Reportagens






 

O copyleft e o pensamento de Hannah Arendt
(continuação)

Pablo de Camargo Cerdeira

VIII. Uma interpretação do software segundo a separação arendtiana de atividades humanas

O software tradicional - conhecido também como software proprietário - é distribuído apenas em sua forma código-binário, o que não permite a análise de suas funções pelo homem. Ele não costuma acompanhar o seu código-fonte; este é, na grande maioria das vezes, um dos segredos industriais dos fabricantes de programas de computador. A base de sustentação econômica de tais empresas consiste em considerar o programa como objeto de consumo, coisificado ou reificado, segundo o pensamento de Hannah Arendt. Neste contexto o código-fonte é tomado como a receita de como produzir os bens de consumo e que deve ser mantido distante dos olhos dos concorrentes. Mas o código-fonte deve ser ocultado também, em um pensamento típico do homo faber, dos próprios usuários do programa, pois assim cria-se uma situação de dependência típica das relações de consumo, na qual uma parte detém os meios e a tecnologia necessária para a produção, e a outra parte tem apenas o interesse de utilizar tais produtos. Nos dizeres do professor Fábio Konder Comparato: "consumidores são aqueles que não dispõem de controle sobre bens de produção e, por conseguinte, devem se submeter ao poder dos titulares destes. (...) o consumidor é, pois, de modo geral, aquele que se submete ao poder de controle dos titulares de bens de produção, isto é, os empresários".

No momento em que a dependência da sociedade frente aos softwares se der via programas de computador que não tenham o seu código-fonte disponibilizado ocorrerá o fenômeno kafkaniano já citado do controle social realizado por normas secretas. Os atos humanos passam a respeitar balizamentos sem que seja possível conhecer as normas que os estabelecem, ou seja, as normas internas dos softwares. Esse é praticamente o quadro do mundo contemporâneo. A Microsoft produz os programas utilizados por mais de 90% das pessoas que usam computadores e a ninguém é dado o direito de conhecer o que tais programas efetivamente fazem quando executados. Atualmente a Empresa já libera o seu código-fonte em algumas situações especiais, principalmente para governos e faculdades, mas sempre com enormes restrições técnicas e contratuais.

IX. Software livre e software proprietário. Análise independente dos conceitos de Hannah Arendt

É preciso, antes de prosseguirmos, estabelecer quais as principais diferenças técnicas entre o software livre e o software proprietário, independentemente das idéias adotadas por Hannah Arendt, pois é assim que normalmente são tratados. A mesma separação se aplica também ao copyleft e ao copyright, pois aquele surge juntamente com a criação do software livre.

Iniciaremos pelo software livre. Richard Stallman, criador do conceito de copyleft e fundador do Projeto GNU e da Free Software Foundation, era um programador do Laboratório de Inteligência Artificial do MIT, acostumado, desde o início dos anos de 1970, a compartilhar os trabalhos desenvolvidos na área programação com uma comunidade de programadores que faziam o mesmo. No início dos anos de 1980, entretanto, uma nova administração do Laboratório impôs regras que impediam a troca de trabalhos realizados no MIT com outros programadores. Tal fato fez com que Stallman liderasse um projeto chamado GNU para a construção, primeiramente, de um sistema operacional - o programa básico que faz um computador funcionar - que fosse "livre". Por liberdade essa comunidade de programadores entendia quatro aspectos que se complementavam:

i. a liberdade de executar os programas sem qualquer restrição;

ii. a liberdade de alterar os programas, e para isso é necessário que o código-fonte acompanhe todas as distribuições;

iii. a liberdade de se redistribuir cópias dos programas;

iv. a liberdade de distribuir os programas com suas alterações.

Em janeiro de 1984 Stallman deixou o MIT para se dedicar exclusivamente ao desenvolvimento do software livre no Projeto GNU e em 1985 fundou, juntamente com seus colaboradores, a Free Software Foundation.

O conceito do copyleft surge logo após. Com o objetivo de garantir que o trabalho desenvolvido por essa comunidade aberta - já que qualquer interessado poderia ter acesso aos códigos-fonte e fazer alterações nos programas - fosse mantido livre e não fosse apropriado por empresas produtoras de softwares proprietários, a comunidade de desenvolvedores elaborou uma licença chamada GPL - General Public Licence -, que garante as quatro liberdades listadas acima e que impede a retirada de qualquer uma delas. Como o regime de proteção dos bens da propriedade intelectual relativa aos direitos de autor dos EUA é o copyright, resolveram chamar o seu sistema de licenciamento de copyleft para simbolizar a inversão de valores. Na verdade o copyleft se constitui dos mesmos direitos que o copyright, mas o detentor desses direitos os transfere a qualquer interessado, desde que este se comprometa a fazer uso das mesmas prerrogativas, sem poder retirar nenhum direito que recebeu do licenciador anterior.

Assim, em uma análise técnica - o termo técnico aqui diz respeito à visão do homo faber de Arendt - das características dos dois tipos de programas de computador, as principais diferenças entre os softwares livres e os softwares proprietários residem não apenas no fato de os primeiros terem seus códigos-fonte disponibilizados enquanto os segundos os mantém em segredo; no caso dos softwares livres é também garantida a liberdade de cópia, alteração e distribuição dos programas. Assim, o fato de softwares proprietários liberarem seu código-fonte para universidades ou governos apenas aproxima os dois sistemas em um de seus aspectos, mas mantém outros talvez ainda mais importantes distintos.

X. A expansão do copyleft para outras áreas da propriedade intelectual

Os softwares livres desenvolvidos segundo o conceito de copyleft se tornaram, em pouco tempo, muito mais complexos. Os programas livres ganharam documentação técnica, logotipia, nomes comerciais e outros desdobramentos que são também protegidos pelo copyright nos EUA. Da mesma forma que os programas em si, tais anexos também foram distribuídos de acordo com licenças copyleft específicas para cada tipo de bem, como a FDL - Free Documentation Licence da GNU. Um dos exemplos mais difundidos de marca comercial copyleft é o próprio nome GNU/Linux - sistema operacional desenvolvido a partir do sistema operacional do Projeto GNU - bem como o seu logotipo, o pingüim Tux.

Atualmente o conceito do copyleft se desprendeu do software livre e já existem projetos específicos, por exemplo, para música colaborativa livre, inclusive no Brasil.

XI. Uma análise arendtiana do copyleft

A análise técnica das diferenças entre as obras - dentre elas os programas de computador - produzidas segundo o conceito de copyleft e segundo o conceito autoral - nos países de língua inglesa o copyright - foi trabalhada acima.

Entretanto, neste texto buscamos estender este novo conceito para uma análise baseada nas idéias de Hannah Arendt, pois entendemos que as diferenças entre os sistemas se mostrarão muito mais claras, facilitando assim o desenvolvimento do ferramental necessário para o tratamento jurídico diferenciado entre as obras elaboradas e licenciadas por um ou outro sistema.

No sistema jurídico tradicional de licenciamento de bens intelectuais estes são tratados como coisas, como bens destinados à troca, ao consumo, como resultado do trabalho do homo faber. As obras proprietárias são objetos que têm fim em si mesmos. Os programas proprietários exemplificam: são desenvolvidos custeados por um investimento, e voltados à comercialização; não é função do programa proprietário permitir que seu usuário tenha a possibilidade de incrementar seu conhecimento acerca da estrutura dos programas de computador, ou que este possa adaptar o programa às suas necessidades. Os desenvolvedores de programas proprietário são, inclusive, os maiores lobistas junto às casas legislativas do mundo todo para que estas aprovem as patentes de software, o que sacramenta o ideal de comercialização dos mesmos.

Já no caso das obras livres estas são, antes de bens de consumo, bens intelectuais muito mais próximos à ação e ao labor do que ao trabalho. Visam principalmente permitir que os demais homens tenham acesso à informação, à diversão ou que saciem qualquer outra necessidade humana, tal qual fazia o homo laborans. Elas também carregam consigo, quase sempre, grande carga política. As obras livres costumam aparecer sempre acompanhadas de alguma manifestação contra a reificação do mundo contemporâneo, são ferramentas utilizadas pelo politikon zoon, ou seja, o homem como animal político, em suas ações.

Mesmo que eventualmente os softwares livres - ou qualquer outra obra livre - tenham algumas características dos seus pares proprietários, como investimentos na sua elaboração, destinação comercial ou qualquer outra, a sua origem é diferenciada. Como diz Hannah Arendt, a natalidade é uma das características principais da ação, pois a cada nascimento um novo recém-chegado ao mundo é capaz de iniciar algo novo. Assim ocorre com as obras livres, pois a cada distribuição que se faz existe também a possibilidade de se começar, sobre esta obra, uma outra nova, totalmente diferente. A natalidade passa a ser, além de condição humana, característica das obras livres.

Uma outra característica arendtiana que pode ser aplicada na diferenciação dos dois tipos de obras é a que tange à sua permanência atemporal no mundo. Os bens-fim do homo faber têm a sua existência vinculada ao seu valor, e este à sua utilidade. Logo, um bem em comércio que não tem utilidade não tem valor e nem razão de existir. No caso das obras de arte, no exemplo dado por Arendt, estas são únicas e não podem ter valor determinado salvo por arbitrariedade. Elas não têm utilidade intrínseca e mesmo assim são valoradas pelo homem por sua capacidade de permanência no mundo. As obras de arte são as mais mundanas das obras humanas na medida em que não se vinculam a um valor-utilidade. Neste aspecto também é possível encontrar diferenças gritantes entre o software livre e o software proprietário pois este se encaixa perfeitamente na definição dos bens-fim e aquele, o software livre, perfeitamente na conceituação de obra de arte.

De forma alguma buscamos aqui responder ao questionamento de Hannah Arendt acerca "(d)o que estamos fazendo aqui?", mas é comum encontrarmos questões reflexivas similares nos textos que advogam pela maior utilização de obras livres, característica do aspecto político, e sua resposta costuma ser algo próximo a: "buscando incrementar a oferta de conhecimento disponível, bem como oferecer à sociedade obras que possam ser livremente copiadas, alteradas e distribuídas, que se adaptem às necessidades de cada usuário ou grupo de usuário; se com isso for possível lucrar, melhor, mas esse não é o objetivo principal". Normalmente esses questionamentos não são realizados entre os autores de obras proprietárias, principalmente em razão de sua vocação finalística.

Enfim, se as diferenças técnicas bastam para mostrar que existe alguma dessemelhança entre as obras livres e as obras proprietárias, as diferenças arendtianas sepultam quaisquer dúvidas. Os aspectos técnicos apontam para semelhanças e diferenças entre os dois tipos de obras; os aspectos arendtianos são condições bastantes para consideramos suas naturezas totalmente distintas, não devendo um único ferramental jurídico, ou seja, um único conjunto harmônico de leis, servir às duas categorias de obras.

XII. Conclusão

A mesma evolução tecnológica que permitiu o nascimento dos bens livres é a que facilita a pirataria dos bens proprietários - pirataria dever ser entendida aqui como uso não-autorizado de obra ou idéia -, como as cópias de programas de computador e músicas no formato mp3 pela Internet. Ao mesmo passo em que os fabricantes (no conceito arendtiano) de bens lutam contra as novas tecnologias de compartilhamento de dados e informações - como as redes peer-to-peer de trocas de arquivos - os bens livres delas se valem para sua evolução e disseminação. Uma primeira conclusão que podemos tirar é que os bens livres são frutos de uma nova realidade e a ela se adaptam melhor do que os bens proprietários tradicionais. O próprio conceito de pirataria - tão atacado como sendo um dos males da propriedade intelectual no mundo moderno - nas obras livres apenas existe de forma muito mais restrita e mais facilmente controlável: quem pratica pirataria neste tipo de obra não são os usuários, mas as empresas que não respeitam as regras que impedem a transformação das obras livres em proprietárias. Uma maior oferta de obras livres importaria até mesmo na diminuição da utilização indevida de obras proprietárias.

Entretanto, a plena utilização de bens livres enfrenta alguns sérios obstáculos na constituição dos direitos da propriedade intelectual tal qual estes se encontram atualmente. A elaboração de licenças específicas para essas obras, como a General Public Licence, do Projeto GNU, ou a LPG-PC (Licença Pública Geral para Programas de Computador, adaptação para o Brasil da General Public Licence organizada por nós) apenas contorna em certa medida os problemas, sem, no entanto, resolvê-los. Alguns exemplos das dificuldades residem: i. na obrigatoriedade de se oferecer as garantias do Código do Consumidor para os programas de computador, não importando se estes são livres ou proprietários; ou então ii. na proteção a priori das obras, considerando-as como bens proprietários e passíveis de registros mesmo que os titulares dos direitos autorais desejassem o contrário. O próprio conceito de titularidade dos direitos de autor é muito complexo nas obras livres, já que estas são, em sua maioria, obras coletivas e com incontáveis derivações.

Como já foi dito, o software livre não tem nos aspectos fabril, finalista e mercantilista, voltado ao comércio, sua essência; ao contrário, este se caracteriza justamente pelo afastamento de tais caracteres, o que torna a necessidade de garantia ou a possibilidade de registro e apropriação do bem avessos à sua natureza. Tais obras, para que livres sejam, necessitam de uma conceituação diferente, voltada à preservação dos aspectos de ação e labor que nelas residem. Elas não devem ser tomadas por exceções às regras da propriedade intelectual, pois o termo "livre" diz respeito não apenas aos seus aspectos comerciais, mas principalmente às prerrogativas fabris do homo faber.

Concluímos este breve estudo considerando que os bens livres e os bens proprietários têm naturezas distintas e que não devem ser tratados segundo a mesma conceituação jurídica. É necessário, para sanar os correntes conflitos de interesses existentes entre os autores de obras livres e os autores de obras proprietárias, que se estabeleçam esferas distintas para cada tipo de obra. Se por um lado aqueles autores lutam por mais liberdade na circulação de suas obras e menos interferência com relação às cópias, alterações e distribuições das mesmas, estes, os autores de obras proprietárias, defendem uma maior proteção de seus bens contra os novos meios de propagação surgidos com a Internet, inclusive com a majoração de penas e com a aplicação das normas relativas às patentes aos softwares.

Vemos como necessário, portanto, que o direito separe os dois tipos de obras em esferas distintas, que não se relacionem mais do que o estritamente necessário. Apenas desta forma será possível respeitar as naturezas quase que antagônicas das obras livres e das obras proprietárias, ofertando a uma a liberdade e à outra a proteção desejadas.

Pablo de Camargo Cerdeira é advogado formado pela Faculdade de Direito da USP


Observações

Stallman, Richard, Free software free society, Boston, 1ª ed., GNU, 2002, pp. 15-18. (voltar)

Por exemplo o Projeto Re:combo. (voltar)

O sítio http://www.lpg.adv.br contém mais informações sobre o tema. (voltar)

 

 
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Atualizado em 10/06/2004
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