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Clones e medos crônicos
Carlos Vogt

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Clonagem sob o olhar da religião
Artigos:
Nada contra a clonagem
Bernardo Beiguelman

Clones na mídia
Hélio Schwartsman

Humanos ao amanhecer
Ulisses Capozoli
Seres Híbridos & Clones: da literatura para as telas, das telas para a realidade
Edgar Franco
Poema:
Clones
Carlos Vogt
 
Bibliografia
Créditos
 

Seres Híbridos & Clones: Da Literatura para as Telas, das Telas para a Realidade

Edgar Franco

Muito já se falou sobre o poder de antecipação das artes, a literatura de ficção científica, sobretudo, revelou em proféticas e detalhadas descrições, futuros feitos da ciência como a viagem à lua, o surgimento dos submarinos e dos computadores pessoais; o design arrojado das espaçonaves da série de histórias em quadrinhos de Flash Gordon, desenhada por Alex Raymond na década de 30 chegou a servir de exemplo para auxiliar projetistas da Nasa a resolverem problemas de aerodinâmica dos foguetes. Autores como Julio Verne, H.G. Wells, George Orwel e Aldous Huxley passaram a ser lembrados por jornalistas, físicos, biólogos e outros cientistas em artigos acadêmicos que relatavam novas descobertas. Assim aconteceu quando foi noticiado o nascimento de Dolly, a primeira ovelha clonada, inaugurando uma nova fase da biotecnologia e trazendo à tona diversos questionamentos relativos à ética da clonagem. Nos primeiros dias após a divulgação da experiência muitos jornalistas, religiosos e cientistas lembraram, aterrorizados, das descrições do escritor inglês Aldous Huxley em seu mais notório romance Admirável Mundo Novo, no qual o autor apresenta-nos uma sociedade totalitária do futuro em que as crianças serão concebidas e gestadas em laboratório, na forma de clones divididos em castas, cada uma delas destinada a finalidades específicas.

Muito antes de Huxley escrever seu apocalíptico romance, o termo clone já tinha sido utilizado na ficção científica. Ele aparece em 1915, na coletânea Master Tales of Mystery by the World's Most Famous Authors of Today, editada por Francis Joseph Reynolds. Apesar de ter sido cunhado antes na ciência (em 1903 o substantivo clone é utilizado pela primeira vez para batizar grupos de plantas exatamente idênticos em sua composição genética), os clones irão tomar notoriedade na literatura de fantaciência e posteriormente no cinema onde serão por diversas vezes o tema central do roteiro. Essa exploração insistente por parte da cultura pop ao longo do século XX irá instaurá-los definitivamente no imaginário dos povos ocidentais.

Mary Shelley’s Frankenstein de Kenneth Branagh

Mas antes dos clones, outra das mais novas realizações da biotecnologia, a criação de seres híbridos, já era explorada pela literatura fantástica. O romance Frankenstein, escrito pela inglesa Mary Shelley, em 1816, durante uma noite de insônia, apontado como o marco inicial da ficção científica, nada mais é do que a história da criação de um ser humano híbrido, formado pela união de partes humanas retiradas de diversos corpos. Na época em que foi escrito a ciência ainda estava distante de desvendar a estrutura do DNA, mas até hoje o romance demonstra sua atualidade servindo de metáfora para ecologistas do Greenpeace batizarem os biotecnólogos que desenvolvem pesquisas de hibridização de genes humanos com animais para empresas de bioengenharia, eles foram apelidados de "Cientistas-Frankenstein", numa alusão ao "Dr. Victor Frankenstein", personagem do livro de Shelley responsável pela criação do monstro. O romance questiona até que ponto a ciência pode subverter a ética e desafiar os princípios da natureza, subvertendo a ordem natural das coisas. No final a criatura volta-se contra o criador, demonstrando o posicionamento da autora em oposição à onipotência da ciência. Frankenstein é uma das personagens com mais adaptações para o cinema, somando a marca de 110 produções, onde se destacam o clássico de 1921, dirigido por James Whale, tendo Boris Karloff no papel da criatura, e Mary Shelley’s Frankenstein, de 1994, a adaptação mais fiel ao romance, dirigida por Kenneth Branagh e com Robert de Niro no papel do monstro.

A Ilha do Dr. Moreau em sua versão para o cinema de 1996

Além de Mary Shelley, outro notório escritor de ficção científica inglês, H.G.Wells, escreveu um romance onde previa a possibilidade de hibridizar características humanas e animais, refletindo sobre as implicações de tais experimentos. A Ilha do Dr. Moreau foi escrito em 1896. No romance, Wells narra a história de um cientista que se isola em uma ilha deserta para realizar experimentos de hibridização de espécies animais com a humana, objetivando a criação de "humanos superiores", os resultados de seus experimentos são criaturas bestiais e incontroláveis e, mais uma vez, como em Frankenstein, o criador é destruído por suas criaturas, reforçando a mensagem moral de que a ciência não deve subverter os limites impostos pela natureza. Duas versões para o cinema ficaram notórias, o clássico de 1933, dirigido por Erle C. Kenton, com Bela Lugosi no elenco e a versão moderna de John Frankeinheimer, tendo Marlon Brando no papel do Dr. Moreau, nesse filme de 1996 a questão da hibridização dos seres é apresentada na forma de experiências genéticas, e a fita de DNA é explorada como elemento estético na impressionante seqüência de abertura.

A Mosca da Cabeça Branca, em sua versão de 1958, refilmada em 1996 por David Cronenberg

A hibridização genética é também o tema central do clássico moderno do cinema de ficção científica A Mosca, dirigido pelo polêmico cineasta canadense David Cronemberg em 1986, o filme conta a história de um cientista envolvido com a criação de um aparelho que permite teletransportar seres vivos, empolgado com sua invenção ele resolve ser cobaia do próprio invento, mas durante sua teleportação seus genes se unem aos de uma mosca que havia entrado na máquina sem que ele percebesse, após sair do aparelho o cientista irá passar por uma transformação gradual, adquirindo as formas e hábitos de uma mosca. O filme é um remake baseado na versão de 1958, dirigida por Kurt Neumann (com Vincent Price no papel do cientista) e intitulada A Mosca da Cabeça Branca, entretanto no filme de Neumann a transformação era parcial e imediata, enquanto que na versão de Cronemberg a fusão a nível genético promove uma deformação lenta e total da personagem; mais uma vez as implicações de uma hibridização entre humano e animal são representadas pelo surgimento de uma criatura grotesca e deformada, novamente a transgressão da ciência traz conseqüências aterradoras.

Gattaca, de Andrew Niccol

Talvez a produção mais bem cuidada do cinema a tratar do tema da engenharia genética seja o polêmico e instigante GATTACA (veja resenha), produção norte americana de 1997, dirigida por Andrew Niccol, com Uma Thurman e Ethan Hawke no elenco. O filme mostra a humanidade num futuro não muito distante onde as características genéticas dos futuros bebês poderão ser manipuladas geneticamente, visando a geração de humanos superiores, criando uma nova forma de eugenia, que desta vez não será baseada na raça ou na cor da pele, mas sim nas características genéticas de cada um, criando uma nova espécie de excluídos: os humanos nascidos a partir de uma relação sexual, batizados no filme de "degenerados". No prólogo do livro De Volta ao Éden – Engenharia Genética, Clonagem e o Futuro das Famílias, também de 1997, o autor Lee M. Silver nos apresenta um vislumbre de um futuro muito semelhante ao visto em GATTACA, nele surgirá uma nova espécie, criada a partir de sucessivas manipulações genéticas visando a melhoria das características dos filhos da classe social mais abastada (que poderá pagar por essas modificações), a essa espécie ele dá o nome de "genricos", e essas pessoas estarão no topo da pirâmide social. São previsões catastróficas que mais uma vez nos remetem ao Admirável Mundo Novo de Huxley, mas a verossimilhança e detalhismo com que é desenvolvido o filme de Niccol, onde um degenerado tenta burlar as regras eugênicas da sociedade para ser piloto de foguetes, usando como subterfúgio amostras de material genético de um "genrico" que ficou paraplégico, faz-nos questionar seriamente a possibilidade dessas previsões virem a tornar-se realidade no futuro. O nome GATTACA, foi inspirado pelas iniciais das bases que compõem o DNA: Guanina, Adenina, Timina e Citosina.

Alba - Arte transgênica de Eduardo Kac

Mas não é só no cinema que os seres híbridos são motivos de reflexão, outras formas de arte também apresentam experiências nessa área, talvez o exemplo mais radical seja o do artista de vanguarda brasileiro Eduardo Kac, atualmente residindo nos EUA, ele realiza suas obras com o auxílio de equipes multidisciplinares no Departamento de Arte e Tecnologia do Instituto de Arte de Chicago, onde é professor. Kac é considerado por muitos um dos pioneiros da arte biotecnológica ou transgênica. Um de seus trabalhos mais polêmicos é Alba, um coelho transgênico, criado a partir do enxerto de um gene extraído de uma medusa que habita o oceano Pacífico, o resultado é um coelho que emite luz fluorescente esverdeada quando exposto à luz ultravioleta, Kac diz estar criando uma das primeiras quimeras do mundo real, resgatando o mito grego da quimera – um animal formado pela junção de partes de diversas espécies. Como parte de seu projeto artístico, Kac intencionava levar Alba para o convívio de seu lar, transformando a coelha (Alba é fêmea), no primeiro animal de estimação transgênico do mundo, entretanto ele foi impossibilitado de levar esse intento a cabo devido às ordens dos cientistas envolvidos no projeto, já que Alba deve ficar restrita aos limites do laboratório, pois de outro modo pode haver a chance de se reproduzir, gerando resultados imprevisíveis.

Na década de noventa o autor Michael Crichton escreve Jurassic Park (O Parque dos Dinossauros), filmado em 1993 por Steven Spielberg, transformando-o em grande sucesso de bilheteria. No filme diversas espécies de dinossauros são ressuscitados a partir da clonagem resultante de células sangüíneas encontradas no corpo de um mosquito jurássico conservado em âmbar, como de praxe, novamente os cientistas (e nesse caso também um magnata interessado em lucrar com as criaturas) pagarão um alto preço por tentarem sobrepujar o curso da história natural. O tema da clonagem tornou-se mais freqüente depois do episódio Dolly e muitas produções cinematográficas passaram a enfocá-lo sem contudo acrescentar muito, atendo-se a clichês já desgastados, esses são os casos dos filmes Replicante (2001), com Jean Claude Van Dame no papel principal, O 6º Dia (2001), com Arnold Schwarzenegger, e também da novela da rede Globo O Clone, escrita por Glória Perez, produções que pouco ou nada acrescentam, investindo no sensacionalismo e aproveitando-se da notoriedade do tema.

A consternação de Ripley diante de seus clones fracassados em Alien Resurrection

Dentre as películas recentes tratando do tema clonagem, uma das mais contundentes foi Alien Ressurection (1997), quarta seqüência do notório filme Alien, de Ridley Scott (1979), dirigida pelo francês Jean-Pierre Jeunet e contando com Sigourney Weaver e Winona Ryder no elenco. O filme tem como mote principal a recriação da tenente Ripley que havia morrido no filme anterior, através de uma clonagem de seu DNA, mas o motivo da clonagem é recriar também um espécime do alienígena, já que Ripley estava grávida do Alien quando se suicidou. A cena mais impressionante do filme é quando a personagem descobre o laboratório de clonagem da nave, dentro dele estão conservadas, vivas ou mortas, várias das criaturas deformadas que resultaram das tentativas de cloná-la, demonstrando que para obter o resultado esperado muitos experimentos fracassados tiveram que ser realizados; a seqüência parece ser uma citação quase explícita aos perigos de se clonar um ser humano, apresentando monstruosidades como possíveis resultados de tal empreitada. É claro que no filme o DNA de Ripley está corrompido, pois possui traços do DNA do alien, mas esse fato é até esquecido quando assistimos à consternação e angústia da personagem Ripley diante de uma das criaturas resultantes do processo de clonagem fracassado, ela sente uma piedade arrasadora e resolve matá-la, como se estivesse fazendo um favor para o clone deformado. Esta é uma das mensagens anti-clonagem mais viscerais do cinema.

Um dos clones fracassados de Ripley

Dois outros filmes, um realizado, e outro ainda sem previsão de ser produzido, criaram polêmica com seus roteiros envolvendo clonagem, o primeiro é Os Meninos do Brasil, de 1978, baseado no romance de Ira Levin , dirigido por Franklin J. Schaffner e contando com as participações de Gregory Peck (como o Dr. Mengele) e de Laurence Olivier, ele relata uma experiência de criação de clones do ditador nazista Hitler, visando a reestruturação do Nazismo e a criação do 4º Reich, foi aclamado pela crítica e gerou discussões sobre as possibilidades aterradoras de um experimento real de tal envergadura. O outro filme é Clone (ou O Santo Sudário), um projeto controverso, onde no roteiro alguns cientistas tentam criar um clone de Jesus Cristo a partir do DNA encontrado nas nódoas de sangue existentes no Santo Sudário, tentando trazer o filho de Deus de volta para o nosso convívio. A tentativa fracassa e algo terrível acontece. O cineasta David Rolfe é o responsável pelo roteiro e direção, entretanto o projeto, até onde sabemos, está parado por falta de produtores interessados, já que o roteiro pode vir a gerar enorme polêmica e problemas com autoridades religiosas.

Birth Machine - Escultura de H.R.Giger

Curiosamente, o artista plástico e designer H.R.Giger, responsável pela criação do monstro de Alien, pelo qual ganhou um Oscar, parece um entusiasta do tema clonagem, produzindo diversas imagens onde bebês grotescos e disformes se amontoam em paisagens lúgubres, ou ainda criando esculturas agressivas e contundentes como Birth Machine (máquina de nascimentos), onde um dispositivo semelhante ao de uma pistola, dispara pequenos clones biomecânicos, talvez a versão mais grotesca dos míticos clones produzidos em série descritos em Admirável Mundo Novo de Huxley. Até a música pop tem dedicado músicas ao tema da clonagem e biotecnologia, a letra da música Biotech is Godzilla da notória banda brasileira Sepultura, foi escrita pelo polêmico e engajado Jello Biafra (ex integrante do grupo punk norte americano Dead Kennedys), ela é um crítica ao que a biotecnologia pode vir a criar: monstros como o ícone do cinema thrash japonês Godzilla; outro grupo de rock brasileiro chamado Immunoaffinity, trata do tema da clonagem em várias das músicas de seu primeiro álbum intitulado Slaves of DNA (escravos do DNA).

Um de meus trabalhos, a HQtrônica (história em quadrinhos eletrônica) NeoMaso Prometeu [veja notícia], que recebeu menção honrosa no 13º Videobrasil – Festival Internacional de Arte Eletrônica, trata de questões éticas envolvendo a engenharia genética, nesse trabalho questiono a visão utópica e fantasiosa de muitos cientistas que acreditam que o avanço da ciência está diretamente ligado ao avanço da humanidade, na história, a personagem principal é um membro da elite geneticamente modificada do futuro que compra órgãos artificiais para transplantá-los em seu corpo, mas ele faz isso não porque precisa, mas sim para que esses órgãos sejam esfacelados por robôs num ritual de auto-flagelação, ele é um masoquista assumido que sente prazer com esses atos e como é muito rico sempre pode comprar novos órgãos, clonados a partir de suas próprias células. Nesse caso os órgãos clonados não são utilizados para auxiliar pessoas que necessitam e sim para alimentar a tara doentia de um membro da elite.

De modo geral, a visão das artes em relação à transgenia e à clonagem é negativista, a grande maioria das obras apresenta essas possibilidades como uma ameaça ao futuro da raça humana, ou colocam questões instigantes sobre ética, moral e religiosidade envolvendo a realização desses experimentos; o poder premonitório das artes já anteviu a criação do primeiro clone humano e dos diversos seres híbridos que aos poucos vão incorporando-se ao nosso cotidiano – como no caso de alimentos transgênicos que unem genética animal e vegetal – só esperamos que as previsões fatalistas sobre onde estes experimentos irão nos levar também não venham a tornar-se realidade.

Edgar Franco é arquiteto e mestre em multimeios. Site: www.geocities.com/ritualart.geo

 

Atualizado em 10/12/2001

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