Contaminação
ambiental e humana por chumbo no Vale do Ribeira (SP-PR)*
Bernardino R.
Figueiredo
É bem conhecido que a produção e o
aproveitamento inadequados dos recursos minerais podem ocasionar danos
ambientais duradouros e efeitos adversos à saúde dos
trabalhadores das minas e das populações residentes. Ao
longo do século passado ocorreu importante atividade de
mineração e refino de chumbo, zinco e prata no Alto Vale
do Ribeira (SP-PR). Os impactos dessa atividade na qualidade das
águas e sedimentos da bacia do Ribeira já foram descritos
em vários estudos nas últimas décadas.
Transcorridos dez anos desde que a refinaria de metal, Plumbum
(Adrianópolis, PR), encerrou as suas atividades e as
últimas minas de chumbo foram fechadas, permanecem o passivo
ambiental que foi deixado para trás e os riscos a que ainda
estão sujeitas as populações locais.
O desafio de avaliar cientificamente esses riscos ensejou a
realização de uma abrangente pesquisa sobre a
exposição humana ao chumbo nos municípios do Alto
e Médio Vale, Adrianópolis, Ribeira, Iporanga, Eldorado e
também na cidade de Cerro Azul (PR). Esta última, por
estar localizada fora da região de mineração, foi
escolhida como área de controle. Essa pesquisa envolveu a
participação voluntária de 472 crianças
(7-14 anos) e 523 adultos (15-70 anos) e foi previamente aprovada pelo
Comitê de Ética da Faculdade de Ciências
Médicas da Unicamp. Os resultados comprovaram que subsistem
problemas na região, entre os mais preocupantes, a
convivência de certos grupos populacionais com áreas
contaminadas, o que sugere a necessidade de ações de
intervenção ambiental e a realização de
campanhas de monitoramento humano periódicas.
Ambiente e saúde humana
O Vale do Ribeira abrange uma extensa área de 32
municípios com uma população de menos de meio
milhão de habitantes. A região hospeda parte
significativa dos remanescentes da Mata Atlântica e o mais
importante reservatório de água doce, ainda preservado,
à meia distância das metrópoles Curitiba e
São Paulo. O Vale do Ribeira atrai também pela beleza
natural de suas paisagens naturais e patrimônio cultural,
representado por suas comunidades ribeirinhas e litorâneas.
Vários estudos, realizados a partir da década
de 1980, comprovaram inequivocamente que a bacia do Ribeira foi muito
afetada pelas atividades econômicas levadas a efeito na
região, em especial, pela atividade de mineração e
metalúrgica no Alto Vale[1,2,3,4,5]. Esses efeitos tornaram-se
visíveis na contaminação dos sedimentos fluviais
por chumbo, zinco, cobre e arsênio, e, mais episodicamente, pelo
registro de concentrações excessivas de metais nas
águas superficiais. Conhecido o fato de que essa atividade
industrial deixara em sua esteira um importante passivo ambiental, com
o qual as populações da região teriam que lidar
por muito tempo, persistia a dúvida sobre as
conseqüências para a saúde das
populações residentes. Os resultados, obtidos de forma
inédita no Vale do Ribeira, não revelaram a
existência de situação alarmante em nenhum dos
municípios pesquisados, embora os níveis médios de
chumbo em sangue das populações dos municípios
mineiros tenham superado o valor médio obtido na cidade de
referência, Cerro Azul. Porém, em duas comunidades,
residentes nas proximidades da refinaria, com cerca de 100
famílias, 60 % das amostras de sangue apresentaram
concentrações de chumbo superiores a 10 milésimos
de grama por decilitro de sangue, limite máximo de boa
saúde, internacionalmente aceito. Aproximadamente 13 % das
amostras apresentaram concentrações de chumbo em sangue
superiores a 20, o que já impõe a adoção de
medidas de intervenção ambiental na área e
acompanhamento médico desses casos[6,7].
A pesquisa incluiu a análise de cádmio em
amostras de sangue e também de arsênio em amostras de
urina, porém os resultados que despertaram especial
preocupação foram os de chumbo. A
intoxicação humana por chumbo pode causar sérios
danos à saúde, em especial de crianças, variando
desde anemia, comprometimento funcional dos rins, fígado e
coração até danos cerebrais e retardamento mental.
Durante as colheitas de amostras biológicas,
questionários individuais foram preenchidos com dados
importantes para esse tipo de pesquisa como idade, sexo, tempo de
residência na comunidade, distância das minas e da
refinaria, consumo alimentar e outros hábitos como fumo e
bebida. O processamento estatístico desses dados revelou que em
todas as comunidades estudadas, os meninos apresentaram níveis
médios de chumbo em sangue superiores aos das meninas. Como os
meninos são mais suscetíveis a participar de jogos e
brincadeiras de rua do que as meninas, essa informação
foi sugestiva de que a via de exposição ao chumbo pudesse
ser o contato com poeira e solo superficial, como já observado
em outras partes do mundo, visto que nas comunidades mais afetadas as
ruas não são pavimentadas.
Outras informações extraídas dos
questionários indicaram que as crianças que se
alimentavam de verduras e frutas cultivadas nas suas casas apresentavam
níveis de chumbo em sangue mais elevados que os que declararam
não consumí-los. O consumo ou não de peixe dos
rios Ribeira, por outro lado, não influenciou significativamente
os valores médios de chumbo em sangue das
populações infantis estudadas.
Com respeito à população de adultos, os
níveis médios de chumbo em sangue acompanhavam
consistentemente as médias exibidas pelos grupos de
crianças. É importante observar que o chumbo tem uma
residência média no sangue bastante curta, de poucas
semanas, e que a sua presença em concentrações
elevadas no sangue revela exposição recente, ou seja, as
comunidades continuam convivendo com a contaminação mesmo
transcorridos vários anos desde o fechamento da
indústria.
Geoindicadores ambientais
Face aos dados de exposição humana recente ao chumbo no
Alto Vale do Ribeira surgiram naturalmente as perguntas sobre quais
são as prováveis fontes e vias de
contaminação. Para responder essas perguntas
vários estudos complementares de avaliação da
qualidade do ambiente foram levados a efeito e continuam sendo
realizados na região.
Antigos descartes de minas e depósitos de rejeitos
minerais, com altas concentrações de chumbo, encontram-se
expostos nas proximidades da Plumbum (Adrianópolis). Os
sedimentos do rio Ribeira nessa localidade ainda apresentam
concentrações de chumbo de até 175 partes por
milhão (1999)[7], valor inferior aos obtidos em pesquisas
anteriores, mas ainda bastante elevado.
A abundância de rochas calcárias no Alto Vale do
Ribeira é responsável por manter o pH das águas
superficiais acima de 8 e essa condição não
favorece a liberação dos metais pesados dos sedimentos e
dos rejeitos para as águas. Por isso, as amostras de água
do rio exibem baixas concentrações de chumbo, inferiores
a 10 microgramas por litro que é o limite máximo
permitido em água potável. Somado ao fato de que as
águas de torneiras das casas também apresentam baixos
teores de chumbo, chega-se à conclusão de que é
bastante improvável que a via de contaminação
humana por chumbo seja o consumo de água.
Uma via alternativa plausível, já observada em
outras partes do mundo, poderia ser o contato com solos superficiais e
poeiras contaminadas. As amostras de solo superficial, coletadas a
várias distâncias da refinaria, apresentaram
concentrações de chumbo variando de 21 a 916 partes por
milhão, aumentando em direção à planta
industrial. As amostras de solos de hortas residenciais também
apresentam chumbo em concentrações excessivas[7,8], fato
também observado em amostras de poeira coletadas no interior de
residências.
Dados mais recentes (2004-2005)[8], resultantes da
análise de certos alimentos consumidos pelas
populações, revelaram que, com exceção do
leite e milho, as concentrações de chumbo em ovos e em
várias espécies de verduras e de legumes, colhidos nas
hortas das comunidades próximas da refinaria, excedem os limites
estabelecidos pela legislação brasileira.
Comentários finais
O presente estudo revelou que, embora as atividades de
mineração e metalurgia tenham cessado em 1996, as
populações do Alto Vale do Ribeira ainda convivem com
várias fontes de contaminação ambiental, em
especial de chumbo, tipicamente originadas da atividade de
extração, beneficiamento e refino mineral. Os maiores
níveis de exposição humana ao chumbo ocorrem nas
comunidades localizadas nas proximidades da refinaria, município
de Adrianópolis (PR). As emissões de metais para
atmosfera, durante décadas de funcionamento da refinaria e
subseqüente deposição dos particulados, ocasionaram
a contaminação dos solos em áreas habitadas, sendo
bastante improvável que a via de contaminação
humana se deva ao consumo de água.
Essas populações hoje convivem com passivos
ambientais e encontram-se expostas a substâncias nocivas à
saúde, devendo ser, portanto, assistidas pelas autoridades de
saúde locais e estaduais bem como pelos órgãos
ambientais dos estados de São Paulo e Paraná.
A atividade de mineração e
produção de metais foi responsável por um
período transitório de prosperidade nos municípios
do Alto Vale do Ribeira e o seu declínio representou
também a queda do nível de renda e emprego para a
população local. Os índices de desenvolvimento
humano (idh) desses municípios, de acordo com o PNUD, são
os mais baixos do Vale do Ribeira e bem inferiores às
médias dos estados de São Paulo e Paraná. Os
diferentes indicadores sociais, como nível de renda, emprego,
investimentos industriais, educação, mortalidade infantil
e saúde pública, convergem para a
caracterização do Vale do Ribeira como relativamente
pobre, embora apresente maior dinamismo econômico em algumas
áreas mais vocacionadas para agricultura de banana,
comércio e turismo.
ssim, as medidas de intervenção ambiental em
certas áreas e de assistência à saúde das
pessoas, que se revelaram urgentes a partir destes estudos,
serão inócuas, caso não ocorra um esforço
por parte da população e gestores públicos para a
criação de alternativas apropriadas de
geração de renda e emprego na região, como
poderiam ser o agro-negócio, o comércio e o turismo.
Referências
[1] Tessler,G.M., Suguio,K., Robilotta, P.R., 1987. Teores
de alguns elementos traço metálicos em sedimentos
pelíticos da superfície de fundo da região Lagunar
Cananéia-Iguape. Simpósio Sobre Ecossistemas da Costa Sul
e Sudeste Brasileira, Cananéia, v.2, São Paulo, 255-263.
[2] Eysink,G.G.J., Pádua,H.B., Piva-Bertoletti,A.E.,
Martins,M.C., Pereira,D.N., 1988. Metais pesados no Vale do Ribeira e
Iguape-Cananéia. Ambiente: Rev.
Cetesb de Tecnologia, São Paulo, Brasil, 2 (1), 6-13.
[3] Cetesb, 1991. Companhia de Tecnologia de Saneamento
Ambiental, Relatório de Qualidade das Águas Interiores do
Estado de São Paulo. Série
Relatórios, São Paulo, Brasil.
[4] Cetesb,
2000. Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental.
Avaliação da qualidade do rio Ribeira de Iguape e
afluentes, CETESB, São Paulo, Brasil.
[5] Moraes, R.P.; Figueiredo, B.R.; Lafon, J-M. Pb-isotopic
tracing of metal-pollution sources in the Ribeira Valley, southeastern
Brazil, Terrae, vol 1(1),
2004, p: 26-33.
[6] Paolielo, M.M.B.; Capitani, E.M.; Cunha, F.G.; Matsuo,
T.; Carvalho, M.F.; Sakuma, A.; Figueiredo, B.R. 2002. Exposure of
children to lead and cadmium from a mining area of Brazil, Environmental Research, Section A
88, p: 120-128.
[7] Cunha, F.C. 2003. Estudos de geoquímica ambiental
no Vale do Ribeira, nos estados de São Paulo e Paraná, e
o impacto na saúde pública, Tese de Doutorado, Instituto de
Geociências, Unicamp, 111 p.
[8] Lammoglia T., Figueiredo B. R., Sakuma A. M., Buzzo
M.L., Okada I.A., Kira C. S. 2005. Ocorrência de chumbo em
alimentos e solos no Alto Vale do Ribeira. In: Congresso Brasileiro de
Geoquímica, X, SBGq, Porto de Galinhas, Anais.
* Artigo escrito a partir de informações
resultantes de projetos Fapesp no. 1996/7839-9 e 2002/0271-0 com a
participação de pesquisadores e profissionais do
Serviço Geológico do Brasil (CPRM), Instituto Adolfo
Lutz, Universidade Estadual de Londrina e Instituto de
Geociências e Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Estadual de Campinas. Mais informações em
http://www.ige.unicamp.br/geomed.
Bernardino R. Figueiredo é Professor Titular do Instituto
de Geociências, UNICAMP e é membro da Comissão "Geoscience
for Environmental Management (GEM)" da União Internacional das Ciências
Geológicas (IUGS).
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