Reportagens






 

A liberdade que contamina a arte

A possibilidade de compartilhamento rápido e eficiente de arquivos pela internet está transformando a criação e a circulação de obras artísticas. Novas concepções de autoria orientam o desenvolvimento de licenças jurídicas para obras criadas e/ou difundidas no meio digital. Essas licenças vêm sendo elaboradas diante da dificuldade em se equiparar o tratamento legal dado às obras veiculadas em suportes tangíveis - tais como CDs, DVDs e livros - às obras executadas e/ou distribuídas pela rede.

Modelos de licenciamento inspirados na General Public License (GPL) - criada por Richard Stallman para regulamentar o software livre - vêm sendo elaborados para proteger a produção cultural que circula pela internet. O objetivo é buscar alternativas entre o copyright e o domínio público para que a regulamentação dos direitos autorais se torne mais condizente com a crescente digitalização dos meios de distribuição de informação popularizados pelos computadores e pela internet.

O conceito de copyleft, que informa a GPL, pressupõe a liberdade de cópia, de modificação, de execução e de distribuição de programas de computador - tais como o Linux - desde que os créditos para o autor original sejam mantidos e os produtos derivados adotem a mesma licença. Ao fazer com que o produto derivado mantenha a licença busca-se evitar que ele se torne fechado/proprietário nas mãos daquele que fez apenas a última alteração.

A noção de proteção, portanto, se estende do autor para a liberdade dos usuários que copiam e/ou modificam o software, fazendo com que a idéia de pirataria, neste contexto, perca o sentido e se transforme numa espécie de co-autoria. Segundo Ronaldo Lemos, diretor do Centro de Direito e Tecnologia da Fundação Getúlio Vargas, "a idéia do copyleft se fundamenta nos direitos do autor. É incorreto, por exemplo, achar que software livre é software 'sem direitos autorais'. Na verdade, o software livre é um software cujo autor decidiu implementar um modelo de licenciamento que permite aos usuários uma ampla gama de direitos. Assim, o copyleft é uma alternativa, surgida 'de baixo para cima' ao modelo tradicional de direitos do autor".

Esse modelo tradicional de direitos autorais - cuja maior expressão é o copyright - restringe todos os direitos sobre uma obra intelectual, desde o seu surgimento, ao seu autor, independentemente da solicitação de tal proteção pelo mesmo. Os novos formatos de licenciamento, tais como a GPL para o software livre, permitem aos autores disporem do copyright para escolher certos níveis de proteção, transformando-o, assim, em copyleft.

Uma nova modalidade de licenciamento, difundida na internet e que estende os princípios da GPL para o âmbito da produção cultural, é a Creative Commons. A iniciativa, que teve origem na Universidade de Stanford, sob os auspícios de Lawrence Lessig, consiste na disponibilização de um conjunto de 11 tipos de licença que permitem aos músicos, escritores, fotógrafos, cineastas, webdesigners e cientistas optar pelo grau de proteção que desejam conferir à sua obra.

O autor pode escolher, por exemplo, entre autorizar o uso comercial ou não comercial de seu trabalho. Ele pode decidir se permitirá a realização de obras derivadas da sua, podendo inserir uma cláusula na licença que permita que outras pessoas criem obras a partir da original apenas se concordarem em licenciar suas novas criações pelo mesmo regime aberto. Mas, em todas as licenças, uma premissa básica é sempre garantida: as licenças sempre permitem a liberdade de cópia e distribuição.

Novas tecnologias e criação artística
Muitas das licenças de copyleft disponibilizadas na internet foram criadas pelos chamados "coletivos", projetos de arte digital que congregam músicos, escritores, webdesigners, videomakers etc, nos quais a cooperação, a descentralização e o compartilhamento de idéias são as palavras-chave. Pessoas ou grupos, em diferentes lugares do mundo, criam juntas, usando a rede, uma obra coletiva, utilizando a mesma técnica dos hackers para o desenvolvimento de softwares abertos.

Nesses casos, as licenças surgem a partir de um novo conceito de autoria gerado, por sua vez, por um processo específico de criação artística possibilitado pela internet. Uma licença criada no Brasil foi disponibilizada pelo Re:combo, um coletivo formado por mais de trinta pessoas, entre músicos, artistas plásticos, designers, engenheiros de software, DJs e profissionais de vídeo. Os artistas do coletivo integram "células de áudio e vídeo" e produzem, regularmente, via internet, material em cidades como Recife, João Pessoa, São Paulo, Caruaru e Belo Horizonte recebendo imagens e sons de lugares distantes como Lima e Bucareste.

Os conceitos que orientam o trabalho dos artistas do Re:combo são a recombinação, a estética e o improviso dos chamados combos de jazz e a intertextualidade. Um dos projetos recentes realizados pelo coletivo foi a exposição pauseandplay feita em parceria com a pingfm, um coletivo de artistas sediados na Alemanha que trabalha, desde 2000, com a produção ao vivo de áudio e vídeo via internet.

A exposição se estendeu em várias sessões entre os meses de abril e maio de 2004, no Centro Cultural Brasil-Alemanha, no Recife, e foi definida como uma "jam session telemática": DJs integrantes do Re:combo mixavam, em Recife, os sons produzidos, simultaneamente, pelos DJs do pingfm na Alemanha e por outros DJs localizados na Inglaterra e nos Estados Unidos. O resultado da mixagem, produzida a partir de sons originários de diversas partes do mundo, só podia ser ouvido por aqueles que estivessem presentes no centro cultural do Recife.

Outras experiências artísticas semelhantes foram feitas pelo Re:combo e esse trabalho de criação coletiva à distância, possibilitado pela internet, foi o que inspirou a criação da Licença de Uso Completo Re:combo. Segundo h.d mabuse, um dos fundadores do coletivo, a licença da Re:combo exacerba o conceito de copyleft na medida em que permite a comercialização das obras produzidas. A adoção da licença da Re:combo poderia favorecer, segundo mabuse, manifestações culturais de outros grupos mais populares, acusados, muitas vezes, de pirataria: "É uma forma de legalizar processos que têm enriquecido a cultura brasileira como no caso do chamado Brega do Pará e dos CDs de coletâneas vendidos no Recife Antigo".

A cópia - e mesmo a comercialização dela - deixa, assim, de ser entendida como pirataria e passa a ser vista como uma nova possibilidade de se compartilhar livremente a produção artística. O direito autoral é desvencilhado da idéia de propriedade intelectual que, para muitos artistas só serve para favorecer, economicamente, a indústria do entretenimento tal como acontece com as gravadoras: "Na indústria fonográfica isso é exacerbado pelo direito ao fonograma. Quando, por exemplo, uma banda grava um disco no jurássico formato de contrato de cessão, que é utilizado na grande maioria das vezes, os direitos referentes às diversas formas de exploração econômica desse fonograma permanecem com a gravadora" afirma h. d. mabuse. Ele lembra também que o conceito de venda de música, a partir de um suporte físico, é historicamente recente: no início do século passado, Pixinguinha vivia de música e não da venda dos seus registros fonográficos.

Inspirada na iniciativa pioneira do grupo  do Recife, o Ministério da Cultura, durante o último Fórum Internacional de Software Livre anunciou a criação de um novo tipo de licença , que permite que o artista autorize previamente o uso de trechos de sua música para a construção de outras (na forma de remixes ou  usando samplers). O ministro  Gilberto Gil deu o exemplo e disponibilizou sua música "Oslodum" sob o novo formato. O nome da licença não poderia ser outro: re:combo.

Distribuição e comercialização

Inspirada pela postura do Re:combo que afirma ser o copyright uma força restritiva ao processo de criação artística, a banda pernambucana Mombojó disponibilizou, gratuitamente, para download, no seu site, as músicas do seu disco de estréia, antes mesmo dele ser lançado nas lojas: A Mombojó crê que a música é um produto da recombinação de sons e formatos que se acumulam, e que podem ser criativamente reposicionados. Neste sentido, a música é, na verdade, um contínuo processo de rearranjo, matemático inclusive, de possibilidades. A música tem características não contempladas no conceito original de propriedade intelectual e copyright, afirma Luciano Meira, produtor da banda. Tal concepção da Mombojó também justifica a iniciativa da banda em disponibilizar os arquivos completos de duas ou três faixas do disco novo para aqueles que desejarem fazer remixes.

Mas esta liberdade de cópia e de distribuição não compromete o ganho financeiro da banda, ao interferir na venda de CDs, por exemplo? “Recebemos dezenas de e-mails nos últimos quatro meses, de pessoas que baixaram músicas do site e declararam ter em seguida adquirido o CD”, afirma Luciano Meira, para quem esta postura estaria em perfeita consonância com pesquisas recentes que demonstram ausência de correlação entre a vendagem de CDs e a disponibilidade gratuita da música na rede:"não parece haver uma relação causal entre baixar o álbum de determinado artista pela Internet e, necessariamente, decidir pela não aquisição do CD desse mesmo artista, acrescenta o produtor".

O fato é que a Internet, ao possibilitar a divulgação e a distribuição de bandas como a Mombojó, confere autonomia e controle aos músicos sobre o seu próprio trabalho, que deixa, assim, de ser administrado pelas grandes corporações da indústria cultural, fortalecendo a chamada cena independente de música: "despertamos a atenção da mídia e dos curiosos em geral para a banda, fazendo com que nossa música fosse ouvida por quem, de outra forma, sequer estaria na posição de decidir se compraria o CD ou não. Um grande número de blogs na Internet já resenhava o CD antes de despertar o interesse dos grandes veículos, em particular da imprensa escrita".

A distribuição pela Internet acaba favorecendo também as alternativas à vendagem de discos para que as bandas possam viver de sua música: "Pelo menos dois dos contatos para shows na última turnê da Mombojó foram baseados no fato de que os organizadores puderam prontamente ouvir o som da banda através de downloads no site, agilizando grandemente o processo de contratação", declara o produtor da Mombojó.


(CC)

 
Anterior Proxima
Atualizado em 10/06/2004
http://www.comciencia.br
contato@comciencia.br

© 2003
SBPC/Labjor
Brasil