Uma
viagem à Terra sem Males
Durante
dois dias estivemos com os trabalhadores do acampamento Terra sem
Males, do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), situado
a cerca de 27 km da cidade de São Paulo, à direita
da rodovia Anhanguera, em uma área da Sabesp que estava destinada
a um lixão. O objetivo de nossa viagem era, através
do convívio no acampamento, criar um panorama para o leitor
de como esse povo vive, se organiza, seus sonhos e dificuldades.
Vista da entrada do acampamento Terra sem Males
Fotos: Alessandro Piolli e Susana Dias
A caminho
do acampamento líamos Terra sem Mal: o profetismo tupi-guarani
de Hélène Clastres. Além da coincidência
com o nome do acampamento, inspirado na Campanha da Fraternidade
de 2002, encontramos muitos paralelos entre os povos tupis e guaranis
e os povos sem terra. Como não tinham fazendas, a única
saída para estes povos indígenas era buscar sempre
terras novas, a fim de encontrar nelas a imortalidade e o descanso.
Existem muitos relatos das migrações dos tupis ou
guaranis em busca da Terra sem mal. Estas migrações
ilustravam possíveis saídas para a crise vivida pelas
sociedades tupis-guaranis.
O objetivo
de lançarem-se nessa aventura coletiva, e enfrentarem os
riscos da caminhada parecia estar tanto na experiência de
percorrer o caminho, quanto na conquista da terra. Aliás,
mais do que uma conquista, a nova terra precisava ser construída
pelos povos indígenas em novas bases. A viagem era interminável
e a migração em busca da "Terra sem mal"
só acabou por falta de migrantes.
Os
trabalhadores do MST também migram em busca de novas terras.
Desejam construir nesse espaço, relações diferentes
não apenas com a terra, mas entre os próprios seres
humanos. "A gente não está aqui só esperando
a terra. Estamos aprendendo a viver em comunidade, passando por
uma experiência, para quando chegar na terra sabermos fazer
diferente", comenta Zé Antônio, morador do acampamento
Terra sem Males. Uma migração em busca de uma terra
sem as crises da sociedade, que não apenas as crises da agricultura,
mas as crises de uma sociedade cada vez mais baseada no lucro e
na individualidade.
"O
acampamento funciona como uma roda"
Na
chegada ao acampamento somos recebidos por Neide, Francisco e Zé
Antônio. Já no barraco, tomando café, ficamos
sabendo que os três fazem parte da coordenação
do Terra sem Males. Francisco nos conta que no começo de
todo acampamento é feita uma grande assembléia com
os mais jovens e os mais velhos no movimento. Nesta reunião
as famílias decidem em que setor gostariam de ficar e formam-se
os grupos. Todos os acampamentos do MST se organizam em onze
setores: saúde, estrutura, educação, segurança,
secretaria, cultura e lazer, coordenação, comunicação,
produção, higiene e almoxarifado.
"Para
manter uma organização no acampamento, esses setores
têm que funcionar. Como se fosse uma roda, quando uma engrenagem
da roda quebra, todos param", diz Francisco. Nessa primeira
reunião, as famílias também votam o próprio
estatuto
e escolhem um coordenador que tem que participar semanalmente de
um reunião com todos os outros coordenadores e expor as dúvidas
e problemas. Todos no grupo têm que cobrar o cumprimento das
regras. Zé Antônio acredita que o fato das leis que
regulamentam a vida no acampamento serem definidas pelo próprio
grupo, "permite que cada um tome direção da própria
vida e que valorize o coletivo. Isso é importante porque
nós queremos resolver tudo no coletivo".
"O
coletivo é nossa única saída"
Após
muita conversa, saímos com Zé Antônio para ver
a horta comunitária. No caminho, em volta dos barracos, muito
milho, alface, couve, boldo, cebolinha, manjericão, hortelã
e muitas, muitas flores. Cada grupo de famílias construiu
um poço, de onde retiram água, e fornos de barro,
em sua maioria coletivos. Mesmo após um ano e meio de estadia
nesse lugar, os barracos mantêm-se todos de lona, como se
estivessem de passagem. Impressão confirmada mais tarde quando
descobrimos que, em breve, os moradores do Terra sem Males terão
que acampar em outro lugar, mais próximo da terra em que,
provavelmente, serão assentados
|
|
Saúde
e beleza têm espaço na horta de plantas medicinais
e na porta dos barracos |
Quando
chegamos à horta coletiva, Zé Antônio comenta
que um dos desafios da produção agrícola do
MST é não utilizar agrotóxicos e transgênicos
e, por isso, a experiência e o conhecimento que cada um traz
é de grande valor. Ele, por exemplo, é formado como
viveirista e tem vários livros que empresta para os vizinhos
sempre que solicitam. "Aqui não pode ter egoísmo.
Eu não vou montar o viveiro e vender as mudas para os outros.
Não falamos eu, falamos nós! Já na cidade,
na maioria das vezes, é cada um por si e Deus por todos.
Quando também não querem que Deus seja só de
alguns".
A troca
de experiências também foi fundamental para o grupo
de mulheres que se uniu em torno do artesanato. O grupo se reúne
todas as segundas e sextas-feiras para fazer tricô, crochê,
costurar, tomar chá, conversar sobre a vida. No tecer dos
tapetes, tecem também novas relações de amizade.
Neide nos convidou a participar da festa surpresa para Maria, que
não estaria mais com o grupo na data do seu aniversário.
Bolo, balões, presentes, gritos de guerra e músicas.
A preferida de Maria, "Ordem e Progresso" ou como é
conhecida no Terra sem Males "a música da bandeira"
foi cantada por todos como que numa só voz: "Este é
nosso País. Esta é nossa bandeira. É por amor
a esta Pátria-Brasil. Que a gente segue em fileira...".
Apesar de estar partindo, Maria pede a Neide que nunca desista desse
projeto e de levar à frente o grupo de mulheres.
Neide entrega um presente coletivo para Maria: foto
do Chê,
uma lingerie, o manual do acampado, um sabonete, um boné
do MST, etc.
Experimentar
a vida em comunidade, onde as regras de convivência exigem
participação de todos, não é fácil.
Cada vitória é comemorada. Zé Antônio
também conta orgulhoso que os homens do acampamento Terra
sem Males conseguiram algo inédito: "Juntar uma par
de homem para fazer artesanato. Quem já aprendeu está
passando para o outro".
A vida
no acampamento se insere em uma lógica diferente da privilegiada
em grande parte dos centros urbanos: "Na cidade é comum
as pessoas aprenderem e não ensinarem. Aprendi é meu!
Tem até patente. Aqui não, um passa para o outro.
Vira um coletivo de idéias. Essa é a nossa única
saída", desabafa Zé.
"Ser
sem terra não é fácil"
Como
em qualquer comunidade, o estabelecimento de regras não significa
a ausência de conflitos e de problemas. Francisco propõe
uma situação: "imagine que estamos em uma roda
de mãos dadas e você fica entre nós sem querer
entrar na roda, sem querer dar as mãos, atrapalhando quem
quer manter as mãos unidas. Na prática, se você
está bebendo, brigando, desrespeitando as regras, a gente
primeiro tenta mostrar que é preciso lutar, mas que não
somos nós que vamos lutar por você. Quando não
é possível, a gente chama uma assembléia e
as pessoas votam a permanência ou não da pessoa no
acampamento".
Quando
saímos para comprar açúcar e feijão,
que já estavam em falta há alguns dias, seu Nelson,
do grupo do almoxarifado, nos contou que sempre aparecem pessoas
que querem entrar para o acampamento. "Elas vêm achando
que vai ser fácil, que vão vender a terra mais tarde.
A maioria vai embora depois de um mês, porque percebe que
ser sem terra não é fácil. Tem que trabalhar
muito. Tem que estudar. Tem que querer fazer junto, senão
sai".
Os
trabalhadores acampados, devido a proximidade das casas e das relações
entre os moradores, rapidamente identificam os "andorinhas":
aqueles que montam o barraco e aparecem de vez em quando. Além
disso, existe na secretaria um caderno que todos devem assinar quando
saem, informando data e destino, e quando voltam. Este controle
também permite localizar as pessoas em outros locais, quando
necessário.
"Aqui
a gente dorme de barraco aberto"
É
comum ouvir o povo do acampamento dizer: aqui temos um só
objetivo, a terra. Em nossas andanças e conversas pelo Terra
sem Males percebemos que este objetivo único permite congregar
sonhos diversos. Para seu Nelson, por exemplo, quando a terra sair
já não será mais para o seu uso, e sim para
os seus netos, porque as forças já são poucas
para trabalhar.
Dona
Artalinda também pensa no futuro. Na saída de uma
assembléia geral, puxa conversa dizendo que a cada dia tem
mais certeza da vontade de estar no MST: "eu tô cega
e velha, mas eu entendo tudo que eles estão dizendo".
Em seu rosto, marcas dos quase setenta anos; e em sua fala, as lembranças
de um outro tempo: "Eu tive quatorze filhos, naquela época
eu comprava dez metros de fazenda, aquele tecido azulão bonito,
e com mil réis fazia roupa pra todos os filhos. Agora já
não dá mais". Dona Artalinda vivia em Minas Gerais
e quando o MST passou em seu bairro, explicando sobre o movimento
e convidando para participar, ela resolveu entrar com duas de suas
filhas que, mais tarde, desistiram da luta.
"Vivi
cinqüenta anos na cidade, mas a roça é que é
lugar bão". Assim começa seu Odair a contar sua
história. Nos acampamentos ouvem-se muitas histórias,
principalmente quando a noite chega. Histórias de pessoas
vindas de todo o lado, relatos de peripécias vividas, das
profissões que tiveram, das dificuldades enfrentadas, da
solidão e do medo que tiveram. Ouvem-se também muitos
dos sonhos que movimentam esse povo. Sonho de uma vida diferente,
de viver em um lugar diferente da cidade marcada pela individualidade,
pelo medo, pelo corre-corre.
"Durante
a noite aqui é tranqüilo, não tem preocupação
com bandido. Nós passamos o dia fazendo leiras, fazendo as
covas, plantando, pegando água e lenha, cozinhando, lavando
roupa. Pena que agora, no inverno, não dá para plantar
muita coisa porque queima tudo", conta Dona Marionice na sala
de aula do EJA - Ensino para Jovens e Adultos - logo depois que
nos apresentamos como repórteres da revista ComCiência.
Professora e os alunos na sala de aula da Educação
de Jovens e Adultos - EJA
Paula
inicia a aula com a leitura do poema "Nosso País",
que relata as riquezas do Brasil, principalmente as minerais. Os
alunos, em sua maioria acima de 35 anos lembram, a pedido da professora,
a riqueza que os rodeia, como a soja, arroz, abóbora, milho,
feijão, a água, a terra, as frutas do norte e nordeste,
o povo... Depois de falar é hora de escrever e, quem ainda
não sabe, de desenhar. Mas não ficamos até
o final da aula e seguimos, em meio a uma enorme escuridão,
para o barraco de Neide.
Há
quatro anos no movimento, Neide acredita que a terra será
uma conseqüência da luta, porque seu maior objetivo é
lutar contra a desigualdade social. Quando veio para o MST queria
tirar o marido do movimento, pois achava que não passava
de vagabundagem, como aliás ainda pensa parte da sua família
de Vitória da Conquista, Bahia. Ficou, se apaixonou pela
causa e juntou-se ao marido, que agora está estudando no
Rio Grande do Sul. Quando ele voltar será a vez de Neide
ir estudar. Seu sonho é no futuro estudar Direito.
O frio
é convite para todos dormirem. Foram horas debaixo dos cobertores
antes de conseguir sentir o corpo aquecido e adormecer. De madrugada,
os galos cantam, o frio congela as extremidades e você reza
para que o sol chegue logo.
"Na
escola ensinamos a Pedagogia da Terra"
Já
sabíamos que de manhã as crianças, até
os sete anos, ficavam na Ciranda. Esperávamos que Neide levasse
seus dois filhos - Iuri e Léa - para lá. Mas no Terra
sem Males são as próprias crianças que chamam
a criançada: "Olha a Ciraaannndaaa... Olha a Ciraaannndaaa...".
Carregando umas as outras em meio a brincadeiras chegam na escola,
um barraco feito de bambu.
Lá passam a manhã desenhando, aprendendo a ler, escrever.
Além da Ciranda existe o Sem Terrinha, no período
da tarde, para crianças de sete a onze anos. As crianças
maiores estudam na cidade. O ensino nos acampamentos do MST é
baseado na Pedagogia da Terra. Além dos conteúdos
das outras escolas as crianças e adultos discutem o que é
ser sem terra, o que querem do futuro e os princípios do
movimento.
Achamos
que Neide teria uma folga com a ida das crianças para a escola.
Porém, logo teve que correr para atender mais um grupo que
vinha visitar o acampamento. Desta vez são os alunos e professores
de um colégio particular de São Paulo, que querem
"conhecer a vida no acampamento". Neide nos apresenta
como os repórteres que vieram sentir na pele o que é
ser sem terra: "comeram e dormiram aqui, e até venderam
o banho ontem".
"Muitos querem conhecer de perto os sem terra"
Os
acampamentos se tornaram espaços de visitação.
A vinda de grupos para o Terra sem Males é tão freqüente
que existe um roteiro que, inclusive, fizemos com Zé Antônio
logo que chegamos. Geralmente os "turistas" dão
uma volta por todo o acampamento, passando por locais como a Secretaria,
o Almoxarifado, a Farmácia, a Horta Coletiva, a Ciranda e
terminam ouvindo uma palestra na grande sala do EJA.
No
final da visita os alunos comentam que se surpreenderam com o que
viram. "Vocês encontram todo mundo armado de foice e
facão?", perguntou Neide para o grupo, trazendo uma
das imagens do movimento que mais aparece na mídia. Eles
responderam não em coro.
No
dia anterior, Zé Antônio nos dizia: "A TV normalmente
não mostra as coisas boas dos acampamentos e assentamentos,
mas quando acontece alguma desordem, a mídia está
logo lá. Aí o acampamento vira notícia!".
Para Francisco, a mídia contribui para criar um clima hostil
com relação aos trabalhadores sem terra e ao próprio
movimento. "Se mostrassem que o movimento dá certo,
talvez outras pessoas viessem para cá. Será que assim
o movimento não teria mais apoio da sociedade e por isso
mais força?" (Leia artigo
de Antônio Câmara sobre a imprensa e o MST).
A
vida nômade dos trabalhadores acampados
Depois
que professores e alunos foram embora começam a chegar rostos
já conhecidos e pessoas que ainda não havíamos
encontrado: é a assembléia geral que vai começar.
O espaço não abriga a todos. Muitos ficam do lado
de fora ao redor do barracão. O motivo da assembléia
é que, em breve, os moradores do Terra sem Males terão
que se aventurar por outros lugares antes de ir para a terra prometida.
O Terra sem Males fez sua primeira ocupação em Bragança
Paulista e há um ano e dois meses estão em Cajamar.
Gilmar
Mauro, da executiva do MST, chega para tentar explicar para as pessoas
as três possibilidades que existem para que cada um possa
escolher o melhor caminho. Os trabalhadores acampados precisam escolher
seu destino: ir para Andradina, ir para Campinas, ou permanecer
em Cajamar, porém juntando-se a um dos outros acampamentos
próximos, Irmã Alberta ou Dom Pedro.
Precisar escolher o novo destino deixa Dona Maria
apreensiva
Mauro
explica que a diferença entre as escolhas não é
apenas geográfica. "Vocês precisam primeiro pensar
no que vocês querem no futuro, em qual é sonho de vocês,
o que vocês querem fazer com a terra" e explica que o
perfil do morador de Andradina se aproxima mais de quem quer morar
no mato, longe da cidade, do barulho e da violência. Já
Campinas é mais interessante para aqueles que buscam outras
coisas que a proximidade da cidade pode propiciar, como o estudo,
o intercâmbio com as universidades e igrejas, por exemplo.
Além
dessas questões, quem optar por Andradina precisava sair
imediatamente do acampamento, porque a demora poderia tornar mais
difícil a possibilidade de encontrar vaga nos assentamentos
da região. Já para Campinas, a proposta implicava
em permanecer mais três meses no Terra sem Males e ir para
um pré-assentamento nessa cidade, num local que faz parte
de um projeto novo do MST, a Comuna da Terra, e que envolve uma
parceria com a prefeitura de Campinas e a Ceasa. A idéia
é que a Comuna da Terra seja sempre um acampamento onde as
pessoas passariam um tempo vivendo juntas e produzindo em cooperação
hortaliças sem uso de agrotóxicos e fertilizantes
industriais. O INCRA garantirá a compra das sementes, do
adubo e dos instrumentos necessário, já a Ceasa garante
a compra de toda a produção. O lucro será divido
por todos os que trabalharem nas hortas coletivas. Aqueles que escolherem
a Comuna da Terra se comprometem também a participar do curso
de horticultura e de cooperação agrícola que
será oferecido ao Terra sem Males.
Após
a explicação, muitas perguntas daqueles que querem
ir para Campinas, mas têm dúvidas com relação
à proposta: e quem não quiser plantar verduras? Como
garantir que todos vão trabalhar igual? Gilmar Mauro lembra
que esse será um acampamento provisório e que o objetivo
é que as pessoas aprendam uma forma coletiva de trabalho
na terra e esclarece: "Depois, na terra de vocês, cada
um escolhe o que vai fazer. Mas, pelo menos, vocês terão
elementos novos para decidir o futuro", e termina lembrando
que em muitos assentamentos a pobreza é maior do que no acampamento
Terra sem Males, "e não isso que desejamos com o movimento".
A assembléia
termina com os gritos de guerra: "Pátria Livre! Venceremos!",
"MST! A luta continua!".
A caminho
do barraco de Neide para almoçarmos juntos lançávamos
um último olhar para o Terra sem Males. Um acampamento diferente
dos outros, bastante visitado por pessoas de fora por ser considerado
como "o que deu certo". Uma experiência que poderá
inspirar os novos assentamentos que surgirem. Lembrávamos
das últimas frases de Gilmar Mauro: "Queremos mudar
o jeito de fazer assentamentos no Brasil, não queremos que
os outros segmentos da sociedade pensem que somos favelados, queremos
mostrar que assentamento dá certo, gera emprego, produz e
preserva o ambiente".
Neide
já falava da cozinha: "Peguem o prato e venham comer.
Vocês já sabem mistura nem sempre tem, mas o feijão
e o arroz sempre dão para todo mundo". Nos despedimos
com a promessa de voltar com as fotos e amatéria.
(SD)
|