Terra
de Fé
Vitor
Barletta Machado
"O
impulso religioso, a busca de um sentido que transcenda o espaço
limitado da existência empírica neste mundo, tem
sido uma característica perene da humanidade (isto é
um afirmação antropológica, e não
teológica - um filósofo agnóstico ou mesmo
ateu pode muito bem concordar com ela). Seria necessário
algo como uma mutação de espécie para suprimir
para sempre esse impulso." (Berger 2001: 19)
"É
um aspecto interessante que deve chamar a atenção
da sociedade. Como é que nós, que somos de esquerda,
vamos sempre à missa? Para nós, não existe
contradição nenhuma nisso. Ao contrário:
a nossa base usa a fé religiosa que tem para alimentar
a sua luta, que é uma luta de esquerda, que é uma
luta contra o Estado e contra o capital." (Stedile &
Fernandes 1999: 131)
No ano
de 1995 um pastor neopentecostal chutou uma imagem da Nossa Senhora
Aparecida na televisão. Provocou uma reação
nacional, inclusive entre os evangélicos. Ninguém
nega a religiosidade do povo brasileiro. Alguns até diriam
que este é o único modo que encontram de enfrentar
uma realidade nada agradável, de violência, miséria,
abandono. Na ocupação de nosso território já
se delineava este perfil, através da ação de
jesuítas. Depois deste momento vários foram os papéis
que a Igreja Católica como instituição exerceu
em nossa história. Legitimadora da escravidão do negro;
subordinada no padroado aos desmandos do poder moderador; oposição
ao império no amanhecer republicano. Tamanha foi a sua presença
que aqui tornou-se conhecida a expressão "catolicismo
popular", ou ainda "religiosidade popular", indicando
justamente a apropriação dos elementos da religião
católica pelas camadas mais humildes do povo brasileiro.
Quando pensamos nesta forma de manifestação é
que nos aproximamos do outro tema deste artigo, que é a luta
pela terra. Podemos começar lembrando do papel da religiosidade
popular em movimentos como Canudos e o Contestado. O primeiro conduzido
pela figura de Antônio Conselheiro, mistura de pregador e
crítico. Nos relatos sobre o cerco à cidade de Canudos
destacam-se as orações dos sertanejos que tomavam
as noites depois de um dia de lutas. No Contestado, figuras como
o monge José Maria incorporaram o tipo de papel exercido
pelo Conselheiro, organizando camponeses pobres que haviam sido
expulsos de suas terras vendidas pelo governo para empresas estrangeiras.
Chegando nos anos cinqüenta temos uma modificação
neste padrão de luta pela terra no Brasil, com a formação
das Ligas Camponesas, associações de trabalhadores
rurais com responsabilidades na prestação de serviços
(acesso a atendimento médico, por exemplo) e auxílio
nas crises (fornecimento de alimentos, formação de
mutirões nas épocas de colheita), através de
um trabalho efetuado pelo Partido Comunista do Brasil, que procurava
tentar estimular a conscientização do agora chamado
camponês, visando a transformação revolucionária
socialista da sociedade brasileira. Os grandes proprietários
de terras logo entraram em confronto com as Ligas, pois antes tais
serviços eram fornecidos por eles aos trabalhadores, na forma
de uma troca de favores, expresso normalmente no apoio político.
As Ligas procuravam defender os interesses legais dos trabalhadores,
recorrendo à justiça sempre que era necessário
para tentar fazer valer os direitos dos trabalhadores rurais. Justamente
por isto lutaram para que o Estado elaborasse as leis necessárias
à defesa desses trabalhadores. Em 1963 foi aprovado o Estatuto
do Trabalhador Rural, mas a prática mostrou que ele fora
feito apenas para acalmar os ânimos dos trabalhadores, pois
suas determinações nunca foram cumpridas.
Neste período surgem também os sindicatos rurais,
como resultado do trabalho de padres e seminaristas no campo, fato
confirmado em pesquisa de Novaes, a qual afirma que "...os
sindicatos só se viabilizavam nos municípios em que
o pároco local também abraçou a idéia."
(Novaes, 1987: 121). Os trabalhadores da diretoria destes sindicatos
eram selecionados entre os que se destacavam no conjunto dos fiéis,
que mostravam já exercerem certa liderança. As Ligas
Camponesas também passaram a se organizar na forma de sindicatos,
surgindo as denominações de "Sindicatos de Padre",
os surgidos pela ação da Igreja Católica, e
"Sindicato da Liga", derivados daquela organização.
A função básica desses sindicatos era fornecer
ajuda legal aos trabalhadores rurais, através de advogados,
quando houvesse alguma disputa com relação aos direitos
trabalhistas ou à posse de terras. Também assumiram
a função de dar assistência médica e
mesmo alimentar, nas épocas de maior dificuldade.
Com o início da ditadura militar no Brasil (1964), a ação
destes sindicatos ficou dificultada e acabaram por deixar de existir,
pois seus líderes foram assassinados, presos ou exilados.
Mas entre 1979 e 1980, no bojo da luta pela redemocratização,
com as lutas pelo fim da ditadura surge, no sul do país,
uma nova forma de pressão desses trabalhadores, com ocupações
organizadas por dezenas ou centenas de famílias. Aqui novamente
se destaca a atuação da Igreja Católica, através
de diversos agentes, religiosos ou leigos, trabalhando em Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs), definidas oficialmente pela Igreja Católica
como o "...lugar onde se torna possível - a nível
de experiência humana - uma intensa vivência da realidade
da Igreja como família de Deus." (CNBB, 1995: 137).
A base comum do trabalho dos agentes religiosos nas comunidades
era a interpretação dos textos bíblicos do
Gênesis e do Êxodo, relatando a história do povo
Hebreu, fugindo da escravidão do Egito para a Terra Prometida
por Deus. Neste contexto é que são organizados a Comissão
Pastoral da Terra (CPT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra
(MST), como resultados de uma mobilização que começou
partindo da leitura da Bíblia, passando para uma ação
de conquista política1.
Uma pesquisa do Vox Populi divulgada pela revista Veja em dezembro
de 2001, revelava que 99% dos brasileiros acreditam em Deus e 83%
na vida eterna no paraíso. Outro dado interessante da mesma
pesquisa mostra que tal fato não se restringe às camadas
menos favorecidas da nossa sociedade, pois 70% dos entrevistados
com nível superior de ensino acreditavam na vida após
a morte, caindo para 61% entre os de nível médio,
58% para os de escolaridade entre 5a e 8a série e 58% entre
os analfabetos ou que cursaram até a 4a série. Em
uma edição da mesma revista de dez anos antes aparecia
anunciado na capa "A decadência do catolicismo no Brasil".
Passado o tempo o número dos brasileiros que se declaram
católicos permanece na casa dos 80%, contra 13% de evangélicos
e 7% para as demais religiões. Mesmo considerando-se que
tal número não indique realmente o número de
fiéis praticantes do catolicismo, nem mesmo revele o número
de conversões, reconversões e duplas, até mesmo
triplas adesões, é significativo destacar a permanência
do elemento religioso em nossa sociedade2.
Também podemos testemunhar as representações
religiosas adotadas pelo MST em suas manifestações,
além da importância da mística, reconhecida
por suas lideranças, conforme declarado na citação
da fala de Stedile no início deste artigo3.
A busca do sentido de que fala Berger ainda se revela forte na organização
das populações rurais ou das que desejam retornar
para a terra.
Notas:
1.
Diversos membros deste movimento participaram da fundação de diretórios
do Partido dos Trabalhadores (PT) em suas cidades.
2. Tanto que uma revista como a Super
Interessante, dedicada a popularizar discussões científicas, lançou
uma nova revista intitulada Revista das Religiões - O mundo da fé,
depois do sucesso de edições dedicadas a temas religiosos.
3. Fala que também conjuga o ideal
religioso católico com a busca do socialismo.
Bibliografia
ALCÂNTARA, Eurípedes. (1991), "Fé
em desencanto". Veja, no (edição) 1214, 32-38.
BERGER, Peter. (2001), "A Dessecularização
do Mundo: uma visão global". Religião e Sociedade,
n° 01: 09-23.
CNBB. (1995), A Evangelização no Presente e no
Futuro da América Latina. Conclusões: Puebla.
São Paulo: Edições Loyola, 8a ed.
KLINTOWITZ, Jaime. (2001), "Um povo que acredita".
Veja, no (edição) 1731.
NOVAES, Regina Reyes. (1987), De Corpo e Alma - Catolicismo,
Classes Sociais e Conflitos no Campo. Tese de Doutorado, USP,
São Paulo.
STEDILE, João Pedro, FERNANDES, Bernardo Mançano.
(1999), Brava Gente - A trajetória do MST e a luta pela
terra no Brasil. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo.
Vitor
Barletta Machado é Mestre em sociologia pela FFLCH/USP, doutorando
em Ciências Sociais pelo IFCH/UNICAMP.
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