Assentamentos rurais: impactos locais e geração
de emprego
Sérgio
Leite
Um dos poucos aspectos trabalhados sobre a experiência
relativamente recente dos projetos de assentamentos rurais
no Brasil refere-se aos impactos locais e/ou regionais que
os mesmos acarretam após sua implantação.
É sobre esse assunto específico que pretendo
discorrer, ainda que resumidamente, no presente artigo.
Estudos especializados sobre esse tema apontaram
os efeitos e as mudanças locais proporcionados pela
criação desses projetos de assentamentos, constituídos
a partir de áreas objeto de ação dos
programas de reforma agrária (basicamente aquelas resultantes
do processo de intervenção do governo federal
através da desapropriação e arrecadação
de imóveis rurais por interesse social) ou de utilização
de terras públicas (aquelas fruto da iniciativa de
governos estaduais e/ou municipais via desapropriação
por utilidade pública ou ainda pertencentes aos órgãos
da administração direta e indireta do Estado)1. Estas pesquisas ao
debruçarem-se sobre a realidade de distintas regiões
em quinze estados brasileiros têm demonstrado que, entre
outras coisas, o processo de reforma agrária e a criação
de assentamentos rurais foram marcados por uma origem conflituosa,
onde a participação dos diferentes movimentos
sociais pautou decisivamente a capacidade de efetivar os programas
de distribuição de terra. A regularização
da posse para famílias que trabalhavam em terras sobre
as quais já haviam conquistado seus direitos e/ou a
instalação de beneficiários sobre áreas
reformadas, vem rebatendo em transformações
de ordem econômica, política e social, que, sumariamente,
destaco a partir de seis aspectos, a seguir discriminados.
Dentre estes últimos ganha relevo aquele relativo à
geração de empregos, tema caro à agenda
brasileira recente, que procurarei detalhar ao final.
Dimensões dos impactos locais dos assentamentos
rurais
Os assentamentos implicaram em alguma redistribuição
fundiária, tanto mais visível quanto maior
o número de assentamentos num município. Embora
localizada, tal redistribuição aponta para o
aumento das possibilidades de acesso à terra e tudo
que ela implica em termos de potencialidade de inserção,
nas atividades econômicas, na qualidade de produtores,
alterações no uso do espaço, possibilidade
de diversificação produtiva, etc. A mais evidente
mudança que se verifica é que, se antes os grandes
proprietários de terra constituíam a referência
básica nos municípios, cada vez mais se torna
necessário levar em conta os novos atores que emergem
do processo de alteração local da estrutura
fundiária. Em muitos dos casos analisados, fica visível
inclusive um certo deslocamento do eixo das relações
de poder local. Em função do aumento populacional
gerado por essa desconcentração, também
tem se verificado uma alteração no desenho de
municípios, com a criação de distritos
e de novas prefeituras. A presença dos assentamentos
tem, igualmente, modificado a paisagem, o padrão de
distribuição da população rural,
o traçado das estradas, levando em diversas situações
à formação de novos aglomerados populacionais
rurais, mudando o padrão produtivo.
Os projetos de reforma agrária provocaram
a dinamização da vida econômica de vários
dos municípios onde se inserem, tendo como base um
processo produtivo mais diversificado,
quando comparado à estrutura produtiva prevalecente nos estabelecimentos
agropecuários da região2, significando uma espécie
de reconversão produtiva em regiões de crise
da agricultura patronal, em alguns casos contribuindo para
uma reorganização dos sistemas de uso dos solos
da produção familiar no seu contexto mais geral.
Para além da relevância do número de novos
produtores que entram como tal no mercado, introduzindo maior
oferta de produtos, em especial alimentares, os assentados
aumentaram sua capacidade de consumo, comprando não só
gêneros alimentícios nas feiras, no comércio
local e até mesmo de cidades vizinhas, como também
insumos e implementos agrícolas, eletrodomésticos
e bens de consumo em geral. Complementarmente, a comercialização
da produção dos assentados provocou não
apenas a dinamização ou até mesmo recriação
de canais tradicionais, como é o caso das feiras na
zona canavieira nordestina ou ainda através da presença
dos "atravessadores"; como também a experimentação
de criação de pontos de venda próprios
(feiras de produtores), como no município de Campos
dos Goytacazes, RJ; formas cooperativas, experiências
relativamente bem sucedidas de transformação
do produto para venda, através da implantação
de pequenas agroindústrias; constituição
de marcas para comercializar a produção; busca
de constituição de um mercado específico
para os "produtos da reforma agrária" etc. Neste
último caso, as inovações não apenas
atestam a origem do produto comercializado, mas principalmente têm
a função de transformar a comercialização
num momento de afirmação social e política
da identidade de assentados e do sucesso das experiências
de redistribuição fundiária, como verificado
nos projetos existentes no oeste catarinense.
A presença dos assentamentos enquanto unidades
territoriais e administrativas, novas referências para
as políticas públicas, traz em si modificações
na zona rural em que eles são implantados, resultando
numa ampliação das demandas de infra-estrutura
e em pressão sobre os poderes políticos locais,
estaduais e federal, redimensionando o tema do acesso às
políticas públicas. Também a condição
de assentado possibilitou a essa população,
pela primeira vez, a tomada de empréstimo para produção,
ainda que essa integração ao mercado financeiro
esteja marcada por um conjunto significativo de dificuldades.
Os casos tratados nos estudos referidos apontam
a capacidade, ainda que diferenciada, da capacidade de geração
de renda nessas unidades familiares. Pode-se afirmar que,
na média, há uma geração de rendimentos
- monetários e não-monetários - que permite
a reprodução dos assentados, embora a precariedade
generalizada da infra-estrutura prevalecente nos núcleos
comprometa tal performance. Essas observações
integram a análise das condições de vida
dos assentados, sua possibilidade de acesso a serviços
e bens, a forma como eles vivenciam essa nova situação
e as oportunidades que elas oferecem, em especial no que se
refere a moradia, saúde, educação, alimentação,
poder de compra etc. Em geral, ao comparar a situação
presente com aquela experimentada no período prévio
ao assentamento, as famílias tendem a valorar positivamente
suas condições atuais de vida e trabalho.
Num cenário de crise da agricultura tradicional
e de fechamento do mercado de trabalho, especialmente para
os segmentos menos qualificados da população,
os assentamentos representam uma importante alternativa de
emprego. Atuando como um amparo frente às agruras das
formas por meio das quais vem se dando o desenvolvimento econômico,
servem como proteção social, resolvem o problema
de moradia e permitem a inserção no mercado
de trabalho. Os assentamentos favorecem a consolidação
ou mesmo reconstituição de laços familiares
antes desfeitos ou ameaçados pela necessidade de deslocamento
das pessoas para buscar alternativas de sobrevivência.
Por outro lado, geram novas pressões sobre a terra,
na medida em que a agregação de novos membros
pode intensificar o uso da terra no lote e favorecer a saída
para outros lotes ou mesmo para novas ocupações
de terra. A presença dos assentamentos também
atua como fator gerador de postos de trabalho não agrícolas
(construção de casas, estradas, escolas, contratação
de professores, surgimento de transporte alternativo etc.)
e dinamizador do comércio local nos municípios
onde se inserem, fato que se acentua nos casos de elevada
concentração de assentados. Analisarei o tema
de forma mais detalhada a seguir.
Criação de empregos nos assentamentos
A extrapolação dos dados da amostra da pesquisa
de Heredia et al. (2002), para os municípios e para
a região ("mancha") de estudo, permite perceber que
os assentamentos são importantes geradores de emprego.
No conjunto dessas manchas, são 45.898 pessoas maiores
de 14 anos que efetivamente trabalham nos assentamentos, 93,76%
delas somente no projeto (no próprio lote, em outros
lotes, ou em outras atividades). Do total dos que trabalham,
com mais de 14 anos, 42,7% são mulheres, indicando
sua ativa participação nas tarefas que envolvem
as diferentes atividades do assentamento.
De acordo com a Tabela 1, do total da população
maior de 14 anos nos projetos pesquisados, 79% trabalhavam
somente no lote, 11% no lote e também fora do lote,
1% somente fora do lote e 9% declarou não trabalhar.
Ou seja, 90% dos assentados maiores de 14 anos trabalhavam
ou ajudavam no lote, numa média de três pessoas
por lote. Dos que faziam algum trabalho fora do lote (12%
do total), 44% o faziam em caráter eventual, 24% em
caráter temporário e 31% de modo permanente.
É interessante observar ainda que dos que trabalhavam fora
do lote, mais da metade (56%) exercia atividades somente dentro
do próprio assentamento, incluindo trabalhos não
agrícolas gerados pela implantação do
projeto (construção de estradas e infra-estrutura
coletiva, professora, merendeira, agente de saúde,
trabalhos coletivos, beneficiamento de produtos, entre outros).
Além de gerar empregos para a família, os lotes
também geram trabalho para outros. Com base nos resultados
dessa mesma pesquisa, verificou-se que quando se considera
a contratação de trabalho pelos assentados,
36% dos lotes pesquisados contratam pessoas de fora.
Tabela
1. Empregos gerados nos assentamentos
Mancha |
Totais de pessoas da amostra |
Total de lotes |
Total de maiores que 14
anos (*1) |
No. pessoas trabalham no
lote (*3) |
% sobre total pessoas que
vivem |
no.
médio
de pessoas ocupadas por
lote |
lotes (ou famílias)
entrevistados |
Pessoas
nos assentamentos
(todas as
idades) |
A |
B |
C |
D |
D/B(%) |
D/A |
Sul
Bahia |
87 |
464 |
309 |
365 |
79% |
4,20 |
Sertão CE |
306 |
1673 |
1017 |
1158 |
69% |
3,78 |
Entorno DF |
237 |
1020 |
741 |
824 |
81% |
3,48 |
Sudeste Pará |
366 |
1823 |
1219 |
1303 |
71% |
3,56 |
Oeste
SC |
185 |
922 |
572 |
584 |
63% |
3,16 |
Zona Canav. NE |
387 |
2170 |
1378 |
1375 |
63% |
3,54 |
Total Global |
1.568 |
8.072 |
5.236 |
5.609 |
69% |
3,57 |
|
Mancha |
Pessoal ocupado no lote(*2) |
Todas as idades |
Maiores de 14 anos |
> 14 trabalham no lote
(*4) |
% do total maiores que
14 |
% do total de pessoas que
trabalham |
no. médio de >14
ocupados por lote |
E |
E/C(%) |
E/D(%) |
E/A |
Sul
Bahia |
293 |
95% |
80% |
3,37 |
Sertão CE |
925 |
91% |
80% |
3,02 |
Entorno DF |
699 |
94% |
85% |
2,95 |
Sudeste Pará |
1106 |
91% |
85% |
3,02 |
Oeste
SC |
503 |
88% |
86% |
2,72 |
Zona Canav. NE |
1151 |
84% |
84% |
2,97 |
Total Global |
4677 |
89% |
83% |
2,98 |
|
Fonte: Pesquisa de campo. Heredia et al. , 2002, op.cit.
(*1) Exclui menores de 14 anos e sem informação.
Inclui os "sem idade" que são responsável, cônjuge
ou
genro/nora (provavelmente > 14 anos).
(*2) Inclui pessoas que trabalham só no lote, ou no lote
e fora do lote.
(*3) Inclui todas as idades.
(*4) Maiores de 14 anos que trabalham no lote (só no
lote ou no lote e fora do lote). |
A criação de empregos é verificada
também nos projetos pesquisados por Medeiros e Leite
(2002), embora no caso específico da primeira pesquisa
a concentração e densidade de famílias
e projetos por região (manchas) aponte de forma mais
contunde o potencial dos impactos, especialmente no caso dos
novos postos de trabalho.
Na realidade a conformação das manchas
gerando na prática as áreas reformadas, e contrapondo-se
à lógica de desapropriações isoladas
que caracterizam a intervenção do Estado na
questão agrária, já é, por si,
um aspecto relevante das transformações que
os assentamentos têm provocado no espaço regional,
ainda que tal conformação tenha se dado a posteriori,
a partir da ação dos trabalhadores, e não
necessariamente como um instrumento prévio da ação
estatal, como dispunha o Estatuto da Terra.
Notas:
1. Refiro-me especificamente
a dois estudos, dos quais me sirvo nesse artigo, em que tive
a oportunidade de compartilhar a coordenação
com outros colegas pesquisadores, cujos resultados detalhados podem
ser encontrados em: Medeiros, L. e Leite, S. (orgs.) A formação
dos assentamentos rurais no Brasil: processos sociais e políticas
públicas. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1999; Medeiros,
L. e Leite, S. (coords.) Impactos regionais dos assentamentos
rurais: dimensões econômicas, políticas
e sociais. Rio de Janeiro: CPDA/UFRRJ-Finep, 2002 (Relatório
de Pesquisa); Heredia, B.; Medeiros, L.; Palmeira, M.; Leite,
S; Cintrão, R. (coords.). Impactos regionais da reforma
agrária: um estudo a partir de áreas selecionadas.
Rio de Janeiro: CPDA/UFRRJ-Nuap/PPGAS/MN/UFRJ-Nead/Iica, 2001
(Relatório de Pesquisa); Heredia, B.; Medeiros, L.;
Palmeira, M.; Cintrão, R.; Leite, S. Análise
dos impactos regionais da reforma agrária no Brasil.
Estudos, Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, n. 18, p.
73-111, abr., 2002.
2. A pesquisa coordenada por
Medeiros e Leite (2002), op.cit., analisou a situação
de 543 famílias instaladas em 26 projetos relacionados
administrados por órgãos dos governos federal,
estaduais e municipal, em seis estados brasileiros: Acre,
Mato Grosso, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e Sergipe.
O estudo coordenado por Heredia et. (2001, 2002), op.cit.,
selecionou seis grandes manchas, refletindo uma concentração
de famílias assentadas territorialmente ("manchas"):
Sul da Bahia, Entorno do Distrito Federal, Sertão do
Ceará, Sudeste do Pará, Oeste Catarinense e Zona
Canavieira Nordestina. Foram pesquisadas 1.568 famílias em 92
projetos implantados pelo Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (Incra) entre 1985 e 1997.
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