Desenvolvimento de produtos nas montadoras de automóveis no Brasil
Flávia Consoni
O desenvolvimento e crescimento da indústria automobilística brasileira ocorreu em um período em que o mercado encontrava-se fechado às importações de veículos e, portanto, mantinha-se protegido da competitividade internacional. Nesse ambiente, não obstante algumas exceções, as montadoras produziam no Brasil veículos que já haviam sido desenhados e introduzidos em outros países alguns anos antes. As estratégias de produto então dominantes visavam produzir automóveis que suprissem as demandas do mercado interno.
A baixa competitividade no mercado interno favorecia o longo ciclo de vida dos veículos que, em média, eram produzidos por 10 a 15 anos até serem retirados de linha. Um bom exemplo foi o Opala (GM), produzido no país por 23 anos. Para que tais veículos continuassem atrativos ao consumidor, as montadoras promoviam periodicamente o redesenho parcial ou superficial do veículo ou de partes dele, de forma a manter o veículo no mercado, porém sem grandes alterações no projeto básico.
A abertura da economia brasileira, realizada nos primeiros anos da década de 90, aliada a uma série de políticas direcionadas para o setor automotivo, contribuíram para imprimir uma nova dinâmica na atuação das montadoras de automóveis localizadas no país, especialmente nas suas estratégias de desenvolvimento de produtos (DP). O mercado brasileiro, então dominado por Volkswagen, Fiat, Ford e General Motors (com a marca Chevrolet), incorporou diversas novas montadoras que estabeleceram unidades produtivas no país. No segmento de automóveis e comerciais leves, destacam-se: Toyota, Honda, Renault, Peugeot, Citroën, Audi, Nissan, Land Rover, Mitsubishi e Mercedes (grupo Daimler Benz). Como resultado, ocorreu uma intensificação no lançamento de veículos no Brasil na década de 90, que foi três vezes maior do que o observado nos anos 80. Além disso, a explosão no consumo de veículos importados, facilitado pela abertura do mercado, deixou evidente a necessidade de mudanças em termos dos padrões de qualidade dos carros nacionais e de renovação e modernização do portfólio dos produtos, obsoleto em relação aos padrões internacionais.
Dado esse contexto, e considerando que o segmento das montadoras de automóveis no Brasil é completamente internacionalizado, composto na sua totalidade por empresas multinacionais de capital estrangeiro, cabe-nos questionar sobre qual o conteúdo de conhecimento, gerado no Brasil, que é incorporado nesses veículos. Dito em outras palavras, qual a relevância da participação da engenharia brasileira no DP automotivos em âmbito global? As montadoras locais têm alguma autonomia para projetar o produto ou partes dele no Brasil, ou o desenvolvimento ocorre integralmente no exterior, restando às unidades locais somente atividades tecnologicamente menos complexas, ligadas à tropicalização?
Devemos considerar que uma participação mais pró ativa da engenharia brasileira no desenvolvimento de veículos no Brasil, com atividades que requerem maior conhecimento técnico científico, tende a gerar empregos mais qualificados e melhor remunerados no país. Além disso, isso gera uma série de efeitos na cadeia dos fornecedores de autopeças, que também tendem a participar desses desenvolvimentos, estimulando o exercício de atividades mais qualificadas. Da mesma forma, a intensidade das atividades de DP no Brasil pode motivar o desenvolvimento de pesquisas em cooperação com universidades e centros de pesquisa locais à medida que surjam demandas referentes à pesquisa tecnológica.
Para respondermos a essas questões devemos, primeiro, entender o que significa realizar atividades de DP na indústria automobilística brasileira . Nossos estudos apontam para uma grande ênfase em atividades que objetivam adaptar os carros às condições específicas do país, processo esse que ficou conhecido como tropicalização. Aliás, tais atividades têm sido uma necessidade para todas as montadoras localizadas no Brasil. Por condições específicas entenda-se aqui: a má condição das estradas brasileiras, o que demanda reforços especiais no sistema de suspensão; qualidade do combustível e combustível alternativo, o que demanda maior adequação do projeto e dos materiais (caso do álcool e também da gasolina que contém álcool na sua composição); diferenças de clima e temperatura; baixa renda da população, que requer o lançamento de carros menos sofisticados e de baixo custo; preferências de consumo do brasileiro; etc.
No entanto, entre algumas montadoras, essa tendência geral tem evoluído para um patamar mais complexo, com avanços nas atividades de engenharia local voltadas à construção de veículos derivativos. O conceito de derivativos abrange a geração de versões diferenciadas de veículos, desenvolvidos a partir do emprego de uma base comum, chamada tecnicamente de plataforma. As formas mais comuns de derivativos incluem as versões sedan, perua e picape.
Por sua vez, o conceito de plataformas refere-se a um conjunto relativamente grande de componentes e sistemas que, uma vez conectados entre si, formam uma base comum a partir da qual serão desenvolvidos uma série de produtos diferenciados. Sendo assim, a partir de uma única plataforma pode-se construir uma série de produtos, que embora sejam diferentes externamente, podem ser montados a partir de um mesmo processo de produção, compartilhando ferramentas e máquinas, ao passo que podem ser adaptados aos diferentes mercados de destino. Normalmente, as matrizes das montadoras e/ou os grandes centros de P&D dessas empresas, localizados no exterior, desenvolvem o projeto básico das plataformas, que será re-trabalhado pela engenharia brasileira, dando forma aos derivativos. Para ficarmos em apenas alguns exemplos recentes de derivativos desenvolvidos pela engenharia brasileira temos: Polo Sedan, derivado da plataforma européia Polo (VW); e Corsa Sedan e Picape Montana, derivados da plataforma também européia do Corsa (GM).
A análise anterior foi apresentada de forma genérica, tratando as atividades de DP no Brasil sem individualizar empresas e atividades. No entanto, é importante considerar que não obstante o número elevado de montadoras instaladas no Brasil, as estratégias de atuação local dessas empresas têm sido divergentes quanto ao ritmo da implementação de infra-estrutura tecnológica local, volume de recursos humanos em atividades técnicas e investimentos na promoção da engenharia local. Ou seja, investir na engenharia automotiva brasileira e no DP local não tem sido uma opção estratégica para todas essas empresas, o que significa que algumas montadoras de automóveis tendem a contribuir muito mais do que outras para a promoção do desenvolvimento tecnológico do país e com a geração de conhecimentos técnicos locais. Isso significa que não é possível elencar apenas uma única estratégia de produto. Ao contrário, notamos que as subsidiárias das montadoras localizadas no Brasil têm adotado diferentes estratégias, que variam entre orientações mais ou menos centralizadas, seguindo as determinações das suas matrizes e mantendo relação com as capacitações locais já acumuladas.
Particularmente no caso das montadoras que estão há mais tempo operando no país (GM, Ford, VW e Fiat), encontramos maior volume de investimentos em infra-estrutura tecnológica e na formação de pessoal técnico qualificado. Como conseqüência, tais empresas têm avançado mais nas atividades locais de DP. Todas essas empresas realizam no Brasil atividades de tropicalização de veículos e atuam no desenvolvimento de derivativos de veículos locais; algumas em conjunto com suas matrizes, outras de forma independente, executando o projeto autonomamente.
Cabe acrescentar que em algumas montadoras, as atividades de DP têm evoluído para um patamar mais complexo, com atividades que vão além do desenvolvimento de derivativos locais. Como conseqüência, tais montadoras têm alcançado um novo posicionamento junto à matriz, atuando como parceiras no desenvolvimento de veículos para outros mercados, havendo a possibilidade delas se tornarem responsáveis pelo desenvolvimento completo de plataformas de veículos, particularmente para países em desenvolvimento e de baixa renda, cujas características se assemelham às do Brasil.
Os veículos Meriva (GM) e o Fox (VW), destacam-se como os exemplos mais proeminentes de DP realizado pela indústria automobilística no Brasil. Em ambos os projetos, a engenharia brasileira foi a responsável técnica por tais desenvolvimentos, o que envolveu conhecimentos e atuação dos engenheiros brasileiros em todas as etapas do processo. Em ambos os casos, os veículos foram concebidos para atender aos padrões de consumo dos mercados europeus, em que os níveis de exigências estão entre os mais elevados do mundo. No entanto, o lançamento desses veículos ocorreu primeiro no Brasil. Ainda assim, é importante ressaltar, a promoção dos esforços tecnológicos, assim como a intensificação das atividades de engenharia e, consequentemente, o acúmulo de capacitações internas, têm variado em grau e complexidade mesmo entre as montadoras que mais avançaram no DP no Brasil.
Em contraste com o cenário acima descrito, no caso das montadoras que vieram para o Brasil nesta última década, não obstante as diferenças quanto ao montante de investimento local realizado, todas elas têm lançado no país produtos que foram concebidos, projetados e desenvolvidos no exterior, normalmente na matriz dessas empresas. Em termos das suas estratégias de DP, tais montadoras tendem a realizar no Brasil apenas atividades ligadas ao processo de tropicalização dos veículos às condições locais, sempre sob a coordenação externa. Um objetivo comum a todas elas tem sido consolidar suas unidades produtivas no Brasil e promover a integração da cadeia de fornecedores locais, objetivando alcançar maior nacionalização das peças automotivas.
A baixa escala de operações locais mantém relação com as poucas atividades locais de DP. Estas montadoras têm se instalado no Brasil recentemente e, devido ao baixo volume de vendas, as operações brasileiras simplesmente não conseguem amortizar os gastos advindos das atividades de DP locais. Em 2002, por exemplo, a produção de todas as montadoras instaladas no Brasil na década de 90 representou cerca de 8,5% do total produzido pela indústria automotiva no Brasil, sendo que suas vendas locais (incluindo produção local e veículos importados de mesma marca) responderam por 13% de participação do mercado .
Cabe por fim acrescentar que as montadoras de automóveis realizam pouco ou quase nenhuma pesquisa tecnológica no Brasil, ou seja, atividades mais sofisticadas, que incorporam maior conhecimento técnico científico e que dão sustentação às atividades de engenharia de forma geral. Essa inclinação explica, por exemplo, o fato de existir vínculos bastante frágeis com as universidades brasileiras e institutos públicos de pesquisa; o oposto do que ocorre com as matrizes dessas empresas que têm como política contratar pesquisas e estabelecer cooperação de longo prazo com tais instituições nos seus países de origem. Como conseqüência, as matrizes e/ou os centros externos de P&D continuam a ser a fonte de informação e de conhecimentos tecnológicos mais complexos para as montadoras de automóveis instaladas no Brasil.
Entretanto, algumas exceções merecem ser destacadas considerando que certas montadoras instaladas no Brasil passaram a fazer dos esforços tecnológicos uma atividade contínua, passando mesmo a gerar tecnologias que se tornaram referências nas suas corporações. Os exemplos mais comuns referem-se às atividades de: reforço da suspensão do veículos; combustível com etanol; motor de baixa cilindrada (até 2.0 cc). Observem nesses casos que as várias competências que foram acumuladas por essas subsidiárias estão associadas às particularidades do mercado e das demandas do Brasil. Havia espaço para as montadoras no Brasil avançarem no desenvolvimento dessas tecnologias que, ou não faziam parte das prioridades de desenvolvimento da matriz, ou simplesmente não eram desenvolvidas por ela. Portanto, algumas empresas conseguiram identificar um nicho de mercado e se especializaram nele a ponto de receberem o reconhecimento das suas corporações. Outra característica bastante valorizada pelas matrizes tem sido a capacidade que algumas montadoras localizadas no Brasil possuem, de proporem soluções de baixo custo que são incorporadas no desenvolvimento dos veículos, característica importante quando se trata de atrair e realizar atividades de engenharia no país.
Flávia Consoni é socióloga,
doutoranda no Departamento de Política Científica
e Tecnológica, do Instituto de Geociências, da Unicamp.