Para
navegar, cuidado é preciso
Maurício
Galinkin
Este
texto busca enfatizar a necessidade de serem realizados estudos
de impactos ambientais, sociais e econômicos prévios
à ampliação da navegacão de carga
em nossos rios. Mais ainda, que o conhecimento científico
existente seja valorizado e utilizado nessas análises.
As
hidrovias industriais e a navegação natural
Os
rios têm características que permitem sua navegação
natural dentro de limites, em cada trecho ou em sua totalidade.
A existência de cachoeiras, afloramentos rochosos, pedrais
e corredeiras, curvas fechadas (pequeno raio de curvatura), estreitamento
das margens e a profundidade do canal de navegação
impõem limitações quanto à dimensão
e capacidade de transporte das embarcações. Os períodos
de águas altas e baixas também são fatores
que influenciam sazonalmente essa questão.
Uma
hidrovia industrial geralmente propõe-se a estabelecer
um processo de transporte de mercadorias que atenda a um alto
volume de cargas e independa de características geomorfológicas
e sazonais dos rios a serem utilizados como via de escoamento.
Para isso, os leitos dos rios sofrem intervenções,
para adequá-los às características dos comboios
necessários para dar escala econômica ao transporte
pretendido. Além disso, instalações portuárias,
estradas de rodagem e ferroviárias são essenciais
para permitir o fluxo de transporte no volume e velocidade necessários
à escala adotada.
O
transporte hidroviário tem sido apontado como adequado
para movimentações a granel (ou seja, sem embalagem)
de cargas de baixo valor unitário e de grande volume. Coisas
como minérios e grãos, por exemplo.
Tanto
a navegação natural quanto as hidrovias (nesse texto,
as referências a hidrovias significam hidrovias industriais)
provocam impactos, seja na instalação de portos,
seja na operação dos comboios. E por essa razão,
qualquer intento de ampliar a capacidade de transporte de uma
via fluvial natural deve ser objeto de um Estudo de Impacto Ambiental
(EIA) independentemente de haver ou não intervenções
no leito do rio. Os impactos acontecem, alguns deles visíveis
a olho nu, como será mostrado neste breve artigo.
O
simples passar de um comboio com milhares de toneladas de carga,
com os cascos de suas chatas (embarcação de estrutura
resistente, com proa e popa iguais, fundo chato e pequeno calado,
em geral sem propulsão própria, para transporte
de carga pesada) a menos de meio metro acima do fundo do rio,
provoca alterações nas várias camadas de
água, levanta sólidos anteriormente depositados
no leito do rio que alteram os níveis de turbidez da água
e, conseqüentemente, modificam a penetração
da luz solar. Uma passagem eventual, semanal, por exemplo, poderia
dar tempo para que a situação voltasse ao normal,
com baixo impacto permanente. Passagens mais freqüentes de
comboios merecem a realização de estudos de impactos
ambientais (EIA), independentemente se haverá ou não
intervenções no leito do rio.
Retificação
"na marra"
Na última década surgiram projetos para tornar hidrovias
industriais os rios Paraguai-Paraná e Araguaia/das Mortes-Tocantins.
Os dois projetos têm como objetivo principal transportar
soja para o mercado externo e incentivar a expansão de
seu plantio no Centro-Oeste brasileiro. Seus defensores argumentam
que iriam baixar os custos de transporte dessa commodity, o que,
entretanto, não foi provado (ver Cebrac/ICV/WWF, 1994,
EDF/Cebrac, 1997 e Galinkin, 2000).
Os
impactos ambientais e sociais do primeiro projeto citado, em especial
no Pantanal brasileiro, e a articulação social e
produção técnica resultantes da Coalizão
Rios Vivos (participando ONGs, movimentos sociais, instituições
técnicas/científicas e cientistas independentes
do Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai) fizeram
com que o governo brasileiro abandonasse temporariamente o projeto
de retirar afloramentos rochosos essenciais ao funcionamento do
Pantanal e "ampliar o raio de curvatura" (retificação
do curso, em português sem eufemismos) em inúmeros
pontos do rio Paraguai.
Comboio
manobrando sobre a margem do rio
|
Curvatura
de comboio feita de modo correto
|
Fonte:
M. A. S. Neves - Avaliação preliminar dos efeitos
produzidos por barcaças no leito e margens do rio Paraguai,
Coppetec, Rio de Janeiro, dez 1999.
A
navegação no alto rio Paraguai, no entanto, sofreu
um upgrade com a utilização de embarcações
de maior porte e mais capacidade de transporte, sem que se providenciasse
uma fiscalização efetiva de sua operação
ou estudo dos seus impactos ambientais.
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Danos
às margens produzidos por embate dos comboios |
Fotos:
Célio Apolinário/Fundação Cebrac |
Uma
expedição científica (Cebrac, 2000; WWF,
2001) para avaliar esses impactos foi realizada entre 3 e 14 de
novembro de 1999, no trecho de Cáceres (MT) e Porto Murtinho
(MS). Seus resultados foram alarmantes, conforme pode ser visto
nas fotos aqui apresentadas, que mostram uma ação
efetiva de retificação das curvas do rio Paraguai
pelo embate das chatas contra as margens do rio, que apresentam
um solo frágil. Para não desmembrar os comboios
e passar chata por chata em curvas estreitas e fechadas, o que
elevaria o tempo de viagem e gasto de combustível, as embarcações
são deliberadamente lançadas contra as margens do
rio, em um processo de avanço e recuo que as permite passar,
danificando fortemente as margens. O uso das margens como "apoio"
à navegação surpreendeu - pela total quebra
de normas técnicas e ilegalidade - o engenheiro naval que
participou da expedição e desenhou o croqui do processo
adotado, para melhor visualização, também
aqui apresentado para informação dos leitores.
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Cientistas
trabalhando no rio Paraguai
Fotos: Célio Apolinário/Fundação
Cebrac |
A
concorrência das ferrovias
Além das dificuldades naturais, os dois projetos de hidrovia
aqui focalizados enfrentam a concorrência de ferrovias -
existentes ou em construção - que apresentam menores
custos operacionais e maior rapidez no transporte.
As
cargas na hidrovia Paraguai-Paraná percorrem o dobro da
distância para alcançar um porto marítimo
bem mais ao sul (Nueva Palmira, no Uruguai, ou Buenos Aires, na
Argentina), comparativamente ao uso do trecho ferroviário
de Corumbá-Santos. Seus custos (ver "Quem Paga a Conta?",
Cebrac/ICV/WWF, 1994) superam os da ferrovia e certamente exigirão
um forte subsídio governamental para operar de forma competitiva.
A
ferrovia Norte-Sul faz praticamente o mesmo trajeto da hidrovia
proposta para os rios Araguaia-Tocantins, e de acordo com os dados
oficiais apresentados em seus EIA/Rima a ferrovia terá
fretes menores que a proposta hidrovia (Galinkin, 2000). Com
relação ao trecho do rio das Mortes, a Ferronorte,
com embarque em Rondonópolis (MT) e transportando dessa
cidade ao porto de Santos (SP), também apresenta-se altamente
competitiva com o transporte fluvial citado (idem, ibidem).
O
transporte "verde": a questão energética
Para concluir este artigo, mostra-se a seguir o resultado de um
estudo conduzido pelo professor Baumel, da Universidade de Iowa
(USA), em que foram levantados os consumos de combustível
em diversos modais de transporte, nos Estados Unidos da América
do Norte, utilizados para transporte de grãos.
O
avanço da tecnologia ferroviária e a utilização
de materiais mais leves na confecção de vagões
fizeram com que caísse o mito de ser o transporte fluvial
mais correto ambientalmente (por gastar menos energia). De acordo
com os dados mostrados na Tabela 1, a seguir, o transporte ferroviário
de grãos já gasta menos combustível que o
fluvial, por tonelada-quilômetro útil - tku (os dados
da tabela estão em tonelada-milha útil), em alguns
percursos pesquisados.
Tabela
1
|
t-milhas
úteis (tmu) por
galão de combustível
|
Modo
de transporte
|
1985
BHL |
Estudo
1998 |
carretas
(50 % carregadas) |
90.5 |
120.6 |
chatas
(35 % retorno) |
|
|
UMR
- Minneapolis para rio Missouri |
526.0 |
306.3 |
UMR
- rio Missouri para o rio Ohio |
526.0 |
560.0 |
LMR
-rio Ohio para New Orleans (NOLA) |
548.3 |
644.0 |
Ferrovias
- trens com 100 vagões de 110-ton cada |
|
|
Para
NOLA |
|
|
Quatro-
SD40s |
640.1 |
687.8 |
Três - SD60s |
(-) |
730.2 |
Três
- C40-8s |
(-) |
689.8 |
Navios
oceânicos (inteiramente cheios) |
1,240.3 |
2,342.2 |
Fonte: Baumel (1999)
O estudo de Baumel conclui que o transporte mais eficiente - em
termos de menores gastos de combustível - varia de acordo
com a origem e destino dos grãos, e que cada destino apresenta
uma combinação própria entre os três
diferentes modais de transporte.
Não
se pode previamente definir, portanto, essas combinações
a partir do pressuposto que um modal consuma menos combustível
por peso transportado que os outros meios de transporte.
Conclusões
O transporte fluvial de cargas no Brasil pode, naturalmente, ser
útil ao país mas sua implantação deve
ser precedida dos estudos ambientais, econômicos e sociais
para uma correta avaliação de seus impactos positivos
e negativos. Não se deve simplesmente mimetizar o que ocorreu
nos países do capitalismo central e buscar aumentar - a
qualquer custo - o percentual de participação do
transporte fluvial de cargas no total transportado no país.
Todas alternativas devem ser analisadas e as informações
técnicas e científicas mais atualizadas precisam
ser incorporadas nessa avaliação.
Maurício
Galinkin é jornalista e engenheiro da Fundação
Cebrac.
Referências bibliográficas:
Baumel, C.P. e Gervais, J.P., julho de 1999 - Estimates of
Fuel Consumption in Transporting Grain from Iowa to Major Markets
by Alternatives Modes.
Cebrac,
2000. Realidade Pantanal: Impactos Ambientais da Navegação
Atual no Alto rio Paraguai. Relatório da expedição
científica Pantanal Cebrac/WWF, que percorreu o rio Paraguai
entre Cáceres (MT) e Porto Murtinho (MS), entre 03 e 14
de novembro de 1999, Brasília.
Cebrac/ICV/WWF,
1994. Hidrovia Paraguai-Paraná: Quem Paga a Conta?,
Brasília.
EDF/Cebrac,
1997. O Projeto de Navegação da Hidrovia Paraguai-Paraná.
Relatório de uma Análise Independente, Brasília/Washington.
Galinkin,
M, (ed.), 2000. Análise do EIA/RIMA do Projeto da hidrovia
Araguaia-Tocantins. Relatório do Painel de Especialistas
Independentes, Cebrac: Brasília.
WWF,
2001. Retrato da Navegação no Alto Rio Paraguai.
Relatório da Expedição Técnica realizada
entre os dias 3 e 14 de novembro de 1999, no Rio Paraguai, entre
Cáceres (MT) e Porto Murtinho (MS), Brasília.