Clonagem
humana é debatida por juízes brasileiros
Todos
os indivíduos oriundos por clonagem,
serão outra coisa além de uma metástase
cancerosa - proliferação de uma mesma célula,
tal como acontece no câncer?
(Jean Baudrillard - A Transparência do Mal)
Estamos
na era das tecnologias de reprodução em série.
Produtos industriais, imagens, sons podem ser copiados e dar origem
a cópias idênticas. Empresas que detêm o biopoder,
não satisfeitas em produzir linhagens novas de animais, plantas
e micróbios, também querem reproduzir seres humanos.
O anúncio dos mais recentes progressos na técnica
da clonagem gerou uma reação em cadeia de norte a
sul do planeta. Paira no ar as maiores esperanças e as piores
ameaças. De certo, apenas uma imensa incerteza e inúmeros
questionamentos.
Dentre
eles, dois campos se sobressaem, o da ética e do direito.
A utilização da tecnologia genética reprodutiva
tem um impacto direto sobre a sociedade, a família e os critérios
de vida e morte. A questão que a clonagem do primeiro embrião
humano trouxe é que o ser humano, ao ser objeto de manipulação
genética, passa a ser também projeto e não
mais somente sujeito de direitos. Isso mexe profundamente com os
fundamentos da moral e da deontologia (tratado dos deveres) que
embasam os códigos jurídicos que regulam a conduta
humana.
Como
o direito implica valores e o homem não pode viver sem limites
e sem regras, é opinião geral que a justiça
tem um papel reservado na regulação dessa matéria
tão controversa. Para Eduardo Leite, advogado membro do Conselho
Executivo da International Society of Family Law, o direito deve,
seguramente, intervir no campo das técnicas biomédicas,
quer para legitimá-las, quer para proibir ou regulamentar.
Para José Fagundes Jr., advogado membro da Comissão
Especial de Bioética e Biodireito da OAB/SP, compete ao direito,
trabalhando as questões biotecnológicas e da engenharia
genética, a missão de criar leis que tratem desses
avanços, além de aperfeiçoar institutos como
a responsabilidade objetiva, onde os envolvidos nos processos deverão
se pautar, por razões óbvias, no mais amplo conceito
do que seja o respeito à dignidade do homem, devendo ser
descartadas condutas eticamente incompatíveis com essa condição,
como, por exemplo, experiências com seres humanos que resultassem
em aberrações.
Outra
questão bastante presente na preocupação dos
juristas, é que como a justificativa terapêutica da
genética que promete curar muitos males, será cada
vez mais difícil aceitar os imperfeitos, deficientes e incapacitados.
Segundo Matilde Carone Conti, advogada especialista em saúde
pública, na história da humanidade a discriminação
genética sempre esteve presente, pessoas com doenças
ou enfermidades são isoladas e até mesmo já
chegaram a ser eliminadas. Assim, não é possível
permitir que na sociedade futura surja um novo sistema de classes,
no qual os seres humanos serão diferenciados pelos seus genes,
pois caminharíamos para uma genetocracia que nos afastaria
dos valores éticos. O princípio da igualdade vigora
entre as pessoas e cada indivíduo tem direito ao respeito
à sua dignidade, qualquer que seja sua característica
genética.
No
processo de clonagem, prossegue Matilde, ficam pervertidas as relações
fundamentais da humanidade: a filiação, a consangüinidade,
o parentesco, a progenitura. Uma mulher pode ser irmã gêmea
de sua mãe, faltar-lhe o pai biológico e ser filha
do seu avô. Por isso, a manipulação da vida
deve ser feita dentro do marco referencial da cidadania, com preservação
da liberdade da ciência a partir do paradigma ético
da responsabilidade, servindo de guia para as questões conflitivas
e para aquelas novas situações que, certamente, vão
surgir em decorrência do desenvolvimento da clonagem.
O seminário
internacional Clonagem humana: questões jurídicas,
realizado em 12 e 13 de novembro passado, foi o primeiro na América
Latina e reuniu juristas, médicos e pesquisadores de vários
países do mundo, em Brasília, para discutir o assunto.
O evento, promovido pelo Conselho da Justiça Federal e realizado
no auditório do Superior Tribunal de Justiça, bateu
todos os recordes de inscritos e teve o objetivo de refletir sobre
os aspectos legais da clonagem humana e servir como preparação
para a futura repercussão política do assunto. Os
estudos sobre as implicações jurídicas da clonagem
caminham de forma mais lenta do que as pesquisas da ciência
médica.
Em
geral, a opinião dos juristas é que a investigação
científica é moralmente neutra, o que não possui
neutralidade é a utilização que dela se venha
a fazer, os fins e os interesses a que serve, as conseqüências
sociais de sua aplicação. A liberdade de investigação
encontraria, indubitavelmente, segundo eles, as suas fronteiras,
onde a experiência científica colide com os interesses,
valores ou bens jurídicos tutelados constitucionalmente.
A liberdade
de pesquisa é a regra mas, para os juristas não deveser
plena, total, irrestrita: deve sofrer as limitações
imprescindíveis para a integridade e a preservação
da pessoa, na sua dignidade. Tais limites devem estar, no entanto,
devidamente fundamentados e não podem ser inspirados por
preconceitos morais, religiosos, ou por sentimentos inconsistentes
de medo em relação à biotecnologia moderna.
A ética
não estaria atrasada em relação à ciência,
ao contrário são fartos os estatutos que amparam e
delineiam o campo de atuação das pesquisas, certos
cientistas é que buscariam praticar ciência dentro
de um contexto desatrelado de responsabilidade social.
A questão
não seria de vazio legal ou brechas de escape, porque estas,
para os juízes, vão existir sempre, em razão
da velocidade dos fatos contrapor-se ao tempo de normatização
dos mesmos. As pesquisas não deveriam ser paralisadas mas
deveriam respeitar sempre os limites éticos. A legislação
brasileira sobre a clonagem precisa estar em sintonia com as mais
modernas tecnologias disponíveis, respeitando sempre os princípios
da dignidade humana e evitando, com isso, que a vida do homem passe
a ser algo descartável na busca incessante de novas descobertas
científicas.
O ex-senador
e jurista Josaphat Marinho em palestra proferida no seminário,
disse que no seu entendimento, as leis brasileiras não permitem
a clonagem. Desde a Constituição até o projeto
de Código Civil aprovado recentemente pela Câmara,
a clonagem não é permitida. A pessoa não pode
dispor do corpo em vida, salvo para a hipótese de doação
de órgãos. "Eu não sou contra as pesquisas,
eu as elogio, mas saliento que elas têm que ter limites no
que se refere ao homem e seu corpo", afirmou.
Ao
encerrar o seminário, o vice-presidente do STJ, ministro
Nilson Naves, assinalou que é necessário que haja
muita reflexão e discussão, como as que aconteceram
no seminário, "a fim de mobilizar o legislador para
a criação de leis que aproximem a ciência da
vida ao direito e à ética, pois é sumamente
temerária, como já se disse por aí afora, a
possibilidade de se brincar com Deus".
O ministro
afirmou aos participantes do evento que o Brasil não está
ignorando a evolução da biotecnologia e, em especial,
da engenharia genética. "Nossa legislação
está apta a salvaguardar os direitos individuais e coletivos
de métodos e condutas impróprias, mercê da dignidade
da pessoa humana, representando aí um dos princípios
fundamentais da nossa República Federativa. Apesar de a Lei
nº 8.974/95, de iniciativa do então Senador Marco Maciel,
ser norma avançada, elaborada para, entre outros objetivos,
garantir o espaço das investigações científicas
e de seu desenvolvimento na área da engenharia genética,
tudo pautado por compromissos com a biossegurança, faz-se
necessária uma norma mais meticulosa para tratar da clonagem
terapêutica. Por outro lado, aquela norma legal já
tipifica como crime a manipulação genética
de células germinais humanas, isto é, da célula-tronco
responsável pela formação de gametas (apesar
de hoje em dia já se falar em clonagem tomando-se uma célula
comum!). Também é delito a intervenção
em material genético humano in vivo, exceto para o
tratamento de defeitos genéticos, respeitando-se os princípios
da autonomia e da beneficência".
Outro
ministro do STJ, Paulo Costa Leite, destacou que o Conselho Nacional
de Saúde aprovou a resolução 196, há
cinco anos, a qual prevê que as pesquisas envolvendo seres
humanos devam atender às exigências éticas e
científicas fundamentais, mas lembrou que os avanços
conquistados pela ciência criam, a cada dia, novas situações
não previstas pela legislação. Como, por exemplo,
se uma mulher doar algumas células para clonagem, um ser
humano for gerado a partir da célula original e a doadora
criar a criança. A criança nascida da experiência
será filha da doadora da célula ou sua irmã?
Se for considerada irmã, será gêmea?
Tentar
o enquadramento jurídico de situações como
essa, que são hipóteses decorrentes da nova tecnologia
da clonagem, que segundo a opinião de alguns cientistas já
pode ser feita em seres humanos, terão que ser previstas
pelo mundo jurídico. O exemplo acima poderia ser um episódio
concreto e as implicações jurídicas para os
familiares envolvidos na experiência genética seriam
inúmeras. Os casos de herança, partilha de bens, guarda
de filhos em caso de separação conjugal e diversos
outros, dependem do que for disposto na legislação.
Inúmeros
projetos de lei que visam regulamentar essas questões estão
sendo discutidos no Congresso Brasileiro. O deputado Dr. Hélio
(PDT-SP) foi o relator dos projetos que tratam da clonagem na Comissão
de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática
da Câmara dos Deputados. Inclusive, a Comissão promoveu
uma audiência pública para tratar do assunto em 18/04/2001
com representantes da comunidade científica, do governo e
da Igreja. Em pauta, o substitutivo que foi elaborado pelo Dr. Hélio
ao PL 2811/97, originalmente de autoria do deputado Salvador Zimbaldi
(PSDB-SP), que já tinha recebido um substitutivo na Comissão
de Defesa do Consumidor e proíbe a clonagem de seres humanos
e animais em todo o País, sob pena de prisão inafiançável.
Posteriormente, esse substitutivo que permite a manipulação
genética de células humanas com a finalidade de pesquisa
e produção de tecidos ou órgãos para
transplantes, foi aprovado pela Comissão em 19/09/2001.
Essa
proposta impede o desenvolvimento de pesquisas genéticas
que envolvam células totipotentes (retiradas de embriões
vivos, fecundados por inseminação artificial, posteriormente
sacrificados), possibilitando os estudos das células pluripotentes
(células retiradas de seres humanos nascidos, cujos órgãos
estão maduros e aptos à reprodução em
ambientes químicos favoráveis, in vitro, ou
em animais). Essas células poderiam ser implantadas em vítimas
de queimaduras para desenvolver o tecido ou fibra muscular ou em
pacientes necessitando de transplante de córnea, coração,
rim e outros órgãos. Na ocasião, Dr. Hélio
afirmou que não mais é possível fechar os olhos
aos avanços mundiais nesse setor, permanecendo à margem
dele. Por isso, considera importante estabelecer uma base de segurança
às pesquisas, atribuindo-lhes limites e submetendo à
Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
(CTNBio) e à Comissão Nacional de Ética em
Pesquisa (Conep) a função de autorizar e fiscalizar
as experiências desenvolvidas no País. "Desde
que assegurados esses aspectos, em no máximo duas décadas
poderemos dispor de um banco de tecidos e de órgãos
para transplantes", concluiu. Agora o projeto vai ser analisado
pela Comissão de Constituição, Justiça
e de Redação.
Em
outro projeto, de autoria do deputado Givaldo Carimbão (PSB-AL),
apresentado à Mesa da Câmara, é prevista prisão
para quem fizer experiências em clonagem humana. A proposta
modifica o Código Civil para punir os autores dessas experiências
com penas de 20 a 30 anos de prisão.
A legislação
existente é suficientemente flexível para regular
as questões relativas à clonagem, e nos casos em que
não for, deve-se regulá-la rapidamente, ajustando-aàs
novas conquistas da tecnologia.
É
por isso que neste cenário o que deve prevalecer são
os princípios, sobretudo, o da razoabilidade, que vai pautar
as condutas, e o da aplicabilidade. São cinco os direitos
fundamentais que delimitam qualquer investigação científica:
o direito à vida; o direito à dignidade humana; o
direito à intimidade; o direito à igualdade e à
não discriminação; o direito à liberdade.
Em torno deles há um vasto universo de disposições
e enunciados da ciência jurídica, demonstrando que
o direito está atento e procurando soluções.
(M.
P.)
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