Humanos
ao Amanhecer
Ulisses
Capozoli
Se a ficção científica for lida como história
do futuro, a clonagem humana é um evento tão previsível
como o próximo eclipse do Sol. As evidências disso
estão no passado. Durante o século 18, a idade de
ouro dos autômatos, tentou-se, com base em recursos de relojoaria,
forjar criaturas capazes de repetir os mínimos movimentos
de homens e animais. Foi um esforço mecânico na reprodução
da Natureza.
Pode
parecer ingênuo, mas a verdade é que engenho e arte
combinaram-se com resultados surpreendentes. Na França, Jacques
de Vaucanson (1709-1790) foi um dos construtores de seres artificiais.
Seu famoso pato encantou os visitantes da exposição
de Paris, em 1738. O animal mecânico de Vaucanson imitava
todos os movimentos de um pato natural, incluindo a alimentação
e apenas uma asa tinha mais de 400 peças articuladas. Além
do pato, seu tocador de flautas era capaz de executar doze diferentes
trechos musicais.
Vaucanson
foi apenas um, num conjunto crescente de criadores de autômatos,
como Joseph Faber (1800-1850) ou Thomas Edison (1847-1931), o conhecido
inventor norte-americano, pai da lâmpada elétrica incandescente.
As
criaturas mecânicas de Faber faziam perguntas e ofereciam
as respostas. As bonecas falantes de Edison encantaram adultos mais
que crianças. Um "homem-vapor", desenvolvido em
1893 por um certo George Moore, caminhava com o dobro da velocidade
de um humano: 14 quilômetros por hora. No século 17,
um oficial conhecido por De Gennes construiu um pavão que
tanto caminhava, como o homem de Moore, como ingeria alimentos,
caso do pato de Vaucanson.
Como
acontecia nos navios, onde boa parte dos comandantes tinha, em sua
cabine, uma mulher-boneco, a "mulher do capitão",
para satisfazer seus desejos em alto-mar, também em terra,
no libertino século 18, foram desenvolvidos autômatos
com finalidades sexuais. Tudo isso animado pelos movimentos de um
árvore dentada, peça talhada para produzir uma seqüência
de movimentos previamente definidos num sistema de engrenagens.
Talvez
valha a pena lembrar que no século 18 um legado cartesiano
descrevia o mundo como um gigantesco mecanismo de relojoaria. Era
a cosmologia da época. E cosmologia, mais que uma descrição
de como o Universo nasceu e evolui, é a imagem que cada época
plasma da experiência de estar no mundo.
O ataque
mais agressivo à cosmologia mecânica do cartesianismo
foi feito por Isaac Newton, com a gravitação universal.
Um sistema mecânico não combina com forças agindo
à distância, sem qualquer materialidade aparente, caso
da gravitação.
A
criação de seres artificiais tem sido naturalmente
associada, por historiadores da ciência, ao desenvolvimento
dos computadores, no século 20. Mas, certamente, pode-se
encontrar aí também um sinal da solidão humana.
Pigmaleão, jovem rei de Chipre, segundo relata Ovídio,
moldou, com as próprias mãos, uma estátua de
marfim pela qual apaixonou-se. Seu sofrimento só foi contido
pela intervenção de Afrodite, deusa do amor, que deu
vida à criação.
Ao
concluir a escultura de David, Michelangelo ordenou que falasse.
Como muitos, ele também escolheu a palavra para humanizar
inteiramente suas criações. Se essas obras, por muitas
razões, não fossem todas portadoras de uma poderosa
atração, como entender a estranha emoção
de se aproximar da Pietá?
Não
só o passado recente, mas também a antiguidade, estão
povoados de seres artificiais, mostra o historiador da ciência
francês Philippe Breton. Homero localiza em Ilíada
a presença de "criadas de ouro" que ajudavam Hefaistos,
o deus aleijado a caminhar. E Hefaistos, com sua insuspeita restrição
física, é um criador de seres artificiais, trabalho
que executa em parceria com a deusa Atena, protetora da guerra,
das armas e da tecelagem.
Dédalo,
o famoso escultor cretense do século 7 antes de Cristo, foi
um dos precursores mais remotos do que, possivelmente venham a ser,
num futuro próximo, as clonagens humanas. Suas estátuas,
com olhos abertos, pernas bem separadas para caracterizar movimento,
braços estendidos, desfrutavam da crença de poderem
andar.
Breton
divide as criaturas artificiais em duas diferentes famílias:
as que realizam trabalho pesado e as supervisoras. São os
ancestrais dos robôs industriais e dos sistemas de controle
de qualidade. Além delas, refere-se aos homúnculos
e aos seres lógicos. Os homúnculos permitem que seus
criadores, masculinos, possam dispensar as mulheres para a continuidade
da espécie. Os seres lógicos são os avós
dos computadores.
Como
ocorreu com o jovem rei de Chipre, a criação de mulheres
artificiais tem sido um tema recorrente na ficção
científica, tanto em livro como no cinema. Neste caso, longe
de se tratar de pura misoginia, é uma evidência da
profunda solidão humana.
Phillipus
Aureolus Theophrastus Bombastus von Holenhein, o Paracelsus, médico
e alquimista suiço (1493-1541) foi um dos que se esforçaram
para assegurar a reprodução fora do útero materno.
Seus homúnculus são anões de aparência
desagradável com acesso a conhecimentos vedados à
condição humana. São gerados por uma combinação
de esperma e sangue, segundo uma velha tradição, partilhada
por Aristóteles e Plínio, baseada na idéia
de que toda espécie humana teve origem nos rins do primeiro
homem ou no ovário da primeira mulher.
Quanto
ao futuro e os relatos da ficção científica,
a obra mais perturbadora sobre clonagem humana certamente é
a novela de Philip Dick que Ridley Scott levou para o cinema, em
1982 com o título de Blade Runner - o Caçador de
Andróides. Na história, o blade runner Deckard
está encarregado da eliminação de andróides
que retornam à Terra para ampliar seus curtos períodos
de vida. O filme teve, curiosamente, duas versões. Em ambas,
Deckard apaixona-se por uma andróide e foge com ela para
o desconhecido. Numa nelas, fica a forte impressão de que
ele mesmo é um andróide.
Robert
Heinlein (1907-1988) autor de Stranger in a Strange Land,
em 1958, escreveu Methuselah's Children. O caso envolve as
"famílias Howard", um grupo de 100 mil pessoas
beneficiadas, por experiências genéticas, a chegarem
aos 150 anos de idade. Desmascarados em 2125, devem partilhar este
privilégio com os demais.
Ao
tratar da longevidade, via manipulação genética,
Heinlein se aproxima do universo de Philip Dick, onde o útero
humano foi, definitivamente, transferido para o laboratório.
Religiosos
e bioéticos, por razões diferentes, compreensíveis
e necessárias, estão na linha de frente do combate
ou, no segundo caso, ao menos numa condução humanista
para as pesquisas científicas relacionadas à clonagem.
Religiosos, de uma maneira geral, têm contra si o fato de
sustentarem, quase sempre, uma verdade definitiva para o mundo.
Isso levou à proibição de investigações
anatômicas, ao longo de praticamente toda a Idade Média,
período em que, no Ocidente, a racionalidade cedeu espaço
à teologia.
Os
bioéticos estão numa posição delicada.
Devem enxergar o futuro além dos condicionamentos especialmente
religiosos de hoje que, longe de refletir uma preocupação
com a humanidade do homem, temem que suas construções,
algo definitivas, desabem mais uma vez.
Se
a questão da humanidade dos homens for posta a nu, para uma
reflexão profundamente necessária, então a
partilha das riquezas da Terra deveria ser a primeira providência
para se eliminar injustiças inaceitáveis num certo
estágio de civilização. Quando pode-se, por
exemplo, construir radiotelescópios e assim entrar em contato
com outras possíveis inteligências da Galáxia.
Neste caso, um continente inteiro, como a África, teria seu
sofrimento amenizado pelo conhecimento da ciência. Esse seria
um passo de sete-léguas em direção à
humanização do homem, livre de sofrimentos antigos
como a fome, a sede e o frio. À ciência cabe diminuir
o sofrimento humano e não eliminar sua solidão, um
sentimento que nasceu com o homem e deverá acompanhá-lo
até o fim.
Perguntas
ingênuas querem saber se o clone de alguém é
ele próprio. Como isso poderia ser possível? Qualquer
identidade só pode resultar de um processo histórico,
específico a cada um dos fenômenos do mundo. No caso
de um clone, um fato histórico fundamental é que que
se trata de um clone. Este é o ponto de partida, ou de chegada,
faz pouca diferença.
Mas
isso, de forma alguma, deve sugerir que um clone seja menos humano.
A novela de Philip Dick, ele próprio um atormentado solitário,
é o melhor argumento para este ponto de vista. Os humanos,
de uma ou outra maneira, são todos clonados pelo tempo por
processos que transformaram órgãos inteiros, como
patas em mãos, tendo como fonte de energia a sexualidade.
Até agora, a Natureza foi a única responsável
por esticar tendões, reconfigurar músculos, eliminar
apêndices dispensáveis e substituir peles antigas,
grossas e peludas do corpo humano. A partir de agora, a ciência
também pode aprender a fazer isso: redesenhar o homem.
A reconfiguração
do homem tem muitos precedentes históricos preocupantes.
Mas acenar com os riscos do passado, para negar o futuro, certamente
não é a melhor maneira de se conduzir. As futuras
viagens espaciais, ainda neste século, vão exigir
novas condições de suas tripulações.
A pergunta, neste caso, é se é mais humano enviar
nessas longas jornadas pelo espaço -- em condições
de imponderabilidade, que esfacelam músculos, estruturas
ósseas e resistência cardíaca -- tripulações
geneticamente adaptadas ou tripulações, digamos, convencionais.
Tanto
o papa quanto o presidente norte-americano, George W. Bush, já
se disseram contrários à clonagem e, em quase todo
o mundo, os congressos criam leis para tentar vetar essa possibilidade.
Se a palavra do papa bastasse, Galileu não teria existido
enquanto um dos fundadores da ciência moderna, essa mesma
que quer reproduzir o homem. Quanto ao presidente dos Estados Unidos,
nem sempre um cowboy tem a última palavra. Em relação
aos congressos, desde a divisão dos poderes proposta por
Montesquieu, em 1748, a função do legislativo é
auscultar e atender às necessidades de novas demandas sociais.
Ao menos nas sociedades democráticas. E isso implica em uma
constante mudança de posição.
Uma
cobertura um tanto sensacionalista da mídia interpreta a
clonagem humana com um divisor de épocas, como o início
de uma nova era. Talvez venha a ser assim. De qualquer forma, a
história continua e, neste caso, a reprodução
do homem pelo homem será apenas mais uma manifestação
do novo.
O horizonte
de eventos, de qualquer maneira, como sempre, estará repleto
de possibilidades. Uma delas deve ser as máquinas de von
Neumann, mecanismos capazes de executar suas próprias concepções
e desenvolvimento. Qual o limite que uma máquina, um autômato,
um robô, pode atingir? No conto A Sentinela, que deu
origem ao 2001, Uma Odisséia no Espaço, Arthur
Charles Clarke confere sentimentos bem humanos a HAL, o computador
de bordo.
A fusão
homem-máquina, outro dos arquétipos recorrentes na
ficção científica, certamente é ainda
mais embaraçosa que a clonagem bioquímica. Mas nenhuma
delas pode ser considerada como uma dessacralização
do mundo. Este acontecimento, na verdade, se deu há quase
400 anos, quando Francis Bacon recomendou o domínio da natureza.
O mecanicismo reduziu a mitologia à época de uma pretensa
ingenuidade humana, como se agora vivêssemos a plenitude dos
tempos.
Os
clones podem ser o início de uma nova era, com alterações
radicais no nascimento e morte, os dois extremos da vida. Mas, neste
amanhecer ainda seremos humanos. Ao menos foi essa a promessa que
nos fez Philip Dick.
Ulisses
Capozoli é jornalista especializado em divulgação
científica é mestre e doutorando em ciências
pela USP e presidente da Associação Brasileira de
Jornalismo Científico (ABJC)
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