Polêmica
também envolveu primeiro bebê de proveta
Há
23 anos atrás, mais exatamente em 25 de julho de 1978, o
nascimento do primeiro bebê de proveta levantou muitas das
questões que retornam agora com a clonagem do primeiro embrião
humano. Tendo em mente principalmente o futuro nada agradável
imaginado por Aldous Huxley - em 1932 -, na ficção
científica Admirável Mundo Novo, os temores
de que alguma catástrofe biológica pudesse acontecer
eram semelhantes aos de hoje. Bebês deformados, surgimento
de uma nova sub-classe geneticamente planejada, barrigas de aluguel,
foram algumas das imagens invocadas por cientistas, religiosos e
jornalistas que repercutiram na mídia. Também fizeram
parte nessa época interesses comerciais e de projeção
pública de cientistas, médicos e empresários.
Segundo
informam os historiadores Ana Maria Ribeiro de Andrade e José
Leandro Rocha Cardoso no artigo "Aconteceu,
Virou Manchete", a revista Manchete, até
o início da década de sessenta, se constituiu
em um espaço privilegiado da divulgação
científica.
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A revista
Manchete, uma das principais publicações semanais
da década de setenta, acompanhou vivamente o nascimento e
os primeiros dias da inglesa Louise Joy Brown, a primeira criança
resultado de fertilização in vitro. Foi Manchete
quem comprou as fotos e reportagens exclusivas do Daily Mail,
tablóide inglês que pagou a Lesley Brown, a mãe
de proveta, £$ 325 mil (ou US$ 565 mil) pelas primeiras imagens
do bebê.
Mas
a reportagem que anunciou através das páginas de Manchete
a iminência do nascimento do "Bebê de proveta,
o milagre do século" - título da matéria
de 5 de julho de 1978 - veio da revista Time. "Para
alguns é o nascimento mais esperado dos últimos 2000
anos" anuncia em seu subtítulo.
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Uma
das primeiras fotos de Louise Joy Brown publicadas pelo Daily
Mail
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Com
um pouco de ciúmes do "furo" jornalístico
comprado pelo tablóide inglês, a reportagem de Time,
reproduzida por Manchete, descreve o cerco da mídia
que se formou em torno da clínica dos doutores Patrick Steptoe
e Robert Edwards, na Inglaterra. Lá estava hospedada Lesley
Brown, a dona de casa de 30 anos que se escondia das câmeras
da imprensa mundial para cumprir o acordo com o Daily Mail.
No
texto, busca-se a opinião de especialistas e da imprensa,
e o temor que o experimento fracassasse se misturava à esperança
de benefícios para a pesquisa e aos alertas da ficção
científica. "Poderíamos ter fazendas de bebês,
crianças produzidas em massa, 1984 seis anos mais
cedo", exclamava o editor do tablóide sensacionalista
inglês Daily Express. Na visão do editor se
misturam o romance de George Orwell, 1984, que descreve uma
sociedade totalitária vigiada permanentemente e o Admirável
Mundo Novo de Huxley, que descreve igualmente uma sociedade
totalitária, mas dividida em castas com diferenças
genéticas planejadas. No livro de Huxley, o totalitarismo
se estrutura através da ciência (com bebês de
proveta, engenharia genética e "soma" a droga da
felicidade) enquanto que na obra de Orwell a repressão acontece
de forma violenta e policialesca.
Os
cientistas mostram opiniões mais comedidas. Segundo a reportagem,
muitos antevêem que a técnica "pode dar aos pesquisadores
um importante instrumento novo de laboratório para descobrir
caminhos no tratamento de doenças genéticas, testar
outros métodos anticoncepcionais e - o que talvez seja mais
importante - estudar de perto um dos processos mais aterradores
da natureza: os primeiros movimentos da vida". O discurso é
semelhante ao que vemos hoje, em que se ressalta a importância
da pesquisa com a clonagem para que surjam novas soluções
no campo da medicina.
Contudo,
também há precaução como a demonstrada
pelo médico John Marshall, que se pergunta sobre qual seria
o procedimento se a técnica desse origem a um monstro - "um
ciclope, por exemplo", imagina. Já o prêmio Nobel
James Watson foi mais preciso em sua visão de futuro e alertava
sobre a possibilidade de surgirem "mães de aluguel".
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Louise
Joy Brown ao ar livre - "O verde e o ar puro são
bons para as crianças. De proveta ou não.",
diz a revista Manchete em 16 de setembro de 1978.
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Nas
semanas seguintes ao nascimento de Louise Brown, as reportagens
do Daily Mail compradas pela revista Manchete procuram
mostrar como a criança nasceu sem deformidades e a experiência
foi um sucesso. "Vou criar minha filha como um bebê normal"
é o título da reportagem que acompanha as primeiras
fotos do bebê de proveta. O texto procura mostrar como a mãe
é uma modesta dona de casa e conta curiosidades como a proposta
de casamento que Louise teria recebido de um rapaz do Oriente Médio.
Duas
semanas depois, na reportagem "Louise: o bebê do século",
também comprada do Daily Mail, a ênfase é
na importância da maternidade para a mulher e para o casamento.
"Não passariam de testemunhos vivos de meu fracasso
como esposa" diz Lesley Brown sobre a hipótese de adoção
de um filho. Também é enfatizada a importância
da ciência médica para a felicidade dos casais, em
uma mistura que contém religião e fantasia. "O
mago por trás desse milagre..." é como a reportagem
descreve o ginecologista Steptoe. "Uma menina bonita, perfeita,
vivaz, que é o fruto de um verdadeiro milagre científico
deste admirável mundo novo com que nem mesmo a fantasia de
Aldous Huxley sonhara tão cedo e tão perfeito",
empolga-se o autor do texto, que termina pedindo o prêmio
Nobel para os autores do experimento. Pouco tempo antes a reportagem
da Time alfinetava Steptoe dizendo que as verbas para seus
experimentos tinham sido conseguidas na época em que ele
realizava abortos ilegais.
Com
menos empolgação e mais distanciamento, o semanário
Isto É também relatou a façanha. Ligada
prioritariamente a assuntos da política, a conquista mereceu
da revista apenas um texto em 2 de agosto de 1978. O autor relata
a briga pela notícia, o negócio acertado entre a mãe
e o Daily Mail e o crescente debate em torno da questão.
Segundo ele, algumas autoridades médicas acharam que era
uma experiência irresponsável e a Associação
Médica Britânica manifestou-se a favor de experiências
com animais ao invés de ser usada uma cobaia humana. No entanto,
para o autor, a Associação estaria escondendo seu
orgulho por ter sido uma conquista britânica. O título
da matéria é "Foi a mais badalada gravidez do
mundo - o mundo melhora com esse bebê de proveta?" e
questiona os impactos práticos da pesquisa no bem-estar da
sociedade.
"(...)
Em vez de ficarem selecionando de 5 em 5 anos, na nata das
personalidades do sistema, um puro-sangue, um super-homem,
para fecundar a nação, por que eles não
convocam logo os 110 milhões de brasileiros e recolhem
o voto, digo, sêmem deles todos? Já pensou,
mãe? a dona Lesley vai ter vergonha de ter feito
esse barulho todo com seu bebezinho de dois quilos e seiscentos
gramas quando vir nascer a nossa democracia de nove milhões
de quilômetros quadrados!"
Henfil,
na Isto é de 02/08/1978, em uma de suas Cartas
à Mãe
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Na
mesma edição de Isto É o bebê
de proveta é o gancho para que Henfil, em uma de suas cartas
à mãe, fale da abertura democrática prometida
pelo presidente militar Ernesto Geisel e que demorava a chegar.
O país vivia a escolha, que aconteceria nos altos escalões
militares, entre os generais Euler Bentes Monteiro e João
Baptista Figueiredo para ocupar a presidência. Henfil comparava
o bebê de proveta com o voto/sêmem, que queria que fosse
recolhido dos então 110 milhões de brasileiros, e
que geraria a democracia.
Na
semana seguinte, em 8 de agosto, o jornalista Cláudio Weber
Abramo voltava ao assunto bebê de proveta para desdenhar da
técnica (que considera déja vu) e do alarde
feito. Segundo ele, o futuro estaria na engenharia genética,
que iria poder alertar os pais do futuro sobre o sexo e possíveis
doenças do bebê, geraria animais melhores para o consumo
(com mais carne) e, talvez, como na ficção científica,
poderia criar novos tipos de humanos - mais fortes, altos e bonitos
ou, tragicamente, "imbecis para cumprir tarefas especiais,
operários semiconscientes ou carne-de-canhão".
Passados
23 anos desde o nascimento do primeiro bebê de proveta, novamente
muitos dos medos, alarmes e fantasias são rearticulados e
recolocados tendo, agora como perspectiva a clonagem de um ser humano.
Ao que parece, longe de terem sido postos de lado, as questões
apenas ressurgem com alguns novos elementos e reavivando outros.
Alguns dos temores éticos - como o surgimento de "barrigas
de aluguel", se concretizaram. Outros ainda podem estar por
vir. E a pergunta feita pela Isto É ainda vale - o
mundo melhora com a clonagem humana?
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