Reportagens






 
MP da desapropriação deverá ser mantida


O governo de Luís Inácio Lula da Silva herdou uma Medida Provisória editada na gestão de Fernando Henrique Cardoso que impede a vistoria e a desapropriação de propriedades rurais ocupadas. Um dos principais objetivos de FHC, ao editar a MP 2.027-38 em maio de 2000, era reverter o número de ocupações de terra no país, que subiu mais de 300% nos quatro primeiros anos de seu mandato, chegando a 599 ocupações em 1998, segundo a Comissão Pastoral da Terra. Os conflitos por questões de terra voltaram a recrudescer nesse início do atual governo, que defende a manutenção do texto e o cumprimento da Medida Provisória.

De acordo com a assessoria de imprensa do Ministério do Desenvolvimento Agrário, já se cogitou, no início do mandato, a alteração do texto da MP. "Mas no momento, o texto vai continuar como está. E a posição do Ministério é a de cumprir a Medida Provisória. A lei deve ser cumprida", informa a assessoria do ministro Miguel Rosseto, em referência às acusações de que ele estaria apoiando ações de trabalhadores rurais sem terra, como a ocupação do engenho Prado, em Pernambuco, no dia 18 de maio. As acusações, feitas por deputados da bancada ruralista, partiram de declaração do ministro dizendo que as terras invadidas já haviam sido desapropriadas no governo FHC e que os trabalhadores rurais produziam ali há sete anos. A Justiça suspendeu o decreto de desapropriação do engenho Prado em 1999.

A MP 2.027-38 - substituída em agosto de 2001 pela MP 2.183-56 -, além de determinar que "o imóvel rural objeto de invasão motivada por conflito agrário não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação", ainda exclui do Programa de Reforma Agrária do Governo Federal não apenas "quem for identificado como participante direto ou indireto em conflito fundiário que se caracterize por invasão de imóvel rural", mas também "quem for identificado como participante de invasão de prédio público", como no caso das ocupações de integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) a prédios do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em Cuiabá (MT) e Goiânia (GO), ocorridas no carnaval deste ano. Na época, líderes do movimento, como João Paulo Rodrigues, da coordenação nacional do MST, declararam que aquelas ações não eram de enfrentamento com o governo Lula, mas sim de enfrentamento com o latifúndio.

Os trabalhadores rurais sem terra alegam que as ocupações são o seu principal mecanismo de pressão para agilizar os demorados processos de desapropriação de terras. "São homens e mulheres do povo, sem dúvida impacientes, mas no cumprimento do seu legítimo direito de cobrar a agilização da efetiva mudança no campo, a reforma agrária", afirma Dom Tomás Balduíno, presidente da Comissão Pastoral da Terra, entidade cristã que apóia a causa dos trabalhadores rurais. Ele vê com esperança o tratamento dado à questão pelo governo Lula, destacando a resposta do presidente do Incra, Marcelo Rezende, às ocupações feitas pelo MST no início de março, propondo a abertura para o diálogo com os trabalhadores rurais sem terra.

"O MST entende que as condições de impedimento da desapropriação de terras são apenas as previstas na Constituição", diz Elmano de Freitas, advogado do movimento. "Uma Medida Provisória não pode valer mais do que a Constituição e não pode criar um empecilho a mais do que prevê a lei máxima do país", emenda. Segundo Freitas, o próprio Partido dos Trabalhadores, quando ainda era oposição ao governo FHC, entrou, juntamente com a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), com uma ação no Supremo Tribunal Federal, pedindo a inconstitucionalidade da MP 2.027-38, cujo mérito ainda não foi julgado. Ele explica que o MST não participou da ação por não ser pessoa jurídica, mas apenas um movimento social. Freitas conta que no final de 2002, o STF realizou um julgamento em que autorizou a desapropriação de terras ocupadas no Distrito Federal, alegando que a vistoria do Incra nessas terras já havia sido feita antes da ocupação. "Isso nos dá uma esperança de que as coisas podem mudar", comenta.

Divergências sobre o saldo da era FHC
A Medida Provisória, editada no dia 4 de maio de 2000 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, inibiu as ações de ocupação de terras por parte do MST nos últimos três anos. De acordo com os levantamentos anuais realizados pela Comissão Pastoral da Terra, de 1988 - quando foi promulgada a Constituição, cujo capítulo III é dedicado à política agrícola e fundiária e à reforma agrária - até 1993, a média anual foi de cerca de 72 ocupações em todo o país. Em 1994 - ano da eleição de FHC - foram mais de 100 ocupações; chegando a quase 400 em seu segundo ano de mandato e a quase 600 ao final do quarto ano. Em 2000, foram 390 ocupações, caindo para 194 em 2001 e 184 em 2002.

Quanto ao saldo em termos de diminuição na concentração de terras no país, há divergências entre os especialistas. Um estudo de Rodolfo Hoffman, professor do Instituto de Economia da Unicamp e um dos responsáveis pelo processamento das informações das Estatísticas Cadastrais do Incra, mostra que entre 1992 e 1998, o índice Gini - que mede a concentração de terras - permaneceu estável na região Centro-Oeste e aumentou nas demais regiões. Segundo o estudo, os maiores imóveis rurais, que representam 10% do número total de propriedades, aumentaram a sua área de 77,1% para 78,6% do total da área ocupada pelo meio rural no país.

O economista da USP e diretor-executivo da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), José Eli da Veiga, analisando um período um pouco diferente (de 1995 a 2000), chegou à conclusão de que a área ocupada pelas pequenas propriedades aumentou e a ocupada pelas grandes propriedades diminuiu. No último dia 16 de maio, Veiga apresentou em Roma, no seminário do Comitê de Segurança Alimentar da FAO, seu estudo que mostra que as propriedades pequenas passaram de 130 milhões de hectares em 1995 para 150 milhões em 2000, enquanto as propriedades de porte empresarial, que ocupavam 224 milhões de hectares em 1995, passaram a ocupar 210 milhões.

Na repercussão desse último estudo, Antônio Márcio Buainain, pesquisador do Núcleo de Estudos Agrários da Unicamp, declarou ao jornal Folha de S. Paulo (19 de maio) que os dados apresentados eram consistentes, pois também tinham como base o cadastro do Incra. Já o pesquisador da Unesp, Bernardo Mançano, afirmou, ao mesmo jornal, não acreditar que a tendência de concentração de terras tenha tido uma inversão. De acordo com ele, os oito recenseamentos feitos no campo desde 1940 registram uma concentração, e para inverter essa tendência teria sido necessário acabar com o êxodo rural e assentar 150 mil famílias por ano ou pelo menos 50 mil a mais que o maior número anual de assentamentos feito pelo Incra durante o governo de Itamar Franco, antecessor de FHC, quando foi sancionado o rito sumário de desapropriação de terras para a reforma agrária decretado pelo Congresso Nacional.

Histórico da legislação
A Medida Provisória 2.027-38, que impede a desapropriação de terras invadidas, é anterior à emenda constitucional que alterou as regras em relação a esse dispositivo usado pelo Poder Executivo para exercer uma função, a priori, do Legislativo: legislar. A exemplo do imposto que leva o nome de Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), mas que se tornou permanente nas contas-corrente dos brasileiros, as Medidas Provisórias, desde 2001, não precisam mais ser reeditadas e ficam em vigor por tempo indeterminado, até que uma outra MP a revogue ou o Congresso Nacional a rejeite, sendo que as MPs não "trancam" mais a pauta do Congresso, já que não têm prazo para serem votadas.

A MP 2.183-56, versão atualmente em vigor da MP 2.027-38, acresce e altera dispositivos de quatro leis anteriores, incluindo o Decreto-Lei 3.365 assinado por Getúlio Vargas em 1941, que dispõe sobre desapropriações por utilidade pública. Nessa época, as desapropriações previstas em lei estavam relacionadas ao desenvolvimento urbano, sendo destinadas para abertura, conservação e melhoramento de vias, construção de edifícios públicos e cemitérios, criação de estádios ou campos de pouso para aeronaves. A Constituição promulgada em 1988 acrescentou ao conceito de utilidade pública a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. O artigo 185 da Constituição diz que a pequena e média propriedade rural e a propriedade produtiva não são suscetíveis de desapropriação, não fazendo qualquer referência à propriedade ocupada.

O parágrafo 3º do artigo 184 da Constituição já previa que uma lei complementar deveria estabelecer o procedimento de rito sumário para o processo judicial de desapropriação. A Lei Complementar 76, que dispõe sobre o tema, só sairia em 6 de julho de 1993, obrigando o Ministério Público a intervir nas ações de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. Em fevereiro do mesmo ano, o então presidente Itamar Franco sancionou a Lei 8.629 decretada pelo Congresso Nacional, que regulamentava os dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária. O artigo 9º dessa lei, que define quando a propriedade rural cumpre a função social, é literalmente idêntico ao artigo 186 da Constituição.

A Medida Provisória editada em maio de 2000 por Fernando Henrique Cardoso inclui sete parágrafos ao artigo 2º dessa Lei 8.629, que determina ser passível de desapropriação a propriedade rural que não cumprir a função social prevista no artigo 9º. Um dos parágrafos incluídos impede que a propriedade rural ocupada seja vistoriada ou desapropriada nos dois anos seguintes à sua desocupação; e outro exclui do Programa de Reforma Agrária do Governo Federal o participante de conflito fundiário ou de invasão de prédio público.

(RC)

 
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Atualizado em 10/06/2003
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