O
impasse dos transgênicos no Brasil
O Brasil
enfrenta uma verdadeira batalha judicial e política sobre
a situação dos produtos com organismos geneticamente
modificados (OGM), mais precisamente com relação aos
alimentos transgênicos. De uma lado, existe a pesquisa desses
alimentos com genes modificados, que são feitas em áreas
autorizadas pelo governo, e de outro lado, há as lavouras
clandestinas para a produção comercial visando o consumo
no mercado interno e externo. Enquanto não se tem uma política
clara e não se chega a nenhum acordo jurídico, as
colheitas clandestinas feitas com sementes importadas estão
crescendo. O último capítulo dessa novela aconteceu
no dia 26 de março de 2003, com a edição de
uma Medida Provisória assinada pelo presidente Luiz Inácio
Lula da Silva e mais nove ministros, que autoriza a venda da soja
geneticamente modificada da safra de 2003.
No
centro da questão sobre os transgêncos está
a soja transgênica. A legislação brasileira
proíbe o cultivo de alimentos transgênicos para a comercialização,
de acordo com a Lei 8974, que prevê a análise de cada
caso pela CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança).
O plantio e o consumo de transgênicos está vetado desde
1998, quando a empresa multinacional Monsanto tentou registrar a
Roundup Ready, a sua soja resistente ao herbicida Roundup. Antes
da concessão do registro, o Instituto Brasileiro de Defesa
do Consumidor (Idec) e o Greenpeace entraram na justiça e
conseguiram impedir a autorização do registro para
a comercialização.
Depois
de vários confrontos judiciais, a situação
chegou a esse ponto, de o Governo assinar a autorização
para se comercializar um produto até então ilegal.
Isso porque, apesar da proibição, muitos agricultores
já cultivam as plantações usando sementes de
soja transgênica contrabandeadas da Argentina, onde a produção
de transgênicos é liberada. Pela proximidade com o
país vizinho, o Rio Grande do Sul é o estado com o
maior número de plantações transgênicas
clandestinas, mas elas existem em outros estados, no Paraná
e no Centro-Oeste.
A Associação
Brasileira dos Produtores de Sementes (Abrasem) vem notando uma
queda no consumo das sementes tradicionais. Segundo o presidente
da associação, João Henrique Hummel, o plantio
ilegal de sementes de soja geneticamente modificada pode chegar
a 30% da área plantada nessa safra, subindo em relação
os 18% no ano de 2001. Para Hummel, o plantio clandestino de alimentos
trangênicos deve atingir outras culturas como milho, arroz
e trigo. Segundo cálculos do governo, no Rio Grande do Sul
cerca de 80% da produção de soja é transgênica
e o estado exporta 20% da colheita.
Apesar
de não haver uma estatística oficial, o Ministério
da Agricultura calcula que o valor da safra de soja transgênica
deste ano seja de R$ 1 bilhão, cerca de 8% da produção
nacional. A quantidade da safra influiu para o governo criar a MP
e evitar prejuízos, como a 'quebra' de agricultores e a queda
da exportação. Segundo a situação atual
da legislação brasileira, é proibido plantar
transgênicos, e se não fosse a atitude do governo,
a safra transgênica de 2003 deveria ser destruída.
A Medida
Provisória libera temporariamente a comercialização
da soja transgênica. Os produtores tem até 31 de janeiro
de 2004 para vender o produto geneticamente modificado, que pode
ser feito no mercado interno e para exportação. A
MP também obriga as empresas a rotularem os produtos que
tenham soja transgênica, para informar o consumidor.
Mas,
ao mesmo tempo que libera o consumo dessa safra transgênica,
o governo também acena para futuras proibições
para impedir o cultivo de transgênicos. A própria MP
também estabelece punições para quem insistir
em plantar transgênicos para a comercialização
nas próximas safras. Entre as penas estão a perda
da safra, multas e descredenciamento de empréstimos e financiamentos
de instituições públicas. Para editar essa
Medida Provisória, o governo reuniu vários ministros,
alguns que são contra e outros a favor dos OGMs.
Um
defensor da liberação dos transgênicos é
o ministro da Agricultura Roberto Rodrigues. Entre os contrários
à liberação dos transgênicos, está
a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, que sempre teve uma carreira
política ligada aos grupos ambientais. Na reunião
com os ministros, ela defendia que a safra transgênica de
2003 deveria ser liberada somente para a exportação,
mas sua proposta foi rejeitada. Apesar da MP que libera o comércio
temporariamente, a ministra disse que a partir de 2004 toda a produção
deverá estar isenta de transgênicos.
"Não
sou contrária a qualquer avanço tecnológico.
Vou aceitar a liberação comercial de organismos geneticamente
modificados no Brasil, quando a sociedade estiver segura e informada
sobre os efeitos dos transgênicos à saúde e
ao meio ambiente", afirmou Marina Silva. No Brasil existem
atualmente cerca de 1000 experimentos com transgênicos autorizados
pelo governo, em colheitas de diversas culturas.
As
principais experiências são com soja e milho, mas há
plantações transgênicas de algodão, batata,
cana-de-açúcar, feijão, arroz, mamão,
fumo e eucalipto. As lavouras são autorizadas pela CTNBio
(Comissão Técnica Nacional de Biossegurança)
e estão espalhadas por vários estados, principalmente
em São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul. Os pedidos
para a criação de lavouras experimentais são
feitos por instituições de pesquisas governamentais,
como a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária),
ou por empresas privadas como a Monsanto, Pioneer, Braskalb, Aventis
e Basf.
Segurança
temporária
A publicação da Medida Provisória liberando
temporariamente a comercialização dos transgênicos,
somente adiou a decisão. Para alguns setores da sociedade,
a Medida Provisória pode apontar para uma futura liberação.
É o que defende a pesquisadora Leila Oda, presidente da Associação
Nacional de Biossegurança (ANBio). "Ao permitir a comercialização
da soja transgênica o governo assume a segurança desse
produto, a menos que ele priorize as questões econômicas
sobre as questões de segurança da sociedade brasileira.
Não dá para lançar uma nuvem de fumaça
sobre esta questão. Ou é seguro ou não é
seguro. Não existe o meio seguro ou a segurança até
2004", afirma Leila Oda, que é doutora em microbiologia
e imunobiologia e especialista em biossegurança.
Para
o Greenpeace, a Medida Provisória do Governo não representa
um atestado de segurança nem uma liberação
de transgênicos no Brasil. Para a coordenadora da campanha
de engenharia genética do Greenpeace, Mariana Paoli, a assinatura
da medida provisória foi "lamentável". "Ela
passa por cima da legislação brasileira, de uma sentença
da Justiça. A nossa legislação exige que sejam
feitas avaliações desses produtos sobre a saúde
e o meio ambiente. Quem perde é a população
que terá que engolir alimentos que não passaram por
avaliações sobre a saúde humana", diz
Paoli. Quanto aos prejuízos econômicos, segundo o Greenpeace,
eles podem ser maiores do que a perda de parte da safra transgênica,
porque a mistura com sementes tradicionais pode contaminar toda
a safra, fazendo com que o Brasil perca o mercado de produtos não-trasngênicos,
principalmente para a Europa e Japão.
A contaminação
de outras safras é um fator preocupante. "O problema
mais grave é que a safra de soja transgênica se concentra
na região Sul do país, com cerca de 8% da produção.
"E a situação dos outros agricultores do país,
que usaram sementes tradicionais e podem perder mercado e ainda
terão que gastar mais para ter um certificado de produção
livre de transgênicos?", pergunta Mariana Paoli.
A mistura
de grãos transgênicos com sementes tradicionais compromete
toda a safra. Por exemplo, se 50% de grãos transgênicos
são misturados com 50% de não-transgêncios,
a safra é classificada como transgênica. Outros estados
brasileiros que são grandes produtores de soja se preocupam
em não perder o mercado de produtos não-transgênico.
No caso do Paraná, um dos maiores produtores de soja do país,
há uma união da federação de agricultores
e a Secretaria Estadual de Agricultura para evitar a proliferação
da soja transgênica, através de controle e fiscalização
das fronteiras.
O próprio
ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, disse em uma palestra
para membros da Associação dos Correspondentes Estrangeiros
em São Paulo, que a questão dos transgênicos
é muito problemática. "É difícil
segregar os transgênicos dos não-transgênicos.
Não há laboratórios suficientes para testar
todos os lotes. É difícil fiscalizar num universo
de muitos produtores. E o fato de a Argentina permitir os transgênicos
e nós não, dificulta ainda mais". Para o ministro,
o Congresso deve resolver em breve o impasse, aprovando uma lei
que permita o plantio de soja transgênica, apesar de alguns
deputados contrários aos transgênicos já estarem
se mobilizando para elaborar uma emenda para a Medida Provisória,
para que a safra transgênica seja liberada somente para a
exportação.
A indefinição
sobre a situação dos transgênicos no Brasil
acaba comprometendo as pesquisas e os investimentos na área
de biotecnologia. "As pesquisas no setor biotecnológico
sofreram grande retração no país, na medida
em que as pendências jurídicas levam à insegurança
e redirecionam os investimentos para outras áreas",
diz Lelia Oda. Para ela, o preço dessa falta de decisão
política e judicial é o atraso científico e
tecnológico e o Brasil precisa resolver essa situação
com urgência "para não perder o trem da história,
como aconteceu no segmento da informática". As pesquisas
com culturas transgênicas com atividades biocida (inseticidas
biológicos) também foram reduzidas em cerca de 200%
entre o ano de 2000 e 2002. Segundo a CTNBio, em 2000 existiam 207
pesquisas autorizadas com produtos transgênicos e em 2002
este número caiu para 86.
Na
verdade, o que vem acontecendo é uma disputa burocrática
para definir qual o setor do governo é o responsável
pela autorização da produção e comercialização
dos produtos geneticamente modificados. O que está em questão
na justiça é definir qual o órgão do
governo tem esse papel. Nessa discussão, os favoráveis
a liberação dos transgênicos defendem que a
CTNBio é o órgão responsável pela análise
dos riscos a saúde e ambientais e portanto tem o poder de
autorizar ou não o cultivo. Em 1998 a CTNBio havia atestado
a segurança da soja transgênica para a comercialização,
mas o caso foi parar na justiça. Os setores contrários
à liberação argumentam que a CTNBio é
somente um órgão consultor e defendem que a autorização
deve ser feita pelos ministérios do Meio Ambiente e da Saúde.
(GP)
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