Software livre e inovação
Rubens Queiroz
Um dos argumentos mais freqüentes empregados pelos defensores
do modelo de software proprietário é que o software
livre inibe a inovação. Segundo eles, os investimentos
em pesquisa e desenvolvimento dificilmente seriam recuperados em um
ambiente livre. Em conseqüência, um cenário pouco
propício à inovação e ao desenvolvimento
seria criado.
Um fator que raramente é mencionado por defensores tanto do
software livre quanto do proprietário é que a conexão
em rede propiciada pela internet conferiu um enorme poder ao
indivíduo, que muitas vezes trabalha sozinho que deseja
compartilhar suas idéias e conhecimento com pessoas que possam
compreendê-lo ou mesmo admirá-lo. Essas pessoas,
coletivamente ou isoladas, podem criar conhecimento, às vezes
de forma tremendamente inovadora. Se tiverem as necessidades básicas
de sobrevivência atendidas, esses indivíduos poderão
se dedicar a criar software de todos os tipos e com qualidade.
A década de 80 era caracterizada em grande parte por ilhas
de computadores, isolados uns dos outros, criados por fabricantes
diferentes e que se interessavam - antes de tudo por razões
econômicas - na manutenção e consolidação
dessas ilhas, criando mercados cativos. Os computadores se
comunicavam, na maior parte dos casos, com outros computadores dentro
das próprias empresas, através de linhas de comunicação
também de alto custo. Enfim, uma situação que em
nada encorajava a colaboração, compartilhamento,
solidariedade e amizade, tão características do
movimento de software livre.
Dentro desse panorama, em que os computadores pessoais começavam
a aparecer, desempenhando ainda tarefas simples e de pouca
complexidade computacional, a qualificação dependia
antes de tudo de se estar empregado em um local que possuisse um
computador de grande porte e caríssimo. A qualificação
dependia do emprego, ou seja, era acessível a muito poucos.
A internet, que chegou ao Brasil no final da década de 80,
também para poucos, principalmente universidades e órgãos
do governo, gradualmente mudou esse perfil, permitindo o acesso
universal. Em 2004 ,são inúmeras as maneiras de se
conectar à internet, por preços muito acessíveis
para a classe média. O GNU/Linux, que nasceu e se consolidou
na década de 90, veio a se tornar um mecanismo valioso para a
disseminação de idéias. Com código fonte
livre, de qualidade, um coordenador, Linus Torvalds, soube captar de
maneira genial o poder de comunicação da internet para
impulsionar de forma nunca vista o revolucionário sistema
GNU/Linux. Linus Torvalds soube aceitar colaborações,
valorizar competências e aglutinar ao seu redor os melhores
entre os melhores. A internet ofereceu ao desenvolvimento do Linux os
melhores do mundo e o resultado está mudando radicalmente
diversos conceitos firmemente estabelecidos.
Linus Torvalds, em parceria com o jornalista David Diamond,
escreveu um livro autobiográfico cujo título é
Just for fun, ou Só por prazer, como publicado
no Brasil. Este título, por si só, já diz muita
coisa. Um produto, desenvolvido "só por prazer", por
milhares de pessoas, é capaz de representar uma séria
ameaça a monópolios firmemente consolidados, com
centenas de bilhões de dólares em caixa. Monópolios
conseguidos com manobras que evocam muitas das piores práticas
de que os seres humanos são capazes. É reconfortante
ver que um poder equivalente está sendo construído
baseado apenas na solidariedade, compartilhamento, amizade e
criatividade.
Mas o Linux é um exemplo muito conhecido. Gostaria de
ilustrar o tema deste artigo, software livre e inovação,
com outro pequeno exemplo, baseado em uma experiência com a
biblioteca digital da Unicamp, criada exclusivamente com software
livre. Este sistema chama-se Nou-Rau e consiste em programas em PHP
que se ligam a diversos outros programas já existentes, como o
banco de dados PostgreSQL. Para a construção do sistema
Nou-Rau nós fomos extremamente privilegiados, pois muitos dos
componentes de que necessitávamos já existiam. Embora
seja usado hoje como uma biblioteca digital, pela Unicamp e por um
número crescente de universidades e instituições
diversas, almejava-se apenas criar algo que permitisse armazenar
documentos no formato digital e criar um índice do conteúdo
destes documentos, permitindo a busca e recuperação dos
dados.
Queríamos também ser muito flexíveis, não
impor limites rígidos sobre o tipo de documento digital
aceito. Sendo assim, o sistema aceita qualquer tipo de documento,
embora restrições possam ser criadas conforme o desejo
do mantenedor do sistema. O software de indexação,
htdig, indexa documentos digitais no formato texto puro. Dessa forma,
precisávamos encontrar softwares que convertessem diversos
formatos para o formato texto puro, ou ASCII. Para converter
documentos criados pelo aplicativo Microsoft Word, encontramos o
antiword. Precisávamos de um banco de dados para
armazenar as informações chave de cada documento,
informações para gerenciamento etc: usamos o software
PostgreSQL, de estabilidade e qualidade comprovada. E assim foi, até
acharmos todos os componentes que precisávamos. Todos os
componentes livres e gratuitos.
O sistema Nou-Rau, desde sua concepção original,
teve duas metas básicas: não replicar esforços
já existentes e ser tão simples e fácil de se
usar quanto possível. Ao final de nossa busca pela internet,
descobrimos que a maior parte do trabalho já estava pronta.
Faltava apenas fazer uma pequena parte, um programa que nos
permitisse harmonizar todos os componentes e chegar onde queríamos.
Mas tudo isso é mais fácil de se ver com números.
A tabela abaixo lista o número de linhas de (código,
documentação, comentários etc.) de todos os
programas utilizados e o número de caracteres.
Aplicativo
|
Nº
linhas código
|
Nº
caracteres
|
Antiword
|
44.491
|
1.444.534
|
Apache
|
40.053
|
4.165.130
|
dvi2tty
|
7.245
|
226.850
|
htdig
|
461.943
|
11.648.195
|
perl
|
1.530.939
|
50.113.497
|
php
|
836.506
|
24.436.796
|
Postgresql
|
1.787.926
|
61.370.089
|
pstotext
|
4.734
|
144.623
|
recode
|
205.215
|
8.000.820
|
xlhtml
|
37.830
|
1.167.848
|
xpdf
|
101.163
|
2.846.137
|
nou-rau
|
11.203
|
354.583
|
Combinando-se o número de linhas de todos estes programas,
inclusive a documentação, comentários e outros
arquivos incluídos na distribuição dos produtos,
chegamos a um arquivo de 158MB de tamanho, com 5.058.045 linhas, ou
165.605.130 caracteres. O sistema Nou-Rau por sua vez consiste de
11.203 linhas e 354.583 caracteres. Temos então que o sistema
Nou-Rau, em termos percentuais, representa 0,21% do total. Em outras
palavras, a criação de um sistema que em maio de 2004
abrigava cerca de 7.5GB de documentos, entre os quais 2.833 teses e
dissertações defendidas na Unicamp, representando o
trabalho árduo de pesquisa de milhares de alunos e seus
orientadores, integralmente disponível na internet, para
qualquer pessoa, indistintamente, requereu para sua criação
apenas 0.21% de esforço adicional sobre componentes já
existentes. O impacto de todo esse conhecimento, que a Unicamp e
outras universidades estão publicando na internet, é
difícil de ser mensurado. Mas julgando pela taxa mensal de
visitas à biblioteca digital da Unicamp, que hoje se situa em
torno de 60.000, não há como negar seu impacto
positivo. O conhecimento está liberto, sem fronteiras. Saiu
dos limites do papel e trafega pelo ciberespaço livremente.
Onde repousa o poder de inovação do software livre?
Justamente em podermos caminhar sempre para a frente. Não
precisamos recriar idéias. A partir do trabalho que milhares
de outras pessoas criaram, com uma pequena contribuição,
genialidade, inovação, temos a liberdade de criar, de
nos concentrar em problemas novos e suas soluções. A
primeira versão do software Nou-Rau foi criada em poucos
meses, por apenas uma pessoa e com poucos recursos financeiros. A
inexistência dos componentes livres do componente Nou-Rau
possivelmente iria inviabilizar todo o projeto e possivelmente não
teríamos hoje acesso a um acervo tão rico de
informações.
Mas o exemplo do Nou-Rau não é um caso isolado.
Muito possivelmente todos os componentes empregados também se
utilizaram de idéias de outros programas e pessoas. É
praticamente impossível delimitar o ciclo de relacionamentos
entre todos esses produtos e pessoas. Mas uma coisa é certa,
tudo foi possível devido à filosofia do software livre,
na qual nada precisa ser escondido, em que a competência é
razão de orgulho e é comprovada exibindo-se o trabalho
realizado. Nessa filosofia, ajudar faz bem. Idéias que são
comunicadas e usadas por outros são razão de orgulho
para quem as criou.
A Unicamp divulga ativamente o sistema Nou-Rau. Quanto mais
pessoas usarem o sistema, maior a comunidade de desenvolvedores e
interessados em seu crescimento e aperfeiçoamento. Quanto
maior o reconhecimento, maior a possibilidade de se obter até
mesmo apoio financeiro de entidades de fomento. Quanto mais usuários,
maior o conhecimento compartilhado e, quem sabe, as nossas
possibilidades de melhorarmos diversos aspectos de nossas vidas e de
nossa sociedade.
Dentro da ótica de uma escola ou universidade, cujo papel é
formar pessoas e criar conhecimento (e não desenvolver ou
vender software), esse modelo é totalmente coerente. O
software é um meio para se alcançar um fim e seu
desenvolvimento é válido desde que alinhado com os
objetivos finais da instituição. A criação
do software não é mais uma atividade que requer
investimentos monstruosos. Tudo o que se necessita é
criatividade e vontade de aprender para, quem sabe, revolucionar o
mundo. Certamente Linus Torvalds nunca pensou em todas as implicações
de seu trabalho quando estava programando, só por prazer, em
um quarto escuro na Finlândia. Afinal de contas, como dizem os
hackers, programar é a melhor coisa que se faz vestido.
O software livre prejudica a inovação? Conta
outra....
Rubens Queiroz é gerente da Divisão de Serviços
à Comunidade do Centro de Computação da Unicamp.
Referências
1. Antiword (http://www.winfield.demon.nl/).
2. htdig (http://www.htdig.org)
3. Biblioteca Digital da Unicamp (http://libdigi.unicamp.br)
4. Sistema Rau-Tu de Perguntas e Respostas
(http://www.rau-tu.unicamp.br)
5. Sistema Nou-Rau de Indexação e Armazenamento de
Documentos Digitais (http://www.rau-tu.unicamp.br/nou-rau)
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