Patrimônio
genético é estocado para aplicações
futuras
O Brasil
destaca-se por ser detentor da maior biodiversidade do planeta.
Essa tamanha variabilidade genética pode ganhar ainda mais
valor quando devidamente organizada, classificada, documentada e
disponível para acesso sempre que houver demanda, seja ela
para pesquisa ou aplicações tecnológicas. Atento
a isso, o governo brasileiro está destinando mais investimentos
às coleções de materiais biológicos
vivos que, embora não sejam novidade no país, passaram
a ter um lugar de destaque na política científica
e tecnológica em julho de 2002, com o lançamento do
Sistema de Avaliação da Conformidade de Material Biológico
pelo Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT). Este
programa visa a certificação de material biológico
- bactérias; fungos; vírus; leveduras; células
vegetais, animais e humanas; fragmentos de DNA clonado (plasmídeos);
entre outros - usado no campo da biotecnologia. Outro importante
projeto do MCT, fruto do Programa Nacional de Biotecnologia e Recursos
Genéticos, é o Sistema de Informação
de Coleções de Interesse Biotecnológico (SICol)
que integra as várias coleções de interesse
biotecnológico, econômico e de aplicações
industriais em uma rede de informações que facilita
o acesso dos usuários, além se servir como subsídio
para os formuladores de políticas públicas.
Entre
as várias formas de armazenar o patrimônio genético
é possível descrever duas categorias: a preservação
in situ (no local de origem) e a preservação
ex situ (fora do local de origem). Na primeira categoria encontram-se
as mais de 723 unidades de conservação no país,
que são áreas selecionadas por conterem alta biodiversidade
ou populações ameaçadas de desaparecimento.
Já na preservação ex situ (fora do local
de origem) identifica-se duas sub-divisões: as de material
biológico morto, onde estão os cerca de 78 herbários
brasileiros (acervo de plantas secas) além de microrganismos
conservados em lâminas de microscópio e animais mantidos
em álcool, formol ou taxidermizados (conservação
da carapaça, empalhamento). O objetivo principal de guardar
organismos dessa forma é a pesquisa. Por último estão
os organismos ou células que são mantidos vivos e
que têm grande importância estratégica na pesquisa
e no desenvolvimento biotecnológico. É nessa categoria
que o material biológico adquire mais importância como
patrimônio genético.
Existem
muitas formas de armazenar organismos vivos. Entre elas estão
os já familiares zoológicos e jardins botânicos,
que mantêm coleções de plantas e animais para
fins de lazer, educação, pesquisa e conservação.
Menos conhecidos são os bancos de germoplasma, bancos de
qualquer material biológico que possa ser propagado (reproduzido)
ou reativado. É o caso dos bancos de sementes, das coleções
de microrganismos (bactérias, vírus, fungos, leveduras
e protozoários), dos bancos de sêmen de animais, dos
bancos de células-tronco e tecidos humanos e, mais recentemente,
dos bancos de DNA ou de fragmentos de DNA (plasmídeos). Por
esses verdadeiros arquivos biológicos é possível
entender melhor a forma de ação de organismos patogênicos
(causadores de doenças), descobrir substâncias e desenvolver
compostos com aplicação farmacêutica potencial,
fazer melhoramento genético dos alimentos que chegam à
nossa mesa, além de tantas outras aplicações
que ainda estão por vir. Aliás, o futuro está
sempre presente nos objetivos que levam a comunidade acadêmica
e governos a organizarem e investirem na criação e
manutenção desses bancos.
A idéia
de armazenar material biológico vivo não é
nova, como lembra Gilson Manfio, coordenador da Coleção
Brasileira de Microrganismos de Ambiente e Indústria (CBMAI)
da Unicamp, "mas agora temos novas aplicações
e novas demandas para esse material, como na medicina e na agricultura".
Muitas vezes essas aplicações geram patentes e é
aí que os bancos também desempenham importante papel.
Caso haja o desenvolvimento de uma nova técnica para isolar
uma determinada bactéria, por exemplo, é preciso que,
antes de solicitar a patente junto ao Instituto Nacional da Propriedade
Industrial (INPI), se deposite também a tal bactéria
em um dos centros depositários estabelecidos pelo Tratado
de Budapeste (Leia entrevista
sobre o assunto) - que define as condições para que
as coleções possam ser credenciadas como centros depositários
de material biológico associado à patente. Vanderlei
Canhos, diretor-presidente do Centro de Referência de Informação
Ambiental (Cria), lamenta o fato de não haver nenhum centro
depositário credenciado pelo INPI no Brasil, o que força
que os depósitos sejam feitos no exterior. No entanto, ele
acredita que capacitar as coleções nacionais para
tornarem-se centros depositários é uma meta que poderá
ser alcançada via programa de Tecnologia Industrial Básica
(TIB), também do MCT, com o qual se pretende aumentar a capacidade
competitiva da empresa brasileira em um esforço de buscar
modernização tecnológica e inovação.
Atualmente,
o Brasil tem 44 coleções de cultura de microrganismos
registradas no Centro Mundial de Dados para Microrganismos (WDCM,
em inglês), entidade que reúne informações
de 462 coleções de microrganismos e linhagens celulares,
além de acessos a informações sobre biodiversidade,
biologia molecular e projetos genoma de 62 países. O objetivo
do WDCM, assim como de outras organizações internacionais
como a Organização para Cooperação Econômica
e de Desenvolvimento (OCDE) e a Acesso Comum a Recursos e Informações
Biológicos (Cabri) da Comunidade Européia, é
formar redes de centros de recursos biológicos para que seus
membros tenham acesso a materiais biológicos com o mesmo
padrão de qualidade, com intercâmbio de informações
e materiais, facilitado por regras que garantam a repartição
de benefícios, além de ter a propriedade intelectual
e a biossegurança garantidas. A formação dessas
redes permite também minimizar os investimentos, uma vez
que evita a formação de centros semelhantes. Dados
da OCDE estimam que a adição de apenas uma cultura
de bactérias a uma coleção requer o desembolso
de US$2,5 mil a US$3 mil, ou cerca de US$5 mil a US$10 mil quando
são levados em conta os custos de controle de qualidade,
validação, preservação a longo prazo
e distribuição.
O Brasil
já percebeu que para elevar seu nível de competitividade
científica e tecnológica é importante organizar
e discutir a possibilidade de montar uma rede nacional de recursos
biológicos, que começa a ser ensaiada através
do Sistema de Informação de Coleções
de Interesse Biotecnológico (SICol). Disponibilizado no final
de 2002, o SICol
já reúne informações de 17 coleções
e bancos em um sistema de informação on line através
do qual o usuário pode localizar linhagens de microrganismos,
do Brasil e do exterior, além de acessar trabalhos científicos
e cruzar dados com bancos internacionais como o GenBank (informações
de genomas). Antes do SICol, os bancos de dados não se comunicavam,
forçando o pesquisador a buscar seus dados separadamente
em cada centro. Mas muito trabalho precisa ainda ser feito. Canhos,
que participa das discussões de formação de
uma rede nacional, acredita que é necessário investir
na capacitação de recursos humanos altamente especializados,
que utilizem técnicas modernas de biologia molecular e avanços
da tecnologia de informação, uma vez que os centros
trabalham com grande complexidade. Segundo ele, o custo do país
não dispor de uma rede integrada de coleções,
"é o custo de sermos menos competitivos e de não
podermos proteger direito o nosso material".
A curto
prazo, no entanto, é preciso resolver um problema que se
agrava nas coleções brasileiras. Por dependerem principalmente
de recursos e vontade governamental, as coleções passam
por períodos de estabilidade financeira e outros de total
retenção de custos, que prejudicam a manutenção
das linhagens armazenadas, muitas vezes fruto de um trabalho de
décadas. Vanderlei Canhos aponta como alternativa a institucionalização
das coleções de prestação de serviço,
que assim passariam a ser responsabilidade tanto do governo como
das instituições de pesquisa, proporcionando maior
estabilidade a elas. "Uma coleção de culturas
é algo a ser constituído a longo prazo, precisamos
pensar que isso é uma infraestrutura permanente, ou seja,
daqui a 50 anos todo o material que foi armazenado estará
lá e vai estar documentado. Estamos falando de coisas que
vão sobreviver às pessoas e aos governos", enfatiza
o pesquisador, que já foi presidente da Federação
Mundial de Coleções de Culturas (WFCC).
Resolvido
este impasse, que atualmente ameaça algumas coleções,
é necessário rediscutir as regras da Medida Provisória
2.186-16, de 23 de agosto de 2001, pelo Decreto No. 3.945 de 28
de setembro de 2001, e pelas resoluções do recém-criado
Conselho de Gestão do Patrimônio Genético/CGEN.
A comunidade científica, através de moção
enviada pela equipe do projeto Biota da Fapesp em novembro de 2002,
alertou o Ministério do Meio Ambiente para os reflexos perversos
da MP sobre a pesquisa científica da biodiversidade. Ao invés
de prevenir o acesso das grandes empresas à biodiversidade
combatendo, consequentemente, a biopirataria, a Medida estaria prejudicando
o uso desses mesmos recursos biológicos nas pesquisas, tão
importantes para se conhecer e preservar a biodiversidade. "Ninguém
é contra o fato de haver uma lei de acesso, isso, na verdade,
é uma necessidade. É preciso criar leis que evitem
o abuso de biopirataria mas que não inibam o desenvolvimento
científico, porque sem isso nunca conseguiremos ter capacitação
para usar o patrimônio genético de interesse comercial,
que é de interesse para o país", enfatizou o
pesquisador do Cria.
Centros
de recursos biológicos armazenam a diversidade
O objetivo primário dos bancos de germoplasma é a
pesquisa e a prestação de serviços. Embora
a conservação da biodiversidade também seja
uma das funções desses bancos, ela é minoritária.
Isso porque se fosse comparada à quantidade de microrganismos,
existentes na natureza, conhecidos pela ciência e guardados
em coleções, seria uma porcentagem digna desses seres,
ou seja, microscópica. "Existem coleções
que têm um arquivo muito grande mas, mesmo assim, a quantidade
de espécies passíveis de serem preservadas são
apenas aquelas cultiváveis no laboratório. Existe
muito material na natureza que não sabemos cultivar ainda,
ou que não há como preservar", explicou Gilson
Manfio, coordenador da Coleção Brasileira de Microrganismos
de Ambiente e Indústria, da Unicamp.
Sem
contar que boa parte do material que compõe as coleções
não é brasileiro, mas sim de referência, obtido
em coleções internacionais. Mas existem, como lembrou
Vanderlei Canhos, coleções nacionais com boa representatividade
da diversidade de alguns grupos, como a Coleção de
Culturas de Bactérias Diazotróficas da Embrapa Agrobiologia,
que reúne bactérias ligadas à fixação
biológica de nitrogênio, área em que o Brasil
se destaca na pesquisa. Canhos cita também a Coleção
de Culturas de Fitobactérias do Laboratório de Bacteriologia
Vegetal, do Instituto Biológico de Campinas, que possui mais
de mil linhagens fitopatogênicas (microrganismos que causam
doenças em plantas).
Além
das coleções de microrganismos, existem verdadeiras
coleções de variedades de plantas em campo, como as
do centenário Instituto Agronômico de Campinas (IAC),
pioneiro na manutenção de coleções de
variedades usadas para fins alimentícios ou comerciais. Renato
Ferraz de Arruda Veiga, pesquisador do IAC, informa que a instituição
dispõe de 64 bancos de germoplasma que viabilizam o trabalho
dos melhoristas que, através de cruzamentos entre espécies
que apresentam as características de interesse, desenvolvem
plantas mais resistentes a doenças, mais produtivas, saborosas
ou vistosas. Segundo ele, os bancos de germoplasma de café
e citrus da instituição estão entre os maiores
do mundo. O de citrus é composto por 18 gêneros, com
636 acessos apenas de laranja-doce. Isso não quer dizer que
o melhorista faça uso de todas as variedades, mas elas são
guardadas e caracterizadas, podendo um dia serem úteis. "Mesmo
que [uma variedade] não seja produtiva, pode ter uma característica
interessante de resistência à moléstia, que
os cultivares ou que as linhagens não tenham", explicou.
As
coleções são formadas por amostras trazidas
dos locais de origem da planta ou instituições que
já tenham um banco bem formado. Muitas vezes demoram anos
para introduzir e aclimatar uma variedade de planta para iniciar
o trabalho do pesquisador ou do melhorista. Os bancos de germoplasma
permitem que esses profissionais façam o uso direto dessas
plantas. Mas algumas variedades de plantas têm uma grande
dificuldade de manutenção em campo. Nesse caso os
bancos de sementes conseguem armazenar, em condições
especiais, sementes que podem ser conservadas por um período
de 20 ou 30 anos. Quando o poder germitivo da semente cai rapidamente
ao ser conservada a frio, opta-se por manter partes da planta ou
uma plântula (planta jovem) in vitro (dentro de um
vidro), em baixa temperatura, onde recebe todos os nutrientes necessários,
além de substâncias que inibem seu crescimento. Há
ainda a conservação desse patrimônio genético
em nitrogênio líquido a -196o C.
E os
bancos não vivem só de organismos inteiros mantidos
vivos. A Embrapa Pantanal, por exemplo, mantém um banco de
sêmen das cinco principais espécies de peixes de valor
econômico. São elas o pintado, a caxara, o pacú,
a piraputanga e o dourado. "Como a pesca é a segunda
atividade econômica do Mato Grosso do Sul, vimos a necessidade
de fazer projetos com vistas a conservação desta ictiofauna,
e um deles foi o banco de sêmen, na tentativa de guardar material
genético com variabilidade de populações selvagens",
afirma Débora Marques, pesquisadora da Embrapa. Marques explica
que o material é coletado durante o período reprodutivo
sem o uso de qualquer indutor. Ao sêmen é então
adicionado um criopreservador (preparado de várias substâncias
que se mistura ao sêmen para não formar cristais danificam
a célula), colocado em pequenos recipientes e preservado
em nitrogênio líquido.
Os
bancos de sêmen de vários animais são mantidos,
principalmente, para fins de prestação de serviços
e de pesquisa. São importantes por manterem um arquivo genético
de inúmeras populações selvagens e que garantem
a manutenção de animais criados para fins alimentícios
(peixes, bovinos, caprinos, ovinos e eqüinos, por exemplo).
Quando os criadores ou pesquisadores se interessam pelo material,
o banco avalia o pedido e faz uma parceria com o criador, mediante
pagamento de taxa. Caso seja um pesquisador, pode-se acordar uma
parceria para um projeto.
Os
jardins botânicos e os zoológicos, que desde o século
XIX estão presentes no Brasil, antes não passavam
de meras coleções de plantas e animais. Hoje desempenham
importante papel na educação da população
e na conservação de espécies, muitas vezes
já ameaçadas de extinção. Tânia
Sampaio Pereira, pesquisadora titular do Jardim Botânico do
Rio de Janeiro contabiliza cerca de 5.200 espécies arbóreas
e arbustivas na instituição em que trabalha, além
das coleções herbáceas mais famosas tais como
orquídeas (600 espécies) e bromélias (400 espécies),
cientificamente ordenadas, classificadas e documentadas.
O Jardim
Botânico carioca é apoiado pelo Botanic Gardens Conservation
International (BGCI)
e participa do projeto Investindo na Natureza, uma parceria
do banco HSBC, com o BGCI, Earthwatcher (Observadores da
Terra) e a WWF. Serão investimentos de US$50 milhões
de dólares, para proteger 20 mil espécies vegetais
da extinção, recuperar três dos maiores rios
do mundo, treinamento de cientistas, além de prever o envolvimento
dos empregados do banco HSBC em projetos de conservação
no mundo inteiro. O projeto prevê ainda o desenvolvimento
de uma rede internacional de trabalhos voltados para a conservação
das plantas, interligando 500 jardins botânicos em 111 países.
Atualmente, existem 29 jardins botânicos no Brasil em meio
aos cerca de 1800 espalhados no mundo. Já os zoológicos
são bem mais numerosos, por volta de 150 no país e
mais de 5 mil no mundo.
Embora
os bancos de germoplasma sejam importantes para o desenvolvimento
biotecnológico, todos os bancos e coleções
descritos anteriormente resultam em perda progressiva da variabilidade
genética dos organismos, ou erosão genética,
como alguns chamam. Mas é consenso entre os pesquisadores
que é melhor arriscar perder qualidade genética do
que perder de vez tantas informações valiosas.
Para
saber mais:
(GB)
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