos",
conclui.
A CDB
também confere proteção aos conhecimentos,
inovações e práticas de comunidades tradicionais
(indígenas, seringueiros, ribeirinhos, quilombolas etc),
consideradas relevantes e úteis à conservação
da diversidade biológica.
Especialistas
em meio ambiente e propriedade intelectual de todo o mundo sugerem
mudanças nas regras internacionais referentes à proteção
da biodiversidade. Para eles, é preciso redefinir as formas
de proteção aos recursos naturais (como plantas e
microorganismos), garantindo a partilha de benefícios dos
inventos com quem possui os conhecimentos nativos. Segundo esses
especialistas, os princípios da CDB ainda não foram
colocados em prática porque empresas multinacionais e instituições
de pesquisa apoiam-se em outro acordo internacional, o Tratado de
Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio
(Trips, na sigla em inglês) para explorar recursos genéticos
em outros países.
Um
dos artigos do Trips admite que se registre a patente de seres vivos
e a comercialização da biodiversidade, ignorando a
questão do conhecimento tradicional. O Trips está
vinculado à Organização Mundial do Comércio
(OMC) e foi ratificado por seus 114 países membros, inclusive
o Brasil, sendo o mais importante acordo internacional na área
de propriedade intelectual.
"Para
reverter a forma atual como as multinacionais exploram os recursos
biológicos, apropriando-se deles, seria preciso tornar o
Acordo Trips compatível à Convenção
da Diversidade Biológica", conta Santilli. Na tentativa
de promover essa compatibilidade, criou-se um verdadeiro embate
entre os países que detêm a tecnologia exploratória
dos recursos biológicos e genéticos e aqueles com
vasta biodiversidade e conhecimentos tradicionais. Os EUA e o Japão,
que até hoje não ratificaram, mas apenas assinaram
os termos da Convenção, sempre pleitearam o livre
acesso a esses recursos. Para o governo norte-americano, Trips e
CDB tratam de assuntos diferentes, o que os torna incompatíveis.
Já os países da chamada megadiversidade - Brasil,
Bolívia, México, China, Madagascar, Colômbia,
Indonésia, Quênia, Peru, Venezuela, Equador, Índia,
Costa Rica e África do Sul - e que possuem, juntos, cerca
de 70% da diversidade biológica do mundo - querem proteger
esse potencial que pode lhes garantir um futuro com melhorias econômicas
e sociais. A cooperação entre os membros desse grupo
possibilita a troca de experiências e informações.
No ano passado, num encontro em Cancún, no México,
os países da megadiversidade decidiram fazer um bloqueio
contra as indústrias multinacionais que não respeitarem
regras de acesso aos recursos genéticos e que não
adotarem políticas de contrapartida para conhecimentos tradicionais.
Iniciativas
Se no geral os países desenvolvidos continuam levando vantagem
sobre aqueles que possuem apenas riqueza de recursos naturais, algumas
iniciativas demonstram que a situação poderá
se inverter. Em 1991, o Instituto Nacional de Biodiversidade (Inbio)
da Costa Rica criou o Programa de Bioprospecção, que
estabelece a busca sistemática de novas fontes de compostos
químicos, gens, proteínas, microorganismos e outros
produtos com potencial valor econômico. Em seguida, firmou
contrato com 12 empresas farmacêuticas para fazer pesquisa
sobre biodiversidade em seu território. A contrapartida é
fazer com que o dinheiro arrecadado com as pesquisas seja depositado
em um fundo nacional. No entanto, há muitas críticas
ao convênio estabelecido entre o Inbio e a multinacional farmacêutica
alemã Merck. A Costa Rica teria vendido sua biodiversidade
a preço de banana - 2,8 milhões de dólares
- por oito anos de bioprospecção.
Po
outro lado, a legislação ambiental da Costa Rica recebe
muitos elogios de juristas de todo o mundo. A criação
da Lei Orgânica do Ambiente possibilita a participação
dos habitantes e das organizações ambientais, cria
os Conselhos Regionais Ambientais, fomenta a cultura ambiental para
o desenvolvimento sustentável, institui a avaliação
do impacto ambiental e define as áreas silvestres protegidas.
"A Costa Rica foi o país pioneiro na aprovação
de leis que regulamentam o uso da biodiversidade", conta Santilli.
A Venezuela
também tem dado passos importantes para proteger não
apenas a biodiversidade, mas o saber dos povos que a utilizam há
centenas de anos. O país criou um banco de dados a partir
dos conhecimentos indígenas. Para acessá-lo, é
preciso pagar e comprometer-se a cumprir algumas regras. Em apenas
três anos foram catalogadas 9 mil referências de vegetais
e conhecimentos dos indígenas, recuperando culturas consideradas
quase mortas. No futuro, a intenção é conseguir
anular patentes pedidas para produtos desenvolvidos a partir de
informações cedidas pelos índios.
Medida
semelhante foi adotada na Índia. No ano passado, foi inaugurado
no país um centro de pesquisas que gerencia um banco de dados
sobre os recursos naturais utilizados por comunidades tradicionais
no país. Ele pode ser acessado por escritórios de
patentes em todo o mundo e evita, por meio do registro do conhecimento
tradicional, que multinacionais estabeleçam patentes e a
produção de medicamentos sem a justa contrapartida
para as comunidades.
Fragilidade
Há cientistas que não concordam como o conceito de
propriedade intelectual é aplicado hoje, em especial no que
se refere ao valor financeiro dado aos recursos biológicos
e naturais. Ihering Guedes Alcoforado, economista e especialista
em desenvolvimento local sustentável e competitivo, desenvolveu
a pesquisa "Mecanismo de Incentivo à Proteção
à Biodiversidade - direitos de propriedade e contratos",
no qual avalia alguns convênios assinados entre países
e multinacionais. "As evidências atuais revelam que,
ainda, não se dispõe da infra-estrutura institucional
necessária para ancorar um mecanismo de incentivo à
preservação da biodiversidade articulada através
do mercado. Os instrumentos econômicos tradicionais, que operam
através do mercado existente, não funcionam nas situações
de abundância e redundância dos recursos, resultando
num valor tão baixo que não cobre, na maioria das
situações, os custos de transação necessário
ao cumprimento dos direitos de propriedade", conclui o estudo
do economista. Ele sustenta suas conclusões citando o caso
entre o Inbio, na Costa Rica, e a Merck. "O pagamento cobre
simplesmente os custos de coleta, de forma que nenhum resource
rent é gerado, o que revela a inexistência de qualquer
incentivo econômico à proteção dos habitats
por aqueles que estão em contato direto com eles", avalia
Alcoforado.
O pesquisador
também cita uma contradição nas negociações
promovidas pelos Estados Unidos, revelando a fragilidade dos sistemas
de regulação da exploração da biodiversidade.
A companhia americana de biotecnologia Diversa fez, recentemente,
dois contratos de bioprospecção - um com a Universidade
Nacional Autônoma do México (UNAM) e outro com o Departamento
do Interior dos Estados Unidos. A disparidade entre os contratos
fica por conta dos valores diferentes oferecidos pela companhia.
No acordo com a UNAM, foi acertado o acesso à biodiversidade
do México em troca do treinamento técnico do pessoal,
US$ 5 mil em equipamentos, US$ 50 por mostra coletada e direitos
de remuneração que vão de 0.3 a 0.5% sobre
as vendas líquidas dos produtos gerados a partir dos materiais
coletados. Enquanto isso, no acordo similar com o Departamento do
Interior a Diversa aceitou pagar 10% para os produtos derivados
de sua bioprospecção no Parque Nacional de Yellowstone.
Para o economista, a conservação dos recursos genéticos
associados à biodiversidade requer investimentos de longo
prazo em instituições e capital humano. "Esses
gastos estão além dos contratos que viabilizam os
direitos de propriedade", explica o pesquisador.
(SN)
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