Reunião
da Ompi debaterá patenteamento em biotecnologia
Em
julho deste ano ocorrerá uma reunião da Organização
Mundial de Propriedade Intelectual (Ompi) para tratar de questões
relativas ao patenteamento na área de biotecnologia. O encontro
que acontecerá em Genebra, entre os dias 7 e 14, será
a quinta sessão do comitê intergovernamental sobre
propriedade intelectual, recursos genéticos, conhecimentos
tradicionais e folclore.
As
questões que envolvem propriedade intelectual têm se
tornado nos últimos anos foco de atenção e
disputa dos governos, da sociedade civil e das organizações
não governamentais nos mais diversos campos. No campo das
biotecnologias e do patrimônio genético, os embates
tornam-se particularmente polêmicos quando são rediscutidos
os problemas que envolvem, por exemplo, biotecnologia, conhecimentos
tradicionais ou patenteamento da vida.
No
universo de atores que refletem e problematizam essas questões,
a Ompi é um organismo intergovernamental e internacional
que, em 1974, passou a ser uma agência da Organização
das Nações Unidas (ONU), e administra questões
de propriedade intelectual. Em 1996, concluiu um acordo de cooperação
com a Organização Mundial do Comércio (OMC)
voltando-se para os direitos de propriedade intelectual na gestão
do comércio globalizado. Atualmente, a organização
administra 23 tratados internacionais, presta assistência
técnica e jurídica aos governos e ao setor privado
e fiscaliza e desenvolve novas orientações e conceitos
jurídicos. A Ompi tornou-se um espaço importante para
a mediação de disputas privadas sobre questões
de propriedade intelectual.
Quatro
tratados da Ompi criaram sistemas de classificação
que organizam as informações sobre invenções,
tendo como um de seus objetivos a determinação das
criações como novas ou já pertencentes e reivindicadas
por outra pessoa (ou grupo). Segundo a organização,
entre 1980 e 2001 o número de grupos na classificação
internacional de patentes para biotecnologia aumentou de 297 para
718, enquanto no caso dos medicamentos, o número aumentou
de 839 para 1966, ambos os casos relacionados ao patrimônio
genético e de biodiversidade dos países.
Segundo
Nuno Pires de Carvalho, chefe da Seção de Recursos
Genéticos, Biotecnologia e Conhecimentos Tradicionais Associados
da Ompi, uma das questões mais relevantes a serem tratadas
em julho será a formulação de diretrizes e
recomendações a serem adotadas a nível nacional
e regional para proteção dos conhecimentos tradicionais
nos 179 estados membros da Ompi. "Muito provavelmente chegaremos
à conclusão de que já passou o momento de fazermos
novos estudos e pesquisas ou monitoramento das medidas tomadas pelos
países, para passarmos para uma questão mais prática
de como proteger os conhecimentos tradicionais. Alguns de nossos
membros já começaram a formular a possibilidade de
um mandato para o comitê preparar recomendações
ou diretrizes para os estados membros, pois ainda é muito
cedo para formular um tratado", diz Carvalho.
Mesmo
constatando a prematuridade da discussão de um tratado, Carvalho
afirma que no plano mais geral, o grande questionamento para julho
é sobre a possibilidade de um plano multilateral para utilização
de um mecanismo sui generis internacional de proteção
dos conhecimentos tradicionais, ou seja, mecanismos de propriedade
intelectual adaptados às características dos conhecimentos
tradicionais.
O Brasil,
ao contrário de outros países como Panamá,
Portugal e Peru, não tem um sistema de registro e documentação
de conhecimentos tradicionais. A medida provisória da biodiversidade
existente no país permite adotar um mecanismo contratual
de acesso a biodiversidade que inclua o acesso aos conhecimentos
tradicionais. Para Carvalho, essa é uma solução
em que os conhecimentos tradicionais são protegidos apenas
de forma acessória, pois pontos importantes como a aquisição
desses direitos, sua utilização e vigência,
ou como transferi-los, protegê-los em tribunal, entre outros,
não estão contemplados.
Países
como a Venezuela, o caso mais recente, têm mecanismos sui
generis de registro dos conhecimentos tradicionais, de forma
que, assim como se obtém uma patente ou uma marca, também
é possível obter um certificado de registro de conhecimentos
tradicionais. "Alguns países têm esse mecanismo
sui generis a nível nacional, mas o Brasil tem algo
muito rudimentar. A questão para o surgimento de um mecanismo
internacional é: será que chegou a hora de discutir
isso no plano internacional ou vamos esperar que mais países
individualmente o façam a nível nacional?", questiona
Carvalho.
A reunião
da Ompi, em julho deste ano, também tratará de alguns
contratos de acesso aos recursos genéticos com cláusulas
de propriedade intelectual, e de dois aspectos dos conhecimentos
tradicionais, a proteção defensiva desses conhecimentos,
que são as medidas tomadas para evitar a apropriação
de conhecimentos por terceiros, a biogrilagem, ou o roubo dos conhecimentos
tradicionais e dos recursos genéticos de países que,
como o Brasil, são ricos em biodiversidade; e a proteção
positiva, que são as medidas de reivindicação
de direitos de propriedade intelectual sobre os conhecimentos tradicionais,
para os quais podem se utilizar tanto mecanismos como patentes,
marcas e indicações geográficas, como os sistemas
sui generis.
Outro
tema da reunião são as expressões do folclore
que, segundo Nuno Carvalho, estão muito relacionadas à
biodiversidade. "Muitas dessas expressões do folclore
ou do conhecimento tradicional estão ligadas à biodiversidade
porque há muitos conceitos de medicina tradicional que são
transmitidos via as chamadas encantações, que são
as entoações e canções que, no final
das contas, contêm quase uma fórmula química",
diz ele.
Uma
questão bastante polêmica que também será
tratada na reunião é a obrigação dos
requerentes de pedidos de patentes na área de biotecnologia,
de indicar, ao fazer o pedido, a origem dos recursos genéticos
usados nos inventos, bem como dar uma prova do consentimento prévio
informado dos detentores dos conhecimentos tradicionais. Sendo assim,
um bioprospector de plantas que obtenha, por exemplo, informações
de um pajé na Amazônia sobre propriedades medicinais
de uma determinada planta e, a partir disso desenvolve um novo produto
farmacêutico, precisa de sua autorização para
utilizar as informações e deverá remunerar
a pessoa ou grupo que as concedeu e que, portanto, está na
origem do produto. Esse mecanismo de informação no
pedido de patente, permitiria que as comunidades tradicionais e
o país que forneceu os recursos genéticos, monitorassem
se o contrato de acesso foi cumprido e se os direitos sobre os conhecimentos
tradicionais foram respeitados.
Essa será a sexta vez que a questão é discutida
na Ompi. Na OMC já houve um pedido, formulado pelo Brasil
e pela Índia, para a inserção de uma cláusula
no Acordo Trips (Trade-Related Aspects of Intellectual Property
Rights), permitindo que os países imponham essa condição
de divulgação nas suas leis de patentes. Nuno Pires
de Carvalho explica que essa é uma questão polêmica,
porque existe uma divergência entre essa imposição
e algumas obrigações internacionais, como o Acordo
Trips, ou outros tratados, como por exemplo, o da União para
Proteção das Obtenções Vegetais (UPVO)
e o Tratado de Cooperação em matéria de Patentes
(TCP), dos quais o Brasil também é membro. "Não
existe um órgão internacional, jurisdicional que tenha
definido isso, mas é possível que essa condição
esteja em conflito com esses tratados internacionais, então
a questão é saber como adotar no plano nacional essa
condição de patenteabilidade sem ofender esses tratados.
E essa é apenas uma das questões controversas desse
tema".
O
outro lado da questão
Enquanto avançam as discussões jurídicas e
os acordos internacionais sobre patenteamento em áreas que
envolvem o patrimônio genético, sobrevive uma série
de argumentos contra o patenteamento da vida. Levando-se em conta
apenas dois temas, como as sementes geneticamente modificadas e
os fármacos, já é difícil vislumbrar
como, no atual estágio da biotecnologia, poderia ser possível
rever a idéia de patenteamento da vida. Mas os argumentos
persistem como um alerta de que as polêmicas sobre patenteamento
nessa área serão muito longas e encontram ecos em
casos como, por exemplo, o da disputa judicial entre a empresa Monsanto
e o agricultor canadense Percy Schmeiser.
Entre
os argumentos contra o patenteamento da vida estão desde
os problemas relacionados à manipulação genética,
até as repercussões do próprio patenteamento.
No campo das melhorias genéticas vegetais e da agricultura,
um dos argumentos é de que o patenteamento pode concentrar
o poder econômico nas mãos de alguns grandes produtores
de sementes e possibilitar a imposição de cláusulas
abusivas nos contratos de licença para utilização
dessas sementes.
Sobre
isso, Nuno Carvalho afirma que as cláusulas abusivas são
excessos ou defeitos jurídicos que existem na legislação,
mas que há mecanismos jurídicos para evitar isso.
Por outro lado, ele reafirma a importância do patenteamento,
por exemplo, dos conhecimentos tradicionais associados à
biodiversidade. "Grande parte dos conhecimentos tradicionais
que são associados à biodiversidade, são precisamente
conhecimentos sobre a utilização prática de
elementos vivos, plantas, animais ou microorganismos. Portanto,
se se combate a patenteabilidade da vida como um todo, porque se
acha um absurdo obter direitos de propriedade ou exclusividade privatizados
sobre elementos vivos, também estão sendo combatidos
os mecanismos para proteção dos conhecimentos tradicionais",
diz Carvalho.
Se
por um lado não é possível desconsiderar a
possibilidade de proteção que as patentes podem trazer
para os conhecimentos tradicionais, o caso de Percy Schmeiser X
Monsanto é um exemplo que ilustra bem que as polêmicas
na área das biotecnologias, recursos genéticos e patentes
não terão solução breve.
O agricultor
canadense Schmeiser está sendo acusado de plantio e comércio
ilegal de sementes transgênicas de canola, de propriedade
da empresa Monsanto, produtora das sementes. O agricultor alega
que as sementes não foram plantadas por ele, mas por polinização
natural, já que seus vizinhos plantam tais sementes. Isso
quer dizer que a plantação de Schmeiser foi contaminada
pelas sementes transgênicas plantadas na vizinhança.
Apesar dessa alegação, a empresa afirma que não
importa que as sementes tenham chegado às terras de Schmeiser
por essa via, mas sim que as sementes transgênicas são
de propriedade da Monsanto. A disputa iniciada em 1998 está
sendo julgada agora pela Suprema Corte do Canadá e tem provocado,
nesses anos, uma revisão, segundo o agricultor, das leis
de patentes do Canadá.
(MK)
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