Seres
Híbridos & Clones: Da Literatura para as Telas, das Telas
para a Realidade
Edgar
Franco
Muito
já se falou sobre o poder de antecipação das
artes, a literatura de ficção científica, sobretudo,
revelou em proféticas e detalhadas descrições,
futuros feitos da ciência como a viagem à lua, o surgimento
dos submarinos e dos computadores pessoais; o design arrojado das
espaçonaves da série de histórias em quadrinhos
de Flash Gordon, desenhada por Alex Raymond na década de
30 chegou a servir de exemplo para auxiliar projetistas da Nasa
a resolverem problemas de aerodinâmica dos foguetes. Autores
como Julio Verne, H.G. Wells, George Orwel e Aldous Huxley passaram
a ser lembrados por jornalistas, físicos, biólogos
e outros cientistas em artigos acadêmicos que relatavam novas
descobertas. Assim aconteceu quando foi noticiado o nascimento de
Dolly, a primeira ovelha clonada, inaugurando uma nova fase da biotecnologia
e trazendo à tona diversos questionamentos relativos
à ética da clonagem. Nos primeiros dias após
a divulgação da experiência muitos jornalistas,
religiosos e cientistas lembraram, aterrorizados, das descrições
do escritor inglês Aldous Huxley em seu mais notório
romance Admirável Mundo Novo, no qual o autor apresenta-nos
uma sociedade totalitária do futuro em que as crianças
serão concebidas e gestadas em laboratório, na forma
de clones divididos em castas, cada uma delas destinada a finalidades
específicas.
Muito
antes de Huxley escrever seu apocalíptico romance, o termo
clone já tinha sido utilizado na ficção
científica. Ele aparece em 1915, na coletânea Master
Tales of Mystery by the World's Most Famous Authors of Today,
editada por Francis Joseph Reynolds. Apesar de ter sido cunhado
antes na ciência (em 1903 o substantivo clone é
utilizado pela primeira vez para batizar grupos de plantas exatamente
idênticos em sua composição genética),
os clones irão tomar notoriedade na literatura de fantaciência
e posteriormente no cinema onde serão por diversas vezes
o tema central do roteiro. Essa exploração insistente
por parte da cultura pop ao longo do século XX irá
instaurá-los definitivamente no imaginário dos povos
ocidentais.
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Mary
Shelley’s Frankenstein de
Kenneth Branagh
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Mas
antes dos clones, outra das mais novas realizações
da biotecnologia, a criação de seres híbridos,
já era explorada pela literatura fantástica. O romance
Frankenstein, escrito pela inglesa Mary Shelley, em 1816,
durante uma noite de insônia, apontado como o marco inicial
da ficção científica, nada mais é do
que a história da criação de um ser humano
híbrido, formado pela união de partes humanas retiradas
de diversos corpos. Na época em que foi escrito a ciência
ainda estava distante de desvendar a estrutura do DNA, mas até
hoje o romance demonstra sua atualidade servindo de metáfora
para ecologistas do Greenpeace
batizarem os biotecnólogos que desenvolvem pesquisas de hibridização
de genes humanos com animais para empresas de bioengenharia, eles
foram apelidados de "Cientistas-Frankenstein", numa alusão
ao "Dr. Victor Frankenstein", personagem do livro de Shelley responsável
pela criação do monstro. O romance questiona até
que ponto a ciência pode subverter a ética e desafiar
os princípios da natureza, subvertendo a ordem natural das
coisas. No final a criatura volta-se contra o criador, demonstrando
o posicionamento da autora em oposição à onipotência
da ciência. Frankenstein é uma das personagens com
mais adaptações para o cinema, somando a marca de
110 produções, onde se destacam o clássico
de 1921, dirigido por James Whale, tendo Boris Karloff no papel
da criatura, e Mary Shelley’s Frankenstein, de 1994, a adaptação
mais fiel ao romance, dirigida por Kenneth Branagh e com Robert
de Niro no papel do monstro.
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A
Ilha do Dr. Moreau em sua versão para o cinema
de 1996
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Além
de Mary Shelley, outro notório escritor de ficção
científica inglês, H.G.Wells, escreveu um romance onde
previa a possibilidade de hibridizar características humanas
e animais, refletindo sobre as implicações de tais
experimentos. A Ilha do Dr. Moreau foi escrito em 1896. No
romance, Wells narra a história de um cientista que se isola
em uma ilha deserta para realizar experimentos de hibridização
de espécies animais com a humana, objetivando a criação
de "humanos superiores", os resultados de seus experimentos são
criaturas bestiais e incontroláveis e, mais uma vez, como
em Frankenstein, o criador é destruído
por suas criaturas, reforçando a mensagem moral de que a
ciência não deve subverter os limites impostos pela
natureza. Duas versões para o cinema ficaram notórias,
o clássico de 1933, dirigido por Erle C. Kenton, com Bela
Lugosi no elenco e a versão moderna de John Frankeinheimer,
tendo Marlon Brando no papel do Dr. Moreau, nesse filme de 1996
a questão da hibridização dos seres é
apresentada na forma de experiências genéticas, e a
fita de DNA é explorada como elemento estético na
impressionante seqüência de abertura.
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A
Mosca da Cabeça Branca, em sua versão de
1958, refilmada em 1996 por David Cronenberg
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A
hibridização genética é também
o tema central do clássico moderno do cinema de ficção
científica A Mosca, dirigido pelo polêmico cineasta
canadense David Cronemberg em 1986, o filme conta a história
de um cientista envolvido com a criação de um aparelho
que permite teletransportar seres vivos, empolgado com sua invenção
ele resolve ser cobaia do próprio invento, mas durante sua
teleportação seus genes se unem aos de uma mosca que
havia entrado na máquina sem que ele percebesse, após
sair do aparelho o cientista irá passar por uma transformação
gradual, adquirindo as formas e hábitos de uma mosca. O filme
é um remake baseado na versão de 1958, dirigida por
Kurt Neumann (com Vincent
Price no papel do cientista) e intitulada A Mosca da Cabeça
Branca, entretanto no filme de Neumann a transformação
era parcial e imediata, enquanto que na versão de Cronemberg
a fusão a nível genético promove uma deformação
lenta e total da personagem; mais uma vez as implicações
de uma hibridização entre humano e animal são
representadas pelo surgimento de uma criatura grotesca e deformada,
novamente a transgressão da ciência traz conseqüências
aterradoras.
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Talvez
a produção mais bem cuidada do cinema a tratar do
tema da engenharia genética seja o polêmico e instigante
GATTACA (veja resenha),
produção norte americana de 1997, dirigida por Andrew
Niccol, com Uma Thurman e Ethan Hawke no elenco. O filme mostra
a humanidade num futuro não muito distante onde as características
genéticas dos futuros bebês poderão ser manipuladas
geneticamente, visando a geração de humanos superiores,
criando uma nova forma de eugenia, que desta vez não será
baseada na raça ou na cor da pele, mas sim nas características
genéticas de cada um, criando uma nova espécie de
excluídos: os humanos nascidos a partir de uma relação
sexual, batizados no filme de "degenerados".
No prólogo do livro De Volta ao Éden – Engenharia
Genética, Clonagem e o Futuro das Famílias, também
de 1997, o autor Lee M. Silver nos apresenta um vislumbre de um
futuro muito semelhante ao visto em GATTACA, nele surgirá
uma nova espécie, criada a partir de sucessivas manipulações
genéticas visando a melhoria das características dos
filhos da classe social mais abastada (que poderá pagar por
essas modificações), a essa espécie ele dá
o nome de "genricos", e essas pessoas estarão no topo da
pirâmide social. São previsões catastróficas
que mais uma vez nos remetem ao Admirável Mundo Novo
de Huxley, mas a verossimilhança e detalhismo com que é
desenvolvido o filme de Niccol, onde um degenerado tenta burlar
as regras eugênicas da sociedade para ser piloto de foguetes,
usando como subterfúgio amostras de material genético
de um "genrico" que ficou paraplégico, faz-nos questionar
seriamente a possibilidade dessas previsões virem a tornar-se
realidade no futuro. O nome GATTACA, foi inspirado pelas
iniciais das bases que compõem o DNA: Guanina, Adenina, Timina
e Citosina.
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Alba
- Arte transgênica de Eduardo Kac
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Mas
não é só no cinema que os seres híbridos
são motivos de reflexão, outras formas de arte também
apresentam experiências nessa área, talvez o exemplo
mais radical seja o do artista de vanguarda brasileiro Eduardo Kac,
atualmente residindo nos EUA, ele realiza suas obras com o auxílio
de equipes multidisciplinares no Departamento de Arte e Tecnologia
do Instituto de Arte de Chicago, onde é professor. Kac é
considerado por muitos um dos pioneiros da arte biotecnológica
ou transgênica. Um de seus trabalhos mais polêmicos
é Alba, um coelho transgênico, criado a partir do enxerto
de um gene extraído de uma medusa que habita o oceano Pacífico,
o resultado é um coelho que emite luz fluorescente esverdeada
quando exposto à luz ultravioleta, Kac diz estar criando
uma das primeiras quimeras do mundo real, resgatando o mito grego
da quimera – um animal formado pela junção de partes
de diversas espécies. Como parte de seu projeto artístico,
Kac intencionava levar Alba para o convívio de seu lar, transformando
a coelha (Alba é fêmea), no primeiro animal de estimação
transgênico do mundo, entretanto ele foi impossibilitado de
levar esse intento a cabo devido às ordens dos cientistas
envolvidos no projeto, já que Alba deve ficar restrita aos
limites do laboratório, pois de outro modo pode haver a chance
de se reproduzir, gerando resultados imprevisíveis.
Na
década de noventa o autor Michael Crichton escreve Jurassic
Park (O Parque dos Dinossauros), filmado em 1993 por
Steven Spielberg, transformando-o em grande sucesso de bilheteria.
No filme diversas espécies de dinossauros são ressuscitados
a partir da clonagem resultante de células sangüíneas
encontradas no corpo de um mosquito jurássico conservado
em âmbar, como de praxe, novamente os cientistas (e nesse
caso também um magnata interessado em lucrar com as criaturas)
pagarão um alto preço por tentarem sobrepujar o curso
da história natural. O tema da clonagem tornou-se mais freqüente
depois do episódio Dolly e muitas produções
cinematográficas passaram a enfocá-lo sem contudo
acrescentar muito, atendo-se a clichês já desgastados,
esses são os casos dos filmes Replicante
(2001), com Jean Claude Van Dame no papel principal, O 6º
Dia (2001), com Arnold Schwarzenegger, e também da novela
da rede Globo O Clone, escrita por Glória Perez, produções
que pouco ou nada acrescentam, investindo no sensacionalismo e aproveitando-se
da notoriedade do tema.
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A
consternação de Ripley diante de seus clones
fracassados em Alien Resurrection
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Dentre
as películas recentes tratando do tema clonagem, uma das
mais contundentes foi Alien Ressurection (1997), quarta seqüência
do notório filme Alien, de Ridley Scott (1979), dirigida
pelo francês Jean-Pierre Jeunet e contando com Sigourney Weaver
e Winona Ryder no elenco. O filme tem como mote principal a recriação
da tenente Ripley que havia morrido no filme anterior, através
de uma clonagem de seu DNA, mas o motivo da clonagem é recriar
também um espécime do alienígena, já
que Ripley estava grávida do Alien quando se suicidou. A
cena mais impressionante do filme é quando a personagem descobre
o laboratório de clonagem da nave, dentro dele estão
conservadas, vivas ou mortas,
várias das criaturas deformadas que resultaram das tentativas
de cloná-la, demonstrando que para obter o resultado esperado
muitos experimentos fracassados tiveram que ser realizados; a seqüência
parece ser uma citação quase explícita aos
perigos de se clonar um ser humano, apresentando monstruosidades
como possíveis resultados de tal empreitada. É claro
que no filme o DNA de Ripley está corrompido, pois possui
traços do DNA do alien, mas esse fato é até
esquecido quando assistimos à consternação
e angústia da personagem Ripley diante de uma das criaturas
resultantes do processo de clonagem
fracassado, ela sente uma piedade arrasadora e resolve matá-la,
como se estivesse fazendo um favor para o clone deformado. Esta
é uma das mensagens anti-clonagem mais viscerais do cinema.
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Um
dos clones fracassados de Ripley
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Dois
outros filmes, um realizado, e outro ainda sem previsão de
ser produzido, criaram polêmica com seus roteiros envolvendo
clonagem, o primeiro é Os Meninos do Brasil, de 1978,
baseado no romance de Ira Levin , dirigido por Franklin J. Schaffner
e contando com as participações de Gregory Peck (como
o Dr. Mengele) e de Laurence Olivier, ele relata uma experiência
de criação de clones do ditador nazista Hitler, visando
a reestruturação do Nazismo e a criação
do 4º Reich, foi aclamado pela crítica e gerou discussões
sobre as possibilidades aterradoras de um experimento real de tal
envergadura. O outro filme é Clone (ou O Santo
Sudário), um projeto controverso, onde no roteiro alguns
cientistas tentam criar um clone de Jesus Cristo a partir do DNA
encontrado nas nódoas de sangue existentes no Santo Sudário,
tentando trazer o filho de Deus de volta para o nosso convívio.
A tentativa fracassa e algo terrível acontece. O cineasta
David Rolfe é o responsável pelo roteiro e direção,
entretanto o projeto, até onde sabemos, está parado
por falta de produtores interessados, já que o roteiro pode
vir a gerar enorme polêmica e problemas com autoridades religiosas.
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Birth
Machine - Escultura de H.R.Giger
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Curiosamente,
o artista plástico e designer H.R.Giger, responsável
pela criação do monstro de Alien, pelo qual
ganhou um Oscar, parece um entusiasta do tema clonagem, produzindo
diversas imagens onde bebês grotescos e disformes se amontoam
em paisagens lúgubres, ou ainda criando esculturas agressivas
e contundentes como Birth Machine (máquina de nascimentos),
onde um dispositivo semelhante ao de uma pistola, dispara pequenos
clones biomecânicos, talvez a versão mais grotesca
dos míticos clones produzidos em série descritos em
Admirável Mundo Novo de Huxley. Até a música
pop tem dedicado músicas ao tema da clonagem e biotecnologia,
a letra da música Biotech is Godzilla da
notória banda brasileira Sepultura, foi escrita pelo polêmico
e engajado Jello Biafra (ex integrante do grupo punk norte americano
Dead Kennedys), ela é um crítica ao que a biotecnologia
pode vir a criar: monstros como o ícone do cinema thrash
japonês Godzilla; outro grupo de rock brasileiro chamado Immunoaffinity,
trata do tema da clonagem em várias das músicas de
seu primeiro álbum intitulado Slaves of DNA (escravos
do DNA).
Um
de meus trabalhos, a HQtrônica (história em quadrinhos
eletrônica) NeoMaso Prometeu [veja notícia],
que recebeu menção honrosa no 13º Videobrasil – Festival
Internacional de Arte Eletrônica, trata de questões
éticas envolvendo a engenharia genética, nesse trabalho
questiono a visão utópica e fantasiosa de muitos cientistas
que acreditam que o avanço da ciência está diretamente
ligado ao avanço da humanidade, na história, a personagem
principal é um membro da elite geneticamente modificada do
futuro que compra órgãos artificiais para transplantá-los
em seu corpo, mas ele faz isso não porque precisa, mas sim
para que esses órgãos sejam esfacelados por robôs
num ritual de auto-flagelação, ele é um
masoquista assumido que sente prazer com esses atos e como é
muito rico sempre pode comprar novos órgãos, clonados
a partir de suas próprias células. Nesse caso os órgãos
clonados não são utilizados para auxiliar pessoas
que necessitam e sim para alimentar a tara doentia de um membro
da elite.
De
modo geral, a visão das artes em relação à
transgenia e à clonagem é negativista, a grande maioria
das obras apresenta essas possibilidades como uma ameaça
ao futuro da raça humana, ou colocam questões instigantes
sobre ética, moral e religiosidade envolvendo a realização
desses experimentos; o poder premonitório das artes já
anteviu a criação do primeiro clone humano e dos diversos
seres híbridos que aos poucos vão incorporando-se
ao nosso cotidiano – como no caso de alimentos transgênicos
que unem genética animal e vegetal – só esperamos
que as previsões fatalistas sobre onde estes experimentos
irão nos levar também não venham a tornar-se
realidade.
Edgar
Franco é arquiteto e mestre em multimeios. Site: www.geocities.com/ritualart.geo
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