Reportagens


 

Transportação

Carlos Vogt

A história de muitas cidades está ligada à história das vias de transporte - ferrovias e rodovias, principalmente - com as quais, muitas vezes, nasceram, se desenvolveram, estagnaram, ou mudaram seu ritmo de vida quando da mudança do traçado dessas estradas.

No estado de São Paulo, assim como para outras regiões do país, esse fenômeno foi tão importante que o recorte feito pelas estradas de ferro acabou criando verdadeiras regiões culturais com características comuns que transcendiam e até hoje transcendem - mesmo depois que perderam importância na geopolítica das comunicações - os limites administrativos dos estados.

É o que ocorreu com a Companhia Paulista de Estradas de Ferro, com a Araraquarense, com a Sorocabana, com a Mogiana, com g e não com j, que era assim que se grafava seu nome apesar de o Vocabulário Ortográfico mandar grafar com j, na regra geral de que os nomes de origem tupi em que o som ocorre devem ser escritos com j e não com g.

A Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, ligando Minas a São Paulo por diferentes entradas e saídas desses estados - Aguaí, Franca, Igarapava - estabeleceu zonas culturais às quais se integraram de forma ativa as regiões de Poços de Caldas, de São Sebastião do Paraíso, Cássia e Triângulo Mineiro, separado este último, física e administrativamente, do estado de São Paulo pelo Rio Grande.
A cidade de Ribeirão Preto era uma espécie de centro de referência dessa geografia cultural traçada pela Mogiana, e, desse modo, nós, todos os seus habitantes, pertencíamos a essa espécie de estado de espírito identificado pela expressão Alta Mogiana. A vida política, econômica, comercial, industrial, educacional, as aspirações, sonhos e vaidades sociais, tudo tinha Ribeirão Preto como referência, assim como, de certa forma, Campinas, carrefour da Paulista e da Mogiana, era também referência para toda a região em torno dela que hoje se busca transformar em metropolitana.

A história da Mogiana remonta à segunda metade do século XIX, sendo o ramal de Igarapava aberto em 1899 no trecho que se estendia da estação de Entroncamento até Jardinópolis, para, em 1905, alcançar Igarapava e depois, em 1914, chegar a Catalão, pouco antes de Uberaba, em pleno Triângulo Mineiro. Em 1979, foi desativada, primeiro para cargas, depois para passageiros e, em dez anos mais, dela só havia as estações soltas nos campos sem trilhos a pastar a solidão das lembranças do café, dos fazendeiros e dos colonos transportados no vai-e-vem da lentidão das locomotivas a lenha, das máquinas a diesel, das jardineiras sobre trilhos - as limusines -, dos troles com os trabalhadores da manutenção.

A Mogiana viraria Fepasa, seguiria novos traçados e com eles, nas novas políticas de incentivo ao transporte rodoviário, iria perdendo a importância estratégica e cultural que conhecera, importância tão grande, desse ponto de vista, comparável, como fator de integração e identidade, ao papel que depois seria desempenhado pela televisão na história das comunicações no estado de São Paulo e no país.

A Companhia Mogiana de Estradas de Ferro era tão fundamental para a cidade em que nasci - Sales Oliveira - que a ela deu nascimento, impondo-lhe inclusive o nome da estação contra o nome que os seus moradores preferiam para a cidade - Santa Rita, que seguiu, no entanto até hoje, como sua padroeira. A tentativa de conciliação no nome Santa Rita de Salles não teve também sucesso.

Francisco Salles de Oliveira Júnior, presidente da Companhia e pai de Armando Salles de Oliveira, futuro governador do estado de São Paulo e um dos líderes fundadores da USP, era quem se homenageava no nome que a cidade guardou, sem um l e sem o de, por atualização gráfica de modernismos formais.

Sales Oliveira era cortada ainda pela estrada de rodagem que levava também de São Paulo ao Triângulo Mineiro. Estrada de chão batido na maior parte de seu percurso e que eu palmilhei, estudante, todos os dias, para freqüentar o Ginásio Estadual de Orlândia e a cada 15 dias nas idas e vindas de Ribeirão Preto onde cursei dois anos do curso colegial clássico no Instituto de Educação Otoniel Mota.

Então, a coisa era assim: por trem, fagulhas; por estrada, lama e poeira.

Num caso e noutro, o uniforme galhardo para enfrentar essas adversidades tecno-naturais era o guarda-pó. E foi trajando um deles que realizei, menino, com minha mãe, em 1949, a viagem com que sonhava e que, com certeza, nela me sonho para sempre menino. Fui de Sales Oliveira a São Paulo, trocando de Comboio e de Companhia em Campinas - da Mogiana para a Paulista -, assistindo nas estações-triângulo às longas permanências da composição para abastecimento de lenha para as locomotivas, esperando entediado no entroncamento da infância impaciente os cruzamentos de outros trens a seguir em direção oposta à do desejo de chegar rápido, de aportar logo em São Paulo, na Estação da Luz, na luminosidade feérica da grande metrópole, tornada ainda maior na fantasia assustada do menino do interior.

A viagem durou 14 horas para um percurso de cerca de 400 Km, numa média de velocidade de 28 Km por hora. Em 1955, um ano depois das comemorações do 4º centenário da cidade, viajei com meu pai para São Paulo, novamente. A viagem durou cerca de 12 horas. Outras vezes, já morando na capital, para cursar o 3º ano do colegial no Roosevelt, da rua São Joaquim, na Liberdade, e depois a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da USP, fiz a mesma viagem em períodos de tempo progressiva e lentamente menores, até que o uso do trem fosse definitivamente substituído pelos ônibus da Cometa, partindo de Ribeirão Preto e rodando em tempo curtíssimo pela rodovia Anhangüera asfaltada: 5 horas.

O país, nos anos do desenvolvimentismo juscelinista, no final dos anos 1950, fez a opção pelo modelo rodoviário de comunicações por terra, abandonando pouco a pouco sua matriz ferroviária que se não era moderna o suficiente poderia ser modernizada o quanto era necessário. Brasília, a novacap do planalto central, entre os muitos símbolos em que se constitui, apresentou-se como ícone da metrópole alada, pelo plano piloto que a desfralda em plano aéreo, aeronave que singra as novas frentes da marcha para o centro-oeste e se estende em avenidas largas e generosas para o trânsito urbano dos carros. Brasília é, assim, o ícone em convivência da dupla opção em comunicações que marcaria a história do país a partir da segunda metade de século XX: o avião e o automóvel.

Essa opção, se trouxe benefícios, trouxe também problemas, menos em si própria, mas por excluir outras formas de comunicações - a navegação fluvial, a navegação costeira, as ferrovias - como alternativas boas e indispensáveis ao equilíbrio eficaz do sistema de transportes no país.

Hoje, como é sabido, as deficiências desse sistema, além de penalizarem as populações - o que já é gravíssimo - contribuem de forma significativa para a composição do alto custo de nossos produtos nos mercados nacionais e internacionais, o famigerado custo Brasil.

Fazem-se tentativas de recuperação da malha viária, anunciam-se investimentos em infra-estrutura para a modernização de novas estradas e a recuperação de nossas ferrovias, adotam-se modelos de gestão sofisticados em parcerias entre o público e o privado que dão resultados altamente diferenciados na qualidade das rodovias, mas que implicam em custos altos de manutenção para os usuários, como no estado de São Paulo: a malha nacional continua cara, precária e perigosa e as soluções sistemáticas, sistemativamente distantes e adiadas.

A Mogiana, em que hoje só posso viajar pelos trilhos de minhas lembranças, tampouco serviria às necessidades reais de um país transformado e ainda transtornado pelas dúvidas e apreensões de um progresso desacompanhado de bem estar.

A solidão social das viagens de nossas mudanças culturais, políticas e econômicas poderia ao menos ser abreviada se para ela pudesse ter contribuído a transformação da Mogiana, não no nome de um leito abandonado em avenida carroçável, mas na transportação veloz que de Sales Oliveira chegaria em São Paulo em 3 horas. A infância passaria mais depressa, mas a lembrança do conforto seria mais duradoura.

 
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Atualizado em 10/04/2004
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