Regulação
ambiental como instrumento de política científica e
tecnológica: reflexões sobre o caso de uma refinaria de
petróleo
Adalberto
Mantovani Martiniano de Azevedo
A indústria de petróleo, responsável
pelo fornecimento de cerca de 40% da energia consumida no Brasil, tem
como característica marcante a geração de
significativos impactos sobre o ambiente em que realiza suas
operações e onde seus produtos são consumidos.
Desde a pesquisa de jazidas de petróleo, que pode comprometer
ecossistemas marinhos, até o comércio de derivados nos
postos, que podem vazar e contaminar solo e aqüíferos, a
enorme escala de operação dessa indústria, bem
como o maciço consumo de seus produtos, exige
atenção constante de instituições
responsáveis pelo controle ambiental das atividades
econômicas.
Entre os segmentos que compõe a indústria de
petróleo, o refino é responsável por grande parte
da poluição gerada por essa indústria. Os
processos utilizados para transformar o petróleo bruto em
derivados impactam diretamente a quantidade e a qualidade dos recursos
naturais das áreas de influência das refinarias. A qualidade
dos derivados
produzidos depende também dos tipos
de processos utilizados, que são fator determinante para as
características das
emissões geradas pela queima dos mesmos, destacando-se as
emissões de fontes móveis - geradas, em sua maioria, por
veículos movidos a gasolina e diesel (que responderam por 50,3%
do consumo total de derivados no Brasil em 2003).
Pode-se ter uma idéia da magnitude dos impactos dos
processos de refino examinando alguns números obtidos em uma
pesquisa sobre a Replan (Refinaria de Paulínia), a maior
refinaria brasileira. Construída nos anos 70, no âmbito de
uma política de desconcentração industrial que
entre outros objetivos visava minimizar a poluição
industrial na região metropolitana de São Paulo, a
refinaria encontra-se hoje em uma área de atenção
a problemas de poluição. Seus números
impressionam: produz 18 % de toda a gasolina e 22% de todo o diesel
consumidos no Brasil; seu faturamento bruto, em 2002, foi de R$ 18, 6
bilhões.
Igualmente impressionantes são os números
relacionados ao consumo de água da Replan. A refinaria tem
licença da Agência Nacional de Águas para captar
1870 m³ de água por hora do rio Jaguari, equivalente a
cerca de 6,5% do volume de água distribuída por hora na
Região Metropolitana de Campinas (RMC) para o consumo de 2,3
milhões de habitantes. O volume de esgoto (industrial e
sanitário) que a Replan está autorizada a lançar
por hora no rio Atibaia equivale a 2% do total de esgoto tratado por
hora na RMC.
O volume de emissões aéreas geradas na
refinaria, segundo levantamento realizado em 2005 pela Cetesb
(Companhia de Tecnologia e Saneamento Ambiental do Estado de São
Paulo) sobre a contribuição de 41 grandes empresas da RMC
na geração de poluentes industriais indica que, do total
de poluentes gerados, a Replan foi responsável por 93% das
emissões de monóxido de carbono (CO), 96% das
emissões de hidrocarbonetos (HCs), 52% dos óxidos de
nitrogênio (NOx), 78% dos óxidos de enxofre (SOx) e 28% do
material particulado (MP).
Além dos impactos locais, os tipos de processos
utilizados na refinaria são um dos fatores determinantes do
volume de emissões de veículos a diesel e gasolina,
especialmente no que diz respeito à capacidade desses processos
gerarem combustíveis com menores teores de enxofre. A queima de
combustíveis com altos teores de enxofre, além de gerar
óxidos de enxofre, prejudica a ação de
catalisadores de conversão de gases poluentes em
substâncias não-nocivas, instalados nos escapamentos. Cabe
aqui colocar que os fabricantes de veículos também
têm um papel a cumprir nessa frente, fornecendo motores adequados
ao combustível produzido. O quadro abaixo mostra a
contribuição das fontes móveis para a
poluição do ar na RMC
Fonte
|
Poluentes (%)
|
Diesel
(escapamento)
|
CO
|
HC
|
NOx
|
SOx
|
24,21
|
16,74
|
78,25
|
7,62
|
Gasolina
(escapamento)
|
38,37
|
17,14
|
9,75
|
4,46
|
Gasolina
(cárter/evaporativa)
|
-
|
27,65
|
-
|
-
|
Esses dois grupos de problemas têm sido alvo de medidas
de controle, cujas regras são colocadas na
legislação ambiental. Tais regras, como se
procurará demonstrar a partir do caso estudado na Replan,
têm grande impacto sobre a direção das escolhas
técnicas das refinarias.
Com relação aos impactos locais, existem
diversas regulações que determinam padrões gerais
para o consumo de recursos naturais e volumes de emissões,
além de regras da Agência Nacional de Petróleo
(ANP) específicas para refinarias. Destaca-se aqui as regras de
licenciamento ambiental (instituído pela Lei 6.938/81), que
prevêem que atividades potencialmente poluidoras (listadas na
Resolução Conama nº 001/86) devem se submeter a um
processo que inclui levantamentos preliminares de impactos
(condição para se obter o licenciamento prévio),
estudos sobre os riscos de operação (que possibilitam
obter a licença de instalação) e planos de
ação em situações de emergência
(condição para obter a licença de
operação). Antes desses procedimentos são exigidos
Estudos de Impactos Ambientais (EIA); concedidas as licenças,
são exigidos Relatórios de Impacto Ambiental (Rima).
Essas licenças têm um prazo de validade, fixado em
função das características do empreendimento: no
estado de São Paulo, as licenças das refinarias têm
duração de dois anos.
O licenciamento ambiental é realizado com base em
levantamentos de especificidades técnicas, econômicas e
sociais do empreendimento e de suas áreas de influência,
conduzido pelos órgãos ambientais competentes, e suas
regras são freqüentemente mais rigorosas do que as
colocadas pela regulação da atividade industrial em
geral. A Lei prevê que o órgão competente pode
exigir as melhores técnicas disponíveis, tornando-se
assim um instrumento de política que pode ir além do
controle de impactos ambientais, ao criar mecanismos de
indução à difusão de tecnologias
"ambientalmente corretas", com a conseqüente
intensificação da produção de conhecimento
científico e tecnológico na área.
As emissões geradas pelo consumo de derivados em
veículos são controladas no âmbito do Proconve
(Programa de Controle da Poluição do Ar por
Veículos Automotores), elaborado através da
colaboração entre instituições atuantes nos
setores de combustíveis e veículos. Cabe ao Proconve
analisar parâmetros de engenharia do veículo relacionados
à emissão de poluentes e definir testes para quantificar
as emissões. Os limites de emissões são definidos
em resoluções do Conama, a partir das quais a ANP fixa as
especificações dos combustíveis comercializados no
país. Essas especificações freqüentemente
exigem a adoção de modificações
significativas nos processos de produção de
combustíveis.
Vale lembrar que tanto as regras do licenciamento como a
fixação das especificações dos
combustíveis são elaboradas em fóruns
científicos, dos quais participam os diversos agentes
interessados e os órgãos oficiais de controle. No caso do
licenciamento, o entendimento entre a refinaria e o órgão
ambiental é estabelecido nos documentos de licenciamento
prévio e em termos de ajustamento de conduta, onde são
definidos a qualquer momento pelo órgão ambiental
padrões e prazos para a adequação de processos
produtivos. No caso do controle de emissões automotivas, os
entendimentos entre indústria e órgãos de controle
ocorrem em audiências públicas em que é discutida a
adequação das tecnologias de motores aos
combustíveis, e onde são estabelecidos prazos para a
adaptação gradual dos fabricantes aos padrões de
emissões determinados por lei. Assim, nos dois casos os
padrões são estabelecidos de maneira democrática,
em um processo que utiliza audiências públicas como
ferramentas de auxílio ao processo decisório, permitindo
que agentes econômicos e consumidores encaminhem suas
sugestões, identificando de maneira ampla aspectos relevantes do
problema tratado e dando publicidade, transparência e
legitimidade às ações do órgão
público. Além disso, as questões são
debatidas por especialistas em termos científicos, envolvendo
assim critérios de validação de resultados
bastante confiáveis.
Na Replan, verificou-se que tanto a regulação
dos impactos locais como a regulação relacionada à
qualidade dos combustíveis induziu a empresa a adotar
tecnologias "ambientais". Por exemplo, a Resolução Conama
n° 20/86 estabeleceu a concentração máxima de
5 mg/l de amônia no efluente lançado por indústrias
nos rios, o que exigiu adaptações no sistema de
tratamento de lodos ativados da Replan, a um custo de R$
4.800.000,00 e desenvolvidas pela Veolia Water Systems do
Brasil. Um
termo de ajustamento de conduta firmado entre a Replan e a Cetesb levou
à adoção de um terceiro estágio de ciclones
(redutores de emissões aéreas) em uma unidade de
craqueamento catalítico, desenvolvido pela empresa canadense
Marsulex
a um custo de R$ 11.500.000,00. Com relação à
melhoria da qualidade dos combustíveis, o Proconve
induziu um
programa de investimentos da Petrobras para a instalação
de Unidades de Hidrodessulfurização de Diesel (HDSs),
para cujo desenvolvimento foi licenciada tecnologia do Instituto
Francês de Petróleo (IFP), empresa junto à qual foi
desenvolvido no Cenpes (centro de pesquisas da Petrobras) programa de
desenvolvimento de tecnologias adequadas às
condições nacionais. Esse programa permitiu a
instalação de duas unidades HDS na Replan, uma em 1998 (a
um custo de US$ 200 milhões) e outra em 2004 (a um custo de US$
175 milhões). Os investimentos permitiram à Replan
produzir óleos diesel com os teores de enxofre cada vez menores
exigidos pela regulação, como o diesel metropolitano e o
diesel S500. Atualmente, a perspectiva de redução nos
teores tolerados de enxofre na gasolina levou a Petrobras a criar uma
carteira de projetos para implantar unidades de HDS de gasolina,
atualmente em fase de projeto junto ao IFP.
Nas duas frentes de atuação da
regulação- impactos locais e emissões automotivas-
verificam-se resultados positivos na redução da
poluição gerada, principal objetivo dessas
políticas e que traz como efeito secundário a
difusão de tecnologias "ambientais". Por exemplo, medidas de
gerenciamento e reuso de água permitiram, entre 1999 e 2002, uma
redução de 350 m³ por hora no efluente gerado pela
Replan, equivalente ao consumo de água de uma
população de 42.000 habitantes. As emissões de
veículos leves novos, em 2005, são em média 94%
menores do que as verificadas no início do Proconve,
em 1986.
Espera-se que as regras fixadas pelo programa para os veículos a
diesel permitam que, nas etapas finais, as emissões
desses veículos sejam quatro vezes menores do que no
início do programa.
As reflexões aqui apresentadas, tomando como exemplo o
caso de uma indústria extremamente poluidora, passam uma
idéia de otimismo tecnológico, baseada na crença
de que o desenvolvimento tecnológico, causa de inúmeros
problemas ambientais, é também a chave para a
resolução desses problemas. A esse otimismo
tecnológico, porém, acrescente-se também um
otimismo institucional, baseado na crença de que para que a
técnica se direcione à preservação do
interesse público, são necessários mecanismos de
controle socialmente construídos. Acredita-se também que
esses mecanismos vêm sendo aperfeiçoados pela
utilização da participação
democrática e de critérios científicos em sua
elaboração, permitindo a criação de
mecanismos legítimos de controle das atividades produtivas, que
se traduzem na ação de órgãos e na
aplicação de leis que têm o poder de induzir as
empresas a adotarem técnicas redutoras de problemas ambientais.
Esse tipo de regulação torna-se assim um importante
instrumento de política científica e tecnológica,
direcionando as escolhas técnicas para tecnologias "ambientais",
e criando incentivos à produção de conhecimento
científico e tecnológico nessa área.
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