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O software livre está dentro da lei?

O governo federal brasileiro está à frente de uma iniciativa pioneira, a adoção de software livre pelas instituições públicas com objetivo de melhorar os programas de computador utilizados e de baixar os altíssimos custos que normalmente envolvem a aquisição e manutenção dos chamados softwares proprietários. A Universidade Estadual de São Paulo (USP), a Universidade de Brasília (UnB), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e o Tribunal de Contas da União (TCU) são exemplos de aplicação do software livre na esfera pública. O software livre, entretanto, não significa necessariamente software gratuito. Ocorre que sua adoção muda a abordagem de um contrato de propriedade para um contrato de serviços. Além disso, o software também exige uma licença de uso específica para assegurar a liberdade do usuário. Tal contexto demanda um novo olhar jurídico sobre o tema para entender quais as implicações do software livre na legislação nacional.

As licenças dos programas de computador são criadas para suprimir a liberdade de compartilhar ou modificar o software já que ele é considerado um produto de venda e seus direitos autorais são protegidos por lei. No Brasil, é a Lei número 9609/98 que dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador e sua comercialização no país. Segundo o texto, o regime de proteção à propriedade intelectual de programa de computador é o mesmo conferido às obras literárias pela legislação de direitos autorais vigentes no país. Assim sendo, essa proteção independe de registro, ou seja, o autor não precisa fazer nada para que a sua obra já esteja automaticamente protegida.

A Lei diz, ainda, que o uso de programa de computador será objeto de contrato de licença. Por sua vez, a violação dos direitos de autor de programa de computador pode resultar em detenção de seis meses a dois anos ou multa. Se a violação consistir na reprodução, por qualquer meio, de programa de computador, no todo ou em parte, para fins de comércio, sem autorização expressa do autor ou de quem o represente a pena é de reclusão de um a quatro anos e multa.

Segundo o advogado Marcos da Costa, especialista em direito empresarial e presidente da Comissão de Informática do Conselho Federal da OAB, a Lei de Software é passível de algumas críticas pois o enquadramento jurídico não pode deixar de considerar as peculiaridades do software. "A equiparação dos softwares com os direitos autorais tradicionais conflita com a essência de uns e outros. Essa equiparação por vezes determina a criação de normas absolutamente ridículas, como estender a proteção por cinquenta anos sobre algo que se torna obsoleto em cinco", diz ele.

A lei que altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais é a 9.610/98. São obras intelectuais protegidas, as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, incluindo entre outros os programas de computador.

O software, para ser livre, também precisa estar registrado sob uma licença. O idealizador do projeto GNU, sistema operacional criado em 1984 baseado em software livre, Richard Stallman, criou a Free Software Foundation ou Fundação do Software Livre, para tratar dos aspectos jurídicos e organizacionais do projeto. Através da Fundação foram criadas as duas licenças fundadoras do software livre, a GNU GPL, sigla em inglês para o termo Licença Pública Geral e a GNU LGPL, Licença Pública Menos Geral. Criadas em 1989, nos Estados Unidos, e revisadas em 1991, com objetivo de proteger a integridade do sistema de livre distribuição dos softwares, elas se estabeleceram como as licenças mais amplamente usadas pela comunidade que adota software livre. "O que se deve indagar é se os termos destas licenças afrontam a lei brasileira" questiona Costa, uma vez que tanto a Lei de Software quanto a Lei sobre Direitos Autorais são altamente protecionistas no Brasil, o que é oposto ao que prega a filosofia do software livre.

Diante da demanda colocada pelo governo brasileiro foi firmado um acordo entre a Fundação do Software Livre e o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, através da escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas e da organização não governamental americana Creative Commons. Como resultado do convênio nasceu a CC-GNU GPL, licença oficial que tem sido utilizada pelo governo federal para o licenciamento de software em regime livre. A licença original GNU GPL foi escrita somente para advogados e seu idioma original é o inglês.

Através do projeto, pioneiro no mundo, foi possível fazer a tradução para o português do texto da licença americana e, em seguida, acrescentar duas outras camadas das licenças do Creative Commons que facilitam a comprensão e utilização da licença, conforme explica Ronaldo Lemos, diretor do Centro de Direito e Tecnologia da Escola de Direito da FGV-RJ. "É uma criação genuinamente brasileira. O primeiro software licenciado por ela foi o TerraCrime do Ministério da Justiça, um programa que faz controle estatístico de crimilinalidade e que hoje encontra-se disponível para usuários e desenvolvedores de todo o Brasil. O setor privado também tem usado a licença brasileira. O discador UOL (do grupo Folha de S.Paulo) é licenciado pela CC-GNU GPL", conta Lemos.

Além da tradução, outra modificação feita na Licença Pública Geral americana foi a introdução de duas camadas, uma para leigos e outra para máquinas. "O texto da licença não foi adaptado, mas apenas traduzido literalmente tal qual é a GNU GPL. Para todos os efeitos, a CC-GNU GPL é a GNU GPL em português, pronta para o uso. A camada para leigos explica para qualquer pessoa, seja ela advogado ou não, o que a Licença faz e quais direitos ela confere. A outra camada, feita para máquinas, permite marcar o código do software eletronicamente, para que qualquer computador possa identificar o regime de licencimento que se aplica a ele", explica Ronaldo Lemos. A Licença Pública Geral concede ao usuário quatro direitos:

  • executar o programa para qualquer propósito;
  • estudar como o programa funciona e adaptá-lo para suas necessidades;
  • redistribuir cópias;
  • aperfeiçoar o programa e distribuir os aperfeiçoamentos realizados.

Além destes direitos a licença também impõe os seguintes deveres:
- publicar em cada cópia um aviso de direitos autorais (copyright) e uma notificação sobre a ausência de garantia;
- redistribuir as alterações porventura realizadas juntamente com uma cópia da licença;
- distribuir as alterações incluindo o código-fonte correspondente completo.


Segundo o texto da Licença, se você distribuir cópias de programas livres, tanto gratuitamente como mediante uma taxa, você terá de conceder aos receptores todos os direitos que você possui. Você terá de garantir que, também eles, recebam ou possam obter o código-fonte. E você terá a obrigação de exibir a eles esses termos, para que eles conheçam seus direitos.

O software livre também se fundamenta no direito autoral com a diferença de que o autor opta por permitir aos usuários usar, estudar, modificar e redistribuir o programa por ele criado. "É uma alternativa ao modelo tradicional de direitos do autor que mobiliza a sociedade ao mesmo tempo que flexibiliza a estrutura do direito autoral forjada no século XIX e mantida até hoje, apesar das mudanças tecnológicas. As licenças como a CC-GNU GPL permitem o desenvolvimento de novos modelos de negócio, ao mesmo tempo em que promovem a disseminação do conhecimento, que é compartilhado com toda a sociedade", conclui Lemos. A questão é que, se o software em si é livre, não é sobre ele que se está estabelecendo qualquer negócio jurídico oneroso, mas sobre bens e outros serviços, a ele correlatos, segundo o advogado Marcos da Costa. Um ponto polêmico em relação ao uso do software livre é a questão da garantia.

Um dos destaques no texto da Licença Pública Geral é a exclusão de garantia: "Como o programa é licenciado sem custo, não há nenhuma garantia", diz Costa. Além disso, há exclusão de responsabilidade civil, tanto do criador do programa original quanto daqueles que o modificaram, por quaisquer danos causados pelo uso. Segundo ele, essa discussão fica ainda no campo hipotético porque não se teve notícia que a validade de tal cláusula tenha sido objeto de apreciação judicial. "Mesmo os softwares proprietários apresentam uma garantia limitada. No caso de um defeito no computador é difícil identificar de onde veio o problema, se do software, do hardware ou das inúmeras relações que se dão entre os dois sistemas", diz.

A inexistência de garantia também não fere o Código de Defesa do Consumidor, porque a relação jurídica estabelecida nos termos da GPL não é uma relação de consumo, ainda segundo o advogado. Essa relação se forma entre os sujeitos definidos como fornecedor e consumidor, e tem por objeto produtos ou serviços que este adquire daquele. Como os termos da GPL definem que usar, copiar, modificar e distribuir o programa não devem gerar pagamento de contraprestação, não se estabelece consumo. "O modelo de relação jurídica estabelecido pela GPL é algo de tal forma peculiar que dificilmente poderia ser comparável a uma relação de consumo. Trata-se antes de uma relação aberta de compartilhamento de informações, de colaboração e de cooperação, que jamais se poderá compreender como uma relação de consumo", conclui Costa.

Como no Brasil a adesão ao software livre é uma iniciativa do governo e também é ele o maior comprador no país, algumas questões de cunho legal também deverão ser levantadas. Uma delas é o problema das licitações e editais para aquisição de softwares. Segundo o advogado paulista Alexandre Pesserl, muitos editais são dirigidos. "Recentemente, um edital da prefeitura de Araucária, Paraná, pontuava o sistema operacional Microsoft Windows com 200 pontos e sistemas Linux com 50 pontos. "A mentalidade do administrador tem que mudar. O governo federal já percebeu que software livre é um bom negócio. O dinheiro fica no país, gerando emprego e renda e não é remetido para o exterior pela compra de licenças", acredita Pesserl.

Outro exemplo foi o caso que aconteceu no mês passado no Rio Grande do Sul, onde o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu uma lei criada pelo governo estadual (11.871/02) determinando a licitação e contratação preferencial de sistemas de informática baseados em código aberto. O STF alegou que a lei era inconstitucional porque transferia para o estado uma atribuição exclusiva da União, a produção de normas para licitações. Também alegou que com a lei poderia ocorrer um "estreitamento do âmbito de competição" devido a um prévio juízo de conveniência. "Este é o argumento mais polêmico. O acesso ao código, permite à Administração maior liberdade, tanto na escolha de fornecedores de serviços, quanto nas opções de customização de programas, abrindo leque de oportunidades de acesso aos contratos administrativos", alega Pesserl.

Existem diversos projetos de lei no Congresso Federal sobre a adoção preferencial de software livre e código aberto, além da Frente Parlamentar do Software Livre, que articula politicamente a aprovação de tais leis, alterando inclusive a Lei das Licitações, número 8.666/93. Um deles é a Lei do Software Livre (2.269/99) do deputado petista Walter Pinheiro. Segundo o parlamentar, a medida resultaria numa economia de até 60% nos gastos do governo. "Enquanto a lei federal não é implantada, cabe ao poder executivo, que é quem redige os editais, em todas as esferas, a opção de melhor custo/benefício e socialmente mais responsável. E, neste ponto, é fundamental a fiscalização da sociedade e, no campo jurídico, a impugnação de editais dirigidos, que firam o princípio da isonomia ou princípio de igualdade de todos perante a lei", finaliza o advogado Pesserl.

A popularização do software livre está criando novas necessidades no campo jurídico, tanto no nível da relação usuário-prestador de serviço, quanto no nível de implementação de políticas públicas que favoreçam a adoção desse tipo de programa. Depois da iniciativa da Creative Commons um grupo de advogados de São Paulo trabalha num projeto de tradução de licenças da Open Source Iniciative. As definições de open source e software livre são bastante semelhantes. Omar Kaminski, um dos advogados envolvidos no projeto ainda em fase de planejamento, explica que para o movimento open source, o fato do programa de computador ser de "fonte aberta" é uma questão de cunho prático e, para o software livre é de cunho ético, compreendendo uma mobilização sócio-política. As licenças de open source são variáveis quanto à utilização do uso do código-fonte, enquanto as licenças de software livre possuem uma forte característica: a necessidade de compatibilidade com a GNU GPL ou com as chamadas quatro liberdades: executar, estudar, redistribuir e aperfeiçoar o programa.

(PM)

 
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Atualizado em 10/06/2004
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