Cooperação e cooperativismo no
movimento dos trabalhadores rurais sem terra
José
Geraldo Poker
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o principal
movimento social de luta pela terra desde a década
de 1980, vem se tornando um fenômeno mundialmente conhecido,
adquirindo conotações diversas. Dentro do Brasil,
a notoriedade adquirida pelo movimento se deve, principalmente,
à estratégia por ele empregada para possibilitar
o acesso à terra de seus integrantes: organizam-se
acampamentos nas margens de rodovias, manifestações
em praças públicas, passeatas em grandes cidades,
longas caminhadas do interior do país até a
capital federal, ocupações de prédios
públicos, bancos, e ainda a ocupação de áreas
rurais públicas ou privadas. Essa estratégia
visa criar fatos políticos que obriguem o Estado a
interferir na estrutura agrária, promovendo desapropriações
de terra para o assentamento dos participantes do movimento.
Mas o MST não se reduz a apenas isso. Trata-se
de um fenômeno social complexo, que possui uma estrutura
na qual encontram-se desde simples camponeses, intelectuais
acadêmicos, membros de partidos políticos e do
clero católico. Isso leva o MST a assumir várias
formas, dependendo do tipo da ação desenvolvida.
Ou seja, dependendo daquilo que venha a ser por ele realizado, se
uma ocupação de prédios ou de uma área
de terra, se a promoção de um curso de capacitação
para assentados, o movimento adquire formas diferentes. Tal
condição faz com que o MST em alguns momentos
atue como uma ONG, outras vezes como partido político,
e outras ainda como verdadeiro movimento social. Nesse sentido,
pode-se definir o MST como um fenômeno bastante complexo,
consistindo num movimento de e para trabalhadores
rurais ao mesmo tempo.
A estrutura do MST é composta pelos segmentos
hierarquizados direção, militância,
base e massa. Cada um dos segmentos
abriga tipos específicos de pessoas. A direção,
eleita por todos os integrantes da estrutura, é formada
pelas pessoas mais esclarecidas ou mais preparadas politicamente
para a determinação das diretrizes de ação.
É junto à direção que atuam os
intelectuais acadêmicos. A militância corresponde
ao quadro de funcionários do MST, sua burocracia, que
atua junto à base e à massa. A base é
composta pelos integrantes que receberam terras, os assentados.
A massa é como se chama o conjunto das pessoas que
participam das ações organizadas pelos militantes
do MST, e que o fazem na esperança de conseguirem o
acesso à terra mediante a conquista do assentamento.
Parte considerável da complexidade do MST
diz respeito à complicada relação entre
os segmentos na estrutura. Os projetos e objetivos de cada
um deles se difere bastante. O projeto da direção
é de médio e longo prazos: através da
conquista de assentamentos pretende imprimir transformações
no cotidiano, para criar o homem novo e a mulher
nova, mudando a sociedade, levando-a ao socialismo. A
militância é composta de funcionários
que fazem carreira dentro do MST, e visam cada um seu próprio
espaço, pretendendo chegar à direção.
Quanto à base, composta por pessoas que já conseguiram
o assentamento, a preocupação reside principalmente
em encontrar os melhores meios de permanecer na terra conquistada.
Enfim, a massa compreende pessoas que têm, cada uma,
projetos próprios e diferentes para a terra. Em geral,
como demonstram resultados de pesquisas, os componentes da
massa visam a terra para concretizar nela o desejo de viver com
autonomia, ou seja, de sobreviver fora das relações
de assalariamento; planejam relacionar-se com a terra no modelo
da propriedade privada.
A complexidade do MST não se esgota na disposição
de sua estrutura e na relação entre os segmentos.
É possível identificar no interior da estrutura
do Movimento diferentes projetos para a terra, que se manifestam
através das diferentes formas de apropriação
e gestão dos assentamentos conquistados. Sendo a parte
mais esclarecida do Movimento, a direção tem
se preocupado muito com a viabilização econômica
dos assentamentos conquistados. A direção do MST
avalia que o modelo agrícola brasileiro é altamente
concentrador e direcionado para a produção de
cereais em escala para a exportação. Isso dificulta
a sobrevivência de pequenos agricultores, que sem apoio
do governo, produzem basicamente alimentos para o mercado
interno, o que não é muito rentável.
Desde o final da década de 1980, a direção
do MST percebeu que a luta pela terra se desdobra necessariamente
na luta pela viabilização econômica dos
assentamentos. Acredita-se que as dificuldades dos assentados
provém da pouca capitalização que cerca
sua atividade na terra: não há suficiente acesso
às tecnologias, aos insumos e às maquinas que
permitem aumentar a produtividade, e com ela os rendimentos
do trabalho. E sozinho, isoladamente, é muito difícil,
ou quase impossível, que um assentado possa conseguir
capitalizar-se para inserir-se no mercado.
Em relação a esses problemas apontados,
a direção do MST encontrou duas soluções.
A primeira consiste em inserir na luta pela terra a revindicação
de políticas públicas de créditos para
os pequenos agricultores. A outra solução é
a de desenvolver formas de cooperação que permitam
aos agricultores assentados superar em conjunto as dificuldades
que recaem sobre os produtores quando atuam isoladamente.
Ou seja, acredita-se que se os produtores de determinada área
se juntarem, eles conseguirão encontrar formar de adquirir
equipamentos, tecnologia e preços de produtos mais
favoráveis.
Aparentemente a solução encontrada
pela direção não é de difícil
implementação. Há uma coerência
lógica que torna inegável que a cooperação
entre assentados pode trazer-lhes mais vantagens que o isolamento.
Entretanto, contrariando a lógica, a maioria
dos assentados rejeita a cooperação, preferindo
correr os riscos do isolamento. A princípio, a direção
do MST interpretou a resistência dos trabalhadores como
derivada das ideologias da classe dominante, incorporadas
pelos assentados. Depois, a explicação mudou.
A resistência à cooperação passou
a ser relacionada à mentalidade tradicional camponesa dos
assentados, que o levavam a acreditar que somente conseguiriam
a autonomia através da gestão individual/familiar
da terra.
Embora aparentemente distintas, as duas avaliações
acerca das causas da resistência à cooperação
levaram a direção do MST a desenvolver metodologias
destinadas a alterar a mentalidade e diminuir a resistência
dos assentados às práticas da economia solidária.
Foi assim que a direção do MST voltou-se à
pesquisa no campo da educação, vinculando-a
ao desenvolvimento das condições intelectuais
individuais necessárias à cooperação
no trabalho, que proporcionariam melhores perspectivas para
a sobrevivência econômica dos assentamentos.
Por iniciativa da direção, o MST criou
cursos para formação de militantes destinados
a desenvolver ações educativas junto à
base e massa, nos assentamentos e acampamentos. Foram os cursos
de magistério e técnico em administração
de cooperativas os encarregados de educar os trabalhadores
para a cooperação. Junto com isso, a direção
criou um sistema de cooperação, que começava
em formas muito simples até chegar à forma mais
sofisticada. A forma simples reduz-se aos grupos que aprenderiam
a cooperação através do planejamento
comum da plantação. A forma mais sofisticada
consiste nas Cooperativas de Produção Agropecuária,
nas quais os participantes utilizam coletivamente a terra,
as máquinas e o trabalho, e repartem o produto obtido
no final, com a venda da produção.
No entanto, a criação dos cursos não
possibilitou que os militantes atuassem de forma mais eficaz
na implementação da cooperação.
A resistência dos assentados permaneceu tão intensa
quanto antes.
Analisando a metodologia desenvolvida pela direção
e aplicada pelos militantes junto às pessoas da base
e da massa, observa-se que há dois problemas nela contidos.
O primeiro diz respeito ao diagnóstico da resistência.
A direção do MST conduz o movimento baseando-se
nas teses do marxismo-leninismo. Tal referência teórica
proporciona uma leitura complicada das condutas individuais,
que são separadas conforme as categorias consciência
e alienação. Conscientes são aqueles
que pensam e agem da forma prescrita pela direção,
e alienados todos os outros que pensam e agem de forma diferente.
Mais ainda, a perspectiva adotada leva a direção
a equivocar-se no entendimento de teorias educacionais dotadas
de força lógica consistente, como é o
caso da filosofia da educação emancipatória
construída por Paulo Freire. Por causa de suas referências,
a direção do MST utiliza a filosofia freireana
para tentar convencer assentados e acampados acerca do valor
fundamental da cooperação como expressão
de socialismo.
Orientados no diagnóstico e nas referências
teóricas produzidas pela direção, os
militantes tentam conscientizar a base e a massa, e
o fazem desqualificando todos os projetos e práticas
que não combinam com aquelas contidas no modelo estabelecido
no topo da hierarquia do MST. Ao agirem assim, os militantes
provocam atritos sobretudo com os integrantes já assentados,
atritos que geralmente culminam com o desligamento de muitos
deles do movimento. Por outro lado, a referência teórica
empregada pela direção do MST para diagnosticar
a resistência à cooperação também
não permite que ela encontre alternativas ao modelo
da mudança de mentalidade. Para isso, a direção
precisaria recorrer a outros paradigmas de interpretação,
diferentes do marxismo-leninismo.
A pesquisa aqui relatada baseou-se na teoria sociológica
desenvolvida por Jean Piaget para sugerir um diagnóstico
alternativo à direção do MST. Fundamentado-se
duplamente na metafísica de Kant e na dialética
marxista, Piaget defendeu a tese de que a cooperação
não é uma conduta derivada de um modo de pensar
típico. Raciocinando através do materialismo
dialético, Piaget concluiu que a cooperação
não depende, para acontecer, da existência de uma mentalidade
favorável, previamente instalada nas consciências
individuais. Ao contrário, na teoria de Piaget, a cooperação
é uma forma de relação social. Para que
se tenha uma relação social cooperativa não
é necessário alterar a mentalidade dos envolvidos.
É necessário que seja alterada a forma objetiva
da relação social, de maneira que cada participante
seja reconhecido como indivíduo livre, autônomo
e igual. Ou seja, a cooperação é uma
relação social que pressupõe a democracia
como forma de tomar decisões em conjunto, de coordenar
diferentes pontos de vista para alcançar um acordo entre
eles.
Sendo uma forma de relação social,
a cooperação proporciona uma situação
problemática favorável ao desenvolvimento intelectual
e moral dos envolvidos, fator esse que se reverte sobre a
forma da reprodução da relação
inicial, alterando-a qualitativamente. Quer dizer, quanto mais as
pessoas se envolvem em relações de cooperação,
mais se desenvolvem moral e intelectualmente, de maneira que
mais conseguem estabelecer relações cooperativas
entre si. E por causa do desenvolvimento dos participantes,
proporcionado pela própria situação de
cooperação, as relações de cooperação
que se seguem tornam-se gradativamente melhores que as anteriores.
Caso a direção do MST viesse a adotar
a referência citada, não precisaria gastar energias
tentando mudar a mentalidade dos assentados para convence-los
da necessidade da cooperação. Bastaria à
direção e aos militantes esforçarem-se
para tornar as diversas práticas do movimento ocasiões
propícias para a construção de espaços
democráticos de debates e decisões. Agindo assim,
o MST colaboraria não apenas para a descentralização
da estrutura fundiária, ou para a implementação
de formas cooperativas de trabalho que permitiriam aos assentados
adquirir condições mais favoráveis de
inserção no mercado e permanência na terra.
Abrindo espaços de cooperação na forma
sugerida, o MST participaria decisivamente para a construção
de uma democracia que poderia modificar por completo a estrutura
institucional da sociedade e do Estado no Brasil.
José Geraldo Poker é professor
da Faculdade de Direito, da Fundação Eurípides
S. da Rocha.
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