Reportagens






 

Imprensa e movimento dos sem-terra: interpretação, revelação e ocultação dos fatos

Antônio da Silva Câmara


Sobre mídia e movimentos sociais
Os estudos sociológicos sobre o papel da imprensa na divulgação dos movimentos sociais é bastante recente, deriva inclusive da mudança de comportamento da grande imprensa em nível internacional nas duas últimas décadas do século XX, que após longo período enquadrando os movimentos sociais nas seus noticiários vinculados a eventos rotineiros perturbadores da ordem (desordem urbana, crimes etc.), ou ao noticiário econômico e político, descobre nos mesmos uma fonte de informações e material para construção de um imaginário jornalístico mais rico do que aquele produzido até então. Dessa forma, desde os movimentos denominados estritamente como "classistas" (movimento sindical) ou aqueles que abarcam novas temáticas e reivindicações por direitos sociais, luta pela terra, preservação do meio ambiente etc, se tornaram objetos particulares de interesse jornalístico.

Aparentemente, a grande imprensa desenvolve no seu interior mecanismos contraditórios que poderiam pôr em jogo o seu papel de elemento fundamental na sedimentação da hegemonia burguesa. No entanto, diversos autores acentuam que a nova abordagem da imprensa na divulgação dos movimentos sociais implica também na espetacularização (DEBORD) dos fatos que, em certa medida, são criados com o auxílio da imprensa ou são, por vezes, absolutamente ficcionais.

Contrariando a sua definição ideológica de relatar a realidade imediata, a imprensa o divulga, recria e reinventa os fatos relativos aos movimentos sociais, adquirindo o caráter de um falso sujeito social. Isto ocorre, pois ao revelar certos aspectos das lutas sociais, outros são ocultados; ao acentuar determinados ângulos da informação outros são suprimidos em função tanto de interesses mercadológicos quanto de compromissos políticos dos proprietários dos meios midiáticos. Aqui não estou levando em consideração os comportamentos anti-éticos de jornalistas que interferem no curso dos próprios movimentos objetivando sucesso pessoal. No entanto, é disseminada a prática de construir-se imagens de movimentos sociais que não correspondem à imagem que eles fazem de si mesmos e que podem contribuir, inclusive, na mudança de rumos. Neveu (1999) analisou como a interação da imprensa americana com a SDS (Students for a Democracy Society) grupo de estudantes que postulavam mudanças radicais na sociedade, transformou-o numa grande organização com ações violentas e espetaculares com mais de dez mil membros, visando sempre chamar a atenção da mídia. Tal processo levou ao esgotamento da organização estudantil e a abertura de espaço midiático para outras organizações.

Alguns autores, consideram que a antiga formulação da imprensa enquanto um aparelho ideológico de estado, deveria ser substituída pela noção de que esta se constitui numa competição entre formas diferenciadas de representação socais e estratégias de comunicação. A meu ver, tal formulação em o mérito de ampliar o ângulo de análise da imprensa, sobretudo por conceber que nesta é possível a instalação de uma situação de conflito das representações sociais. No entanto, perde de vista que a estrutura das sociedades burguesas, sob o signo do liberalismo, na qual a mídia (em todas as suas formas de manifestação) continua caudatória da ideologia dominante e subordinada à lógica do mercado. A notícia é o valor-mercadoria produzido pela mídia, a sua reprodução e acumulação dependem dos seus leitores, dos seus anunciantes privados e do próprio estado. Para vender a mercadoria notícia a imprensa escraviza-se à novidade, ao furo jornalístico, deixando de lado as implicações históricas e sociais da notícia que está divulgando. Logo, interesses econômicos, políticos e ideológicos cruzam-se na disputa pelos leitores e pelo apoio do Estado.

A necessidade de financiamento de parte dos patrocinadores impede as empresas de praticarem um jornalismo independente e autonomia. Mesmo em países desenvolvidos como a França, apenas um jornal de tiragem mensal - Le Monde Diplomatique - têm mantido uma postura crítica e independente, isto porque sobrevive enquanto uma associação de jornalistas financiada quase que inteiramente pelos seus assinantes. A disputa por mercado tem por conseqüência a uniformidade dos grandes jornais, tanto no formato quanto no conteúdo, situação que se agrava ainda mais quando se trata de noticiar o que ocorre fora das fronteiras locais (região ou país) pois as agências internacionais enviam exatamente o mesmo conteúdo com a mesma forma para a mídia de todo o mundo.

Tal situação atinge seu ponto mais avançado de desenvolvimento nos países capitalistas democráticos onde o monopólio da divulgação das informações passou das mãos do Estado para a iniciativa privada. Isso não implica, no entanto, na plena independência da grande imprensa em relação ao Estado, pois em momentos considerados estratégicos para o controle pelo Estado da formação da "opinião pública" os governantes interferem direta ou indiretamente na cobertura jornalística orientando-a de forma "construtiva" (a exemplo do noticiário americano sobre a recente guerra contra o Iraque). As relações estado/mídia não implica, no entanto em completa subordinação desta última aos interesses dos governantes, permitindo, por vezes, que esta exerça um importante papel na divulgação de forças sociais emergentes e até mesmo no impacto das suas propostas sobre a articulação de forças sociais dominantes. Longe, porém, de ocupar o papel que alguns lhe atribuem de quarto poder do Estado.

Por outro lado, os movimentos sociais desejam e rejeitam a presença da grande imprensa nas suas manifestações, pois por um lado esta se constitui num poderoso meio de ressonância das suas reivindicações e até mesmo de suas plataformas de luta, por outro lado, a notícia a ser veiculada tanto poderá ser fundamental para angariar novas simpatias, como para se construir o contrário: a aversão da população.

Sobre Brasil, imprensa e MST
O exercício "livre" da imprensa no Brasil é mais recente do que nos países ocidentais hegemônicos, isto porque aqui vivenciou-se curtos períodos de vigência de democracia burguesa, entremeados por ditaduras e conseqüente censura oficial. A subordinação direta ao aparelho de Estado por vezes obscureceu a efetiva trama de relação entre a ideologia dominante, os patrocinadores e a grande imprensa. O período que começou já no início da década de 80 com o processo de instituição de uma democracia liberal burguesa no país, liberando formalmente a grande imprensa dos entraves oficiais, tem sido bastante rico para a observação de novos comportamentos no que tange à construção da notícia, modernização gráfica e a ampliação do debate nos meios de imprensa, com notável avanço da imprensa escrita.

No entanto, nesse período também se presencia a continuidade da subordinação da mídia aos governantes, agora voltado sobretudo para angariar a simpatia e receber verbas de publicidade. Desde as grandes redes de televisão até os mais conceituados jornais do sudeste, mantêm a dubiedade da crítica secundária às ações dos governantes com vigoroso apoio aos principais projetos de modernização capitalistas ou de "inserção no mundo globalizado". Os movimentos sociais e as organizações sindicais são tolerados enquanto não criam problemas às diretrizes reformistas. Tal procedimento foi adotado em relação a Collor, antes das denúncias sobre corrupção; à Fernando Henrique durante os oito anos de mandato e, agora, pelo menos até o presente momento à Lula por dar continuidade às propostas de Fernando Henrique.

No caso da divulgação dos ações dos movimentos sociais, a imprensa nacional evoluiu na direção já exposta para os países desenvolvidos, pouco à pouco criando espaço próprio para noticiar as lutas sindicais e os movimentos sociais emergentes.

O MST surge nesse período e, como outros movimentos, beneficia-se da ampla cobertura jornalística nem sempre favorável ao movimento mas fundamental para dar-lhe visibilidade nacional. Quatro momentos são emblemáticos da cobertura jornalística e do seu alcance em relação à divulgação do MST.

O primeiro, estudado por Christian Berger é o da cobertura do Zero Hora em Porto Alegre, das históricas lutas do MST no Rio Grande do Sul. A autora mostra a ambigüidade do Zero Hora que deforma os fatos, utiliza-se de jargões depreciativos tais como invasão de terra, mas ao mesmo tempo dá voz aos sem terra.

O segundo foi a cobertura jornalística, e, em especial da Folha de S. Paulo, às ações do MST no Pontal do Parapanema em São Paulo que, apesar de editoriais sempre contrários às ocupações de terra, sempre denominada como invasão, tornou o movimento conhecido nacionalmente, inclusive pelo fato de ter super-valorizado as ações do movimento e por atribuir a José Rainha uma liderança que este não tinha na direção nacional do MST.

O terceiro momento, mais dramático do que os anteriores foram os dois massacres ocorridos no norte do país em Corumbá e Carajás, quando a imprensa do sudeste do país mais distanciada das oligarquias locais forneceu informações valiosas sobre a origem do conflito e o papel do estado nos massacres. Seguiu-se aos massacres a marchas à Brasília realizadas pelo movimento para exigir reforma agrária e paz no campo. A primeira realizada em 1997 um ano após os massacres obtiveram uma grande cobertura de imprensa, as demais que continuam sendo realizadas são noticiadas me páginas internas e de forma sucinta, já não se constituem mais em novidade, não obedecendo, portanto o critério necessário para a divulgação na imprensa. A presteza em divulgar os massacres não se registrou quando da apuração e julgamento dos responsáveis pelo massacre. É bem verdade, que através da grande imprensa soubemos do prolongamento do julgamento, dos grupos poderosos no Pará, que num primeiro julgamento inocentou todos os envolvidos, dos sucessivos julgamentos e da situação atual com apenas os comandantes das tropas inculpados, mas jamais o acompanhamento do processo ombreou-se com o massacre em importância jornalística, as grandes manchete cederam lugar à uma cobertura espaçada, burocrática, incapaz de despertar interesse no público médio dos grandes jornais.

Estamos vivenciando um quarto momento quando se encontra em curso uma campanha subliminar contra o MST, por ter apoiado o governo Lula , mas manter a postura de ocupação de terra e prédios públicos e ainda ter influenciado na escolha do Ministro da reforma Agrária e de Superintendentes Regionais do INCRA . A grande imprensa amplia a importância das ações do MST, questiona o ministro diretamente quanto à natureza dessas ações, especulam sobre a permanência do ministro no cargo devido à relações de confiança que o mesmo manteria com o movimento, enfim constrói uma imagem de um MST ultra-radical que não convive democraticamente nem mesmo com o governo que apoiou. Cada vez mais à imprensa interessa construir os fatos de acordo com a ótica da conciliação com o Planalto e, nesse caso, com os interesses dos latifundiários assustados, por isso seguindo tendência já verificada no segundo governo FHC, o MST torna-se alvo preferencial de editoriais, entrevistas e notícias sobre novas "invasões" de terra. 

Finalizando este texto é necessário acentuar que o espaço ocupado por reportagens acerca dos movimentos na grande imprensa é bastante modesto. Os grandes jornais brasileiros estruturam-se em dos cadernos de Política (cobrindo discursos e medidas do executivo nacional, do legislativo e as articulações políticas dos partidos hegemônicos), Economia (girando sobretudo em torno do capital financeiro e da bolsas de valores), Policial, Esporte e Cultura. Por outro o que é notícia em cada uma destas seções obedece a critérios distintos daqueles utilizados para o acompanhamento dos movimentos sociais. No primeiro caso um indivíduo pode ser noticia ou mesmo apenas especulações acerca de algum evento político, econômico, esportivo etc., no segundo é necessário que os movimentos se proponham a realizar ações de grande impacto (marchas, greves, ocupações de terra e órgãos públicos, denúncias graves etc.) para merecer a atenção das colunas dos jornais locais e, em caso extremo nacionais. A grande imprensa preserva o culto ao indivíduo sobretudo quando este ocupa cargos públicos de grande relevância ou pertence aos quadros da burguesia nacional, os indivíduos dos grupos subalternos só ocupam espaço em jornais em situações excepcionais como é o caso do atual presidente. Portanto par aos movimentos sociais a espetacularização da ação associada à novidade dos eventos são pré-condição para alcançar a ambígua divulgação pela grande imprensa.

Antônio da Silva Câmara é professor do Departamento de Sociologia/Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal da Bahia

Bibliografia:
BERGER, Christa. Campos em confronto : a terra e o texto. Editora Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 1998.
CÂMARA, Antônio da Silva. A atualidade da reforma agrária. De Canudos aos sem-terra a utopia pela terra. In revista O Olho da História. n° 3. Universidade Federal da Bahia. Salvador. n° 3. Nov. 199
DEBORD, Guy. La Societé de Spetacle. Paris.
NEVEU, Eric. Medias, Mouvements Sociaux et espace publics. In revue Reseaux, n° 89. Pp15-86. Hermes. Paris. 1999.

 
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Atualizado em 10/06/2003
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