Reportagens






 

A soja nos cerrados brasileiros:
novas regiões, novo sistema de movimentos

Ricardo Castillo
Vitor Pires Vencovsky

A atual mobilidade geográfica no território brasileiro é fortemente influenciada pelos novos fronts agrícolas que caracterizam regiões altamente modernizadas e especializadas, produtoras de commodities (sobretudo soja), porém mais distantes dos portos do que as regiões sojícolas mais antigas. A ocupação das novas áreas (cerrados do Centro-Oeste, Triângulo Mineiro, Rondônia, Oeste da Bahia, sul do Maranhão e do Piauí), além de mobilizar todo um aparato tecnológico para a produção (novos cultivares, técnicas de manejo do solo, maquinário e insumos agrícolas), tem provocado uma profunda transformação na organização do território, sobretudo em termos de transportes e comunicações. A busca por uma agricultura competitiva tem gerado: 1) uma sofisticação, às custas de grandes investimentos do Estado, dos circuitos espaciais e dos círculos de cooperação entre as grandes empresas das cadeias produtivas e de distribuição; 2) enclaves de modernização caracterizados como verdadeiros espaços alienados; 3) dependência crescente de informação (técnica e financeira) cada vez mais sofisticada; 4) surgimento de empresas de consultoria especializadas em produção, logística e transporte agrícola; 5) grande demanda por bens científicos; 6) obediência a normas internacionais de qualidade; 7) novo perfil do trabalho no campo; 8) informacionalização da produção agrícola (agricultura de precisão, monitoramento agrícola por sensoriamento remoto orbital); 9) deslocamento ou marginalização dos agentes recalcitrantes.
Uma nova organização do território se estabelece, muito mais vulnerável às oscilações do mercado internacional, fundada sobre redes de transportes extravertidas, em que se reconhece uma tendência à especialização funcional da produção agrícola nos lugares.

O novo sistema de movimentos da produção agrícola brasileira, voltado à exportação, tem se caracterizado por uma crescente racionalidade instrumental, demandando, por um lado, investimentos públicos e privados em grandes sistemas de engenharia, em todos os modais de transporte e nas redes de telecomunicações, e, por outro, na implementação de uma nova organização, pautada na logística empresarial, adotada pelas grandes empresas em suas estratégias intra-setoriais, inter-setoriais e territoriais.

Logística empresarial e territorial
A difusão espacial dos sistemas técnicos que sustentam as redes corporativas estabelece o contexto para a emergência de uma logística empresarial voltada às cadeias produtivas e de distribuição de granéis sólidos, sobretudo a soja.

A concepção de logística ganha importância entre as grandes empresas a partir do pós-guerra, procurando atender às crescentes demandas por organização exigidas pelo gerenciamento de cadeias de suprimentos (supply chain management) cada vez mais complexas, racionalizando operações de transporte de insumos produtivos para a fábrica ou depósito, transporte de produtos acabados para os pontos de distribuição ou venda, cálculo de quantidades armazenadas, localização de depósitos e atacadistas entre outras atividades vinculadas à transformação dos "custos inevitáveis" em estratégias econômico-territoriais e fator de competitividade. A incorporação das tecnologias da informação, a partir sobretudo dos anos 1980, torna a logística elemento central da produção.

As novas regiões produtoras de soja no território brasileiro
Também a partir dos anos 1980, observa-se uma ocupação mais efetiva das novas regiões da agricultura moderna altamente capitalizada. Destacam-se o Centro-Oeste (em particular a Chapada dos Parecis e o sudoeste de Goiás) e os cerrados nordestinos (em particular os municípios de Balsas-MA e Barreiras-BA), produzindo grãos, com destaque para a soja.

Para explicar as transformações estruturais do setor agrícola brasileiro mais moderno, vários autores reconhecem a passagem de um paradigma marcado pelo Complexo Agroindustrial, nas décadas de 1960 e 1970, para o que se denomina de "organização em rede", emergente na década de 1980 e enfatizada nos anos 1990. Esse último período é marcado por uma forte crise fiscal do Estado brasileiro, que impele, pouco a pouco, a uma mudança nas formas de intervenção no setor agrícola. A adoção de uma política neoliberal junto a um novo paradigma tecnológico dominante (microeletrônica, biotecnologia, redes telemáticas corporativas) propicia um novo campo de forças na estruturação das articulações entre os agentes, sobretudo da produção voltada à exportação. Essas mudanças propiciam maior margem de manobra para as políticas territoriais das grandes empresas, ampliando o campo de ação dos capitais privados no agronegócio. O crédito, a circulação, a distribuição, a comercialização ganham nova racionalidade balizada pelos parâmetros dos mercados internacionais, introduzindo o imperativo da competitividade. As alianças entre empresas são dominadas pelas grandes tradings, tais como Cargill, Maggi, ADM, Caramuru e Bunge-Ceval, tanto para assegurar o acesso a novos conhecimentos e a novos mercados, quanto para estabelecer o controle de toda a cadeia produtiva.

No início dos anos 1990, 60% da produção de soja no território brasileiro já era controlada por quatro grandes empresas: Ceval, Cargill, Sadia e Perdigão (ABIOVE). O Estado, por sua vez, torna-se um agente viabilizador da produção (em sentido lato) equipando o território e/ou concedendo serviços públicos de transporte e comunicações a empresas, de forma a assegurar a competitividade das novas regiões.

A expansão da soja para os novos fronts agrícolas é acompanhada por um aumento no tamanho médio das unidades produtivas, incorporando as novas tecnologias do campo e beneficiando-se de preços favoráveis no mercado internacional. Às características fisiográficas favoráveis (sobretudo topografia pouco movimentada propícia à mecanização) somam-se aspectos geoeconômicos das unidades produtivas (grandes extensões de terras, mentalidade dos proprietários), fazendo dessas áreas verdadeiros enclaves recentes de modernização (investimentos em infra-estruturas de transportes, armazenamento, telecomunicações, energia elétrica etc.).

A localização das novas regiões, distante dos portos e das áreas de maior densidade de transportes do território brasileiro (concentradas no Sudeste e no Sul), mobilizou o poder público e um seleto grupo de grandes empresas para a modernização e implantação de grandes sistemas de engenharia voltados ao escoamento da produção.

Circulação de granéis sólidos agrícolas: modais de transporte e logística
As grandes empresas que controlam, direta ou indiretamente, as diversas etapas do chamado "complexo soja", à montante e à jusante da produção propriamente dita, funcionam segundo as características do macro-circuito, isto é, acionando os pontos de modernização do território nacional e do mundo, para responder de forma competitiva aos mercados internacionais. A combinação de ações entre os agentes públicos e privados e a distribuição seletiva de grandes sistemas de transporte e logística na viabilização da produção de soja para exportação, têm provocado profundas transformações na organização e no uso do território brasileiro.

Alguns dos principais eixos de exportação da soja, controlados pelas grandes empresas, geram fatores de desagregação e ingovernabilidade, de enrijecimento e vulnerabilidade do território nacional.

A movimentação da produção (mais de 50 milhões de toneladas na última safra), tanto para a fluidez da soja em grãos, quanto de seus derivados (farelo e óleo refinado) exige, cada vez mais, velocidade, qualidade e baixos custos, uma vez que o frete é um componente muito significativo dos custos finais de granéis sólidos agrícolas (produtos de baixo valor agregado e grande volume). A competitividade deixa de ser um atributo apenas das empresas e passa a caracterizar também o espaço.

Nas novas regiões, o modal rodoviário, embora pouco adequado para o transporte de granéis agrícolas, ainda hoje é muito utilizado para o escoamento da soja, uma vez que as regiões Centro-Oeste e Norte do território brasileiro foram integradas aos centros dinâmicos do território brasileiro através de estradas, a partir da segunda metade do século XX.

A nova situação da produção de grãos no território brasileiro mobilizou as ações do Estado no que compete ao planejamento territorial na década de 1990. Além das conhecidas práticas que marcam as políticas neoliberais nos países da América Latina, tais como privatizações, concessões de serviços públicos a empresas privadas (com destaque para transportes e comunicações), flexibilidade normativa quanto ao mercado internacional, a proposta dos Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento (como um componente dos Planos Plurianuais - PPA) tomou o lugar de um verdadeiro planejamento territorial estratégico. Prevaleceu o atendimento a interesses de segmentos particulares de produtores de commodities, através de políticas de investimentos em corredores de transportes.
Os eixos de integração, na verdade, não integram as regiões brasileiras entre si, mas as regiões produtoras de commodities aos mercados internacionais, beneficiando, em primeiro lugar, as grandes empresas do setor. Isso pode ser observado através dos corredores que interligam as regiões produtoras dos novos fronts aos portos de exportação.

Corredores de escoamento de produtos agrícolas
O corredor Noroeste movimenta soja em grão produzida na Chapada dos Parecis (noroeste de Mato Grosso) e na região de Vilhena em Rondônia. A produção segue pela rodovia Cuiabá-Porto Velho (BR 163 / 364), passa pela hidrovia do Madeira (rios Madeira e Amazonas) até o porto de Itacoatiara (rio Amazonas), equipado com terminais graneleiros privados (gerenciados pela empresa Hermasa Logística, pertencente à Maggi). Calcula-se que o uso desse itinerário proporciona uma economia de aproximadamente US$ 23,50 por tonelada em relação a rotas tradicionais (para o sul).

O chamado corredor Centro-Norte, embora de grande importância estratégica, por enquanto é somente um projeto. O segmento hidroviário baseia-se na hidrovia Araguaia-Tocantins, cujas obras estão embargadas (por razões ambientais e institucionais). Se concluído, o corredor oferecerá duas alternativas: pelo rio Tocantins e ferrovias Norte-Sul e Carajás até o porto de Itaqui (MA); pelo rio Araguaia, deste para a ferrovia Norte-Sul utilizando-se um trecho rodoviário, e daí segue o mesmo trajeto da primeira variante.

Dois corredores rodoviários que escoam a soja em direção ao norte do território merecem destaque: 1) a rodovia Belém-Brasília e o porto de Vila do Conde, em Belém; e 2) a rodovia Cuiabá-Santarém, conduzindo o produto até os terminais graneleiros da Cargill, no porto fluvial de Santarém. A rodovia Cuiabá-Santarém encontra-se em condições precárias e já existem planos para a sua pavimentação (um trecho de mais de 900 Km), numa possível associação entre o poder público federal e a iniciativa privada.

Com isso, os portos de Itaqui / Ponta do Madeira (São Luis, MA), Santarém (PA), Itacoatiara (AM), Vila do Conde (Belém, PA) tem sido valorizados e modernizados devido à sua posição estratégica no movimento da soja para exportação.

Outro corredor importante é aquele constituído pela ferrovia Ferronorte. Esta chega ao município de Alto Taquari (MT) e, através da ponte rodo-ferroviária sobre o rio Paraná (na divisa entre os estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul), liga-se à malha ferroviária de São Paulo, atingindo o porto de Santos (SP) onde grandes empresas possuem terminais graneleiros privados. Pretende-se levar a ferrovia até Cuiabá (MT), Porto Velho (RO), Uberlândia (MG) e Santarém (PA).

Os crescentes recordes de produção nos novos fronts e a necessidade do escoamento da soja para os portos têm sobrecarregado todo o sistema de transporte no território brasileiro, ocasionando falta de caminhões e elevação do frete para outras cargas, como os produtos industrializados. O balanceamento da matriz de transporte é fundamental para melhorar a eficiência do transporte no Brasil.

Matriz de transportes
A matriz de transporte de produtos agrícolas em 1995, segundo o GEIPOT - Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes do Ministério dos Transportes, tinha o modal rodoviário como principal sistema utilizado (81%), seguido pelo ferroviário (12%) e hidroviário (3%). Para o transporte da produção agrícola dos novos fronts, o uso do modal rodoviário não é o mais recomendado devido, principalmente, à grande distância dos portos, mais de mil quilômetros, e às características dos produtos transportados, cargas volumosas e de baixo valor agregado. Os modais mais indicados para essa função são o ferroviário e hidroviário. De 1995 aos dias de hoje, observamos uma reorientação da matriz de transportes de granéis agrícolas em favor de hidrovias e ferrovias. Resta perguntar: estamos enrijecendo o território e hipotecando usos futuros, na medida em que o planejamento de transportes no Brasil assume a conformação de redes extravertidas para atender aos interesses de agentes envolvidos numa monocultura de exportação?


Ricardo Castillo é professor do Instituto de Geociências, Unicamp e Vitor Pires Vencovsky é aluno de mestrado no mesmo Instituto.

 
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Atualizado em 10/04/2004
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